Priscilla Davanzo: Lugares da Escrita (2014)

Priscilla Davanzo, Coleção. Performance realizada em São Paulo, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Hilda de Paulo

 

Ora como a própria folha/tela branca ora como um molde que gera um objeto autônomo, os lugares da escrita da artista paulistana Priscilla Davanzo cruzam body art, performance, videoarte, videoperformance, gravura, instalação, intervenção urbana e algumas outras expressões artísticas.

A tinta da caneta pode ser literalmente deslizada por cima da ausência de conteúdo numa folha de papel, sob a premissa de firmar certos conceitos que esboçam as novas formas de escrita que virão a partir deste primeiro ato de ponderar ideias. Ultrapassando a tradicional escrita, Davanzo sublinha, em diversos suportes, uma outra ordem de caligrafia, um outro alfabeto, uma linguagem distinta da que, em princípio, era substantivo concreto, verbo de ação ou qualquer outra denominação morfológica em nanquins ou grafites.

Sua escrita é visceral e firma-se, em alguns casos, por meio de fluidos corporais e, em outros, por meio de suturas atravessadas diretamente na pele ou por meio de adornos como branding e scarification. A semântica do seu texto – que extrapola o logos em uma narrativa figural –, quando escrito sobre ou a partir do seu corpo (ou do corpo do outro) é absorvida todo o tempo por qualquer observador; o corpo é o suporte, é o objeto-arte e é, portanto, o lugar onde a obra se expressa, onde está o lugar da escrita.

 

PROGRAMA Lugares da Escrita

O evento incluiu três performances ao vivo, sendo que uma das ações foi concebida em âmbito de uma residência realizada pela artista durante o período da exposição. Ainda, houve exibição de vídeos, fotografias e objetos/instalação e conversa com a artista e com os curadores.

06/09/2014, 17h – performance “a efemeridade da existência e a permanência da moeda”

13/09/2014, 17h – performance-processo. Conversa interactiva sobre o processo desenvolvido na residência.

20/09/2014, 17h – performance “sob água”

 

FICHA TÉCNICA

Priscilla Davanzo: Lugares da Escrita

Curadoria: Hilda de Paulo e Tales Frey

Realização: eRevista Performatus

 

De 06 a 24 de setembro de 2014

Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura (CAAA)

Rua Padre Augusto Borges de Sá, Guimarães, Portugal, 4810-523

Terça a domingo, das 14h30 às 19h

Entrada livre

Contacto: geral@centroaaa.org

Telefone: +351 253 088 875

Website: www.centroaaa.org

 

Plano geral da exposição Priscilla Davanzo: Lugares da Escrita. Fotografias de eRevista Performatus

 

Priscilla Davanzo, a efemeridade da existência e a permanência da moeda. Performance realizada em Guimarães, Portugal. Setembro de 2014. Fotografia de Maria Luis Neiva

 

Priscilla Davanzo, a efemeridade da existência e a permanência da moeda, 2000-2014. Impressão de sangue sobre papel. Edições: 2/10; 4/10; 8/10. Acervo Performatus/ Coleção de Hilda de Paulo e Tales Frey

 

Performance-Processo: a artista Priscilla Davanzo guia seus visitantes no percurso pela zona de Couros em Guimarães, Portugal. Fotografias de Tales Frey

 

Priscilla Davanzo, sob água. Performance realizada em Guimarães, Portugal. Setembro de 2014. Fotografia de Hilda de Paulo

 

Corpo-suporte Variável para Constantes Processos Discursivos

Este texto de Julia Pelison foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014).

 

A exposição Priscilla Davanzo: Lugares da Escrita, ocorrida durante o mês de setembro de 2014 no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, como o próprio nome sugere e como o texto curatorial sublinha, possibilita que uma conjuntura superabundante de inscrições diferenciadas sejam concretizadas através de diversos meios: pelo próprio lápis ou caneta a deslizar sobre o papel, ou ainda, pelas formas menos convencionais como os singelos riscos de sangue impressos sobre papéis, linhas de náilon transpassadas pelo corpo da artista, pela volumosa quantidade de tinta marcada em várias partes da sua pele, como tatuagem, ou pelos sinais criados por body brandings e escarificações.

