Um Tridente de Hipóteses sobre a Performance. É Possível Ir Além da Gestão do Presente?

 

O progresso envelheceu, em suma. Tanto na biosfera quanto na geosfera estamos às voltas com reversões súbitas dos equilíbrios naturais que tornam pateticamente obsoletas as visões da flecha do tempo continuamente orientada para o futuro. Não se trata de um cenário melodramático anunciando o fim dos tempos — nem de requentar profecias regressivas –, mas de constatar que, tecnicamente, pelo menos, ingressamos num regime de urgência: linearmente desenhado, o futuro se aproxima do presente explosivamente carregado de negações. Não basta anunciar que o futuro não é mais o mesmo, que ele perdeu seu caráter de evidência progressista. Foi-se o horizonte do não experimentado. Com isso o próprio campo de ação vai se encolhendo, e isso porque “já dispomos no presente de uma parte do futuro”. Digamos, não custa insistir, que cada vez mais a conjuntura tende a se perenizar. A inovação clássica do futuro, em nome da qual se legitimou a iniciativa política nos tempos modernos, não só perdeu sua força como deve ser rebatida sobre o presente. É isso, resumido de relance. Resta o dilema: se os efeitos indesejados devem ser calculados e tender a zero, como, para além do slogan desmoralizado “escolher o futuro”, manter o horizonte de tal modo descomprimido que o “não imaginado possa continuar imaginável”? “Mas e se esse futuro inteiramente outro — sob pena de apressar o desastre — que deve ser criado já é efetivo desde agora, “se decide no presente prolongado”? Nesse redemoinho gira o apocalipse dos integrados: gestão do presente, em suma, mas de um presente no qual o futuro já chegou. 

— Paulo Arantes, O Novo Tempo do Mundo

 

Fantasmas da Cor e da Imagem: Isso Daí É o Passado Disputando o Presente

A presença da imagem e a sua busca marcam historicamente os processos de muitos artistas. Mesmo que, muitas vezes, essa imagem resulte na ausência de uma figuração humana simbolicamente relacional com a percepção, a busca pela construção de imagens está presente na fotografia, na performance, na escultura e na pintura. Há quem acredite no pensamento sem imagem, assim como em uma arte sem iconografia, o que é bastante místico e viável, porém impossível sem antes pensarmos que lugar as imagens ocupam durante o processo de criação. A primeira questão é conseguir atribuir à imagem uma onipresença e autonomia superior à vontade do artista. Dizer isso não é retomar as questões de cultura visual ou da sociedade de consumo, mas colocar a produção e o domínio das imagens sobre o imaginário em um plano metafísico no qual estamos imersos. Man Ray [1], por exemplo, foi um artista que conseguiu transpor para a fotografia sua vontade em compor um híbrido entre o mecânico e o humano, de um modo que sua paixão pela técnica e pelo contexto industrial fosse explicitamente demonstrável em suas fotografias. Atualmente obedecemos às nossas paixões sem ao menos saber que elas estão agindo sobre nós mesmos.

Preciso concordar com Deleuze quando, ao escrever sobre Francis Bacon em Francis Bacon: Lógica da Sensação, diz que antes de iniciar uma pintura é preciso livrar-se dos clichês que já ocupam a tela em branco antes mesmo da vontade do artista em pintar. Acredito que a afirmação de Deleuze não se limita apenas aos mundos já interpretados que insistimos em transpor para o que produzimos (para evitar qualquer esforço de pensamento ou confronto), mesmo porque esses mundos exercem uma força sobre nós, e torná-los presentes via criação é dar vida aos mesmos, colocá-los para operar outras capturas e paixões, ou seja, provocar o incurso dos mesmos sobre o real. Existe um subtexto aí que de alguma maneira pode ser lido enquanto uma “antifiguração” ou uma “antirrostidade”. Pois o rosto sempre será a afirmação de uma subjetividade humana, com seus dramas e limitações. Porém não é bem isso que ganha relevância, acredito, no que venho produzindo nos últimos tempos. Tenho encontrado algo que já está aí e que se impõe via criação, inclusive nos níveis de uma “escolha” das cores.