Exceto os vídeos (alguns projetados e outros em televisores) e os objetos oriundos da performance Coleção (2014), a apresentação dos trabalhos alude a um grande livro sobre uma carteira, a um caderno aberto sobre uma enorme mesa e, então, a exposição foge à literalidade do formato incorrupto de exibir fotografias e trabalhos bidimensionais em molduras sobre as paredes, recorrendo ao uso de alguns expositores que toavam balcões, mas com proteção de acrílico em todos eles a dar o caráter expositivo. Para ver cada um dos itens, não olhávamos os trabalhos com queixos retos; éramos obrigados a abaixá-los e, portanto, concluímos que a curadoria conseguiu remeter o(a) espectador(a) justamente para o lugar da leitura, assertivamente para que acessássemos toda a escrita ali exposta.

A leitura, sem lógica oriental ou ocidental, poderia ser iniciada por uma sequência de vídeos a partir da esquerda, ou a partir de obras tangíveis à direita, sendo que todas as obras convergiriam para a peça chave da exposição: o registro da performance Coleção (2014), que é apresentada sob forma de vídeo em três projetores no espaço expositivo e em três tamanhos e tempos distintos para que o público possa perceber o começo, o meio e o fim da ação de uma só vez e de variadas formas. Essa opção dispositiva enfatiza as escritas e leituras distintas de um mesmo trabalho e traz à tona uma outra possibilidade de iniciarmos uma leitura, recorrendo a uma solução literária comum em clássicos como Eneida, de Virgílio ou Ilíada, de Homero, que é conhecida por In media res.

De Coleção rumo às duas possíveis entradas do(a) observador(a) no espaço, temos as obras: DNA – Reimpressões (2005), sendo um vídeo de Fábia Fuzeti; o vídeo-documentário Geotomia (2000), de Marcelo Garcia; Cabelódromo (2011), vídeo realizado em colaboração com Grasiele Sousa; a série de somatogravura intitulada projeto D.N.A. (2002); algumas fotografias da ação Pour être plus belle et efficiente – Pour être plus beau et efficient (2005); além dos trabalhos inéditos de fotoperformance como Colaboração #1 e #3 – Ações de Patylene & Paulette (2014), about the body (2014) e sem título (2014), que foram realizados em parceria com outras(os) artistas.

Naturalmente, por se tratar de uma artista de body art com ênfase em estratégias que submetem o corpo à dor, aflição, agonia ou o que quer que o tire da zona de conforto, imediatamente pensamos em situações datadas como as manifestações radicais dos acionistas vienenses, de Gina Pane, de Chris Burden, entre outras(os). Mas a atualidade do trabalho de Priscilla Davanzo se dá à medida que ela não está testando seus limites físicos ou psíquicos como fazia grande parte desses(as) artistas aqui elencados(as) como representativos de um período anterior ao nosso.

Talvez nem a própria Orlan seja um referencial mais próximo do trabalho de Davanzo, até porque a artista francesa promovia a negação da dor através da “arte carnal”, ao fazer ode ao uso da morfina e também à condenação da dor como forma de autopenitência.  Já a artista Priscilla Davanzo não aborda a dor no seu trabalho, apesar de se furar com agulhas para fazer suturas e atravessar em si uma série de objetos, por exemplo, na sua performance Coleção (2014).

Nesse caso, como em tantos outros, a dor pode ser mais uma vez irrelevante, embora não pareça, pois o cerne da discussão é o corpo como ambiente para a sua escrita; é o corpo como suporte tal qual a tela pode ser suporte para a pintura e tal qual a folha do caderno é suporte para o lápis ou caneta. Trata-se sempre (ou quase sempre) de alguma técnica sobre um sustentáculo que é o próprio corpo da artista, e isso fica bem claro no seu trabalho conceitual as vacas comem duas vezes a mesma comida, o qual foi iniciado em 2000 e pôde ser visto intermediado através de diversas fotografias miniaturas, do vídeo Geotomia (2000), ou ainda e mais apropriadamente, ao vivo, durante uma das três apresentações que a artista fez em três sábados consecutivos do mês de setembro.

Na primeira performance apresentada dentro deste evento, a efemeridade da existência e a permanência da moeda, a primeira ação de Priscilla foi esvaziar um saco de água com alguns minúsculos peixes, fazendo com que todos morressem sem oxigênio e, então, depois disso, ela rasgava a pele da sua mão com uma lâmina para nela desenhar um delicado peixinho, o qual serviu para imprimir com sangue a imagem criada em dez gravuras que eram vendidas pelo preço que a audiência quisesse/pudesse pagar. Enquanto sobrasse gravura, Priscilla permaneceria ali intacta a comercializar o seu sangue, o que não aconteceu; todas foram vendidas, afinal a existência da performer é tão efêmera quanto a dos peixes que saltaram até a morte no saco plástico sem água, é tão fugaz quanto a cor do sangue sobre o papel. A moeda sim determina o fim das vidas existentes na performance e perpetua até mais que a marca deixada em Priscilla, a qual é suavizada com o tempo até o desaparecimento.

Num segundo encontro com a artista, tivemos um bate-papo em que ela explicava abertamente o processo criativo que estava vivendo na cidade de Guimarães para produzir a performance do último sábado antes do fim da sua exposição. A conversa informal incluiu um passeio pela região central da cidade por onde passa (e por onde já não vemos passar) o rio de Couros.

No dia 20 de setembro, última atividade integrante do evento, Priscilla mostrou a ação criada durante a residência, dando título ao seu mais novo trabalho de Sob Água, que, na ocasião, foi alvo de uma primeira experiência diante do público que presenciava a artista a costurar em si alguns sacos de água adquiridos nos arredores do rio de Couros. Contextualizando a performance, um vídeo com imagens de trajetos realizados nas margens do rio era mostrado em loop.

É um trabalho amparado pela estética relacional em que a artista dialogava com moradores(as) das proximidades desse rio para ouvir seus relatos e ser influenciada a partir deles e, assim, a solução originada da experiência foi entregar pequenos sacos de plástico transparentes para pedir que essas pessoas todas lhe dessem um pouco de água e, então, após conseguir alguma quantia, ela tentou conectar, da forma mais intensa, tudo o que ela adquiriu, formando assim um corpo híbrido, conectando histórias, aludindo às águas que correm pelo rio e aos próprios objetos que também foram obtidos em lojas da região.

A sua configuração final, com sacos pendurados na região do peito, assemelhava-se à deusa Diana Efesina, porém mais precisamente a uma fonte do século XVI existente nas proximidades de Roma, em Villa d’Este, onde essa figura feminina é representada com diversos seios dos quais saem jorros de água.

Coincidentemente, a possível imagem ali construída dessa deusa da fertilidade, com seus vários seios fartos, vem confirmar o código extremamente feminino da palavra “livmoder” (“útero” em sueco) tatuada no colo de Priscilla Davanzo.

A narrativa apresentada em seu conjunto não conduz nosso olhar para o óbvio sobre as possíveis elucidações geradas a partir do suporte do corpo, fugindo de uma tautologia já codificada a respeito da body art, dilatando para o campo da imagem o discurso escrito. A curadoria de Hilda de Paulo e de Tales Frey expõe com maestria a transposição das representações visuais – ora documentais ora já finalizadas como objetos de arte – para o que poderíamos ver também como uma espécie de caligrafia. Há, nesse sentido, a fusão da palavra e da imagem sem que uma exerça posição de poder sobre a outra: não há espaço para nenhum tipo de hierarquia e, dessa forma, a artista e os curadores caminham sob a mesma lógica, que é absolutamente igualitária e extremamente poderosa.