Nos últimos anos, venho observando como a paleta de cores do Vaporwave ultrapassou as subculturas ditas criativas da internet até os processos de criação de milhares de artistas contemporâneos. Na pintura, por exemplo, trabalhar a luz no quadro é o mesmo que usar de modo inteligente o magenta ou todas as cores básicas revisitadas pela sua versão neon. O Vaporwave [2], que inicialmente fazia uma crítica ao imaginário capitalista e apelava à nostalgia pelos futuros prometidos nos anos 1980 e 1990, saiu dos nichos que o criaram e paradoxalmente moldou a estética do mundo capitalista atual, agindo enquanto uma filiação inevitável para vários artistas que almejam inconscientemente que suas obras ganhem respaldo comum. O Vaporwave, com suas cores irresistíveis, se configura nos dias de hoje como novidade quando aplicado na instalação ou na pintura, porém, trata-se apenas das formas do passado ganhando vida através da criação artística.

 

Ali do Espírito Santo, Mubashshirat’s da Insônia, 2018

 

No meu trabalho nem sempre estou em busca de algo Novo. Atualmente tenho surfado numa espécie de exploração sobre o que já está em estado de recognição ou aceitação na arte contemporânea, mas de modo que isso explore as metodologias de criação ocultas à recepção que abraça sem crítica alguma esses trabalhos, apenas aceitando uma naturalidade no ato de preterir isso ao invés daquilo. Mubashshirat’s da Insônia, por exemplo, se utiliza dessa paleta de cores em voga e da ideia de sample oriunda da música eletrônica para reproduzir uma série de simulacros hiperformais, que em um primeiro momento é livre de uma subjetividade. Nos vários momentos em que expus essa série, a reação do público foi de encantamento. Quem sabe porque submeter-se à paleta de cores do Vaporwave é produzir estoicamente algo simples e ao mesmo tempo místico, em que estar colado ao tônus do eterno presente que repete o passado é a única experiência cronológica possível na arte nos dias de hoje.

 

O Sono Nostálgico da Performance

A arte da performance nasceu com intuitos bastante bagunçados. Há quem diga, inclusive, que historicizar o início da performance é um erro, assim como também seria impossível definir para a mesma um significado fechado e limitado no verbo ser. Mas há detalhes aí que deveríamos olhar com mais atenção, se o tempo presente nos permitir, mesmo que esteja fora de moda fazer “saldos críticos” à performance ou para a arte em geral (se é que existe arte em geral).

Um dos detalhes relevantes para pensar a performance arte é que a mesma nasce através de um impulso em produzir transgressões contra aquilo que a arte se propôs a operar até o final do século XIX e início do XX. Não irei ater-me a descrever isso, pois seria extremamente cansativo, visto que existe uma extensa bibliografia que discute essa questão. No entanto, acredito ser relevante pincelar do passado esse impulso transgressivo que marca radicalmente o gesto da arte da performance, a fim de reconfigurá-lo no presente desencantado. Pois pensá-lo atualmente é o mesmo que perguntar-se sob que condições a performance ainda se filia a uma vontade em transgredir, ou até que ponto essa característica é, hoje, qualquer outra coisa, exceto transgressão.

Para um cafeinado artigo de Richard Schechner intitulado “The Conservative Avant-Garde”, a performance vive, nas últimas décadas, em um limbo de reperformances. A solicitação para que artistas como Marina Abramović ou Allan Kaprow [3] revisitem seu baú de performances através de releituras cada vez mais próximas do “seu original”, mesmo que de modo efêmero, faz com que esses trabalhos ganhem um ar de pureza novamente. Para Schechner, isso ocorre porque esses nomes canônicos da performance conquistaram o status de Marca, gozando de um privilégio em poder repetir um produto, adotando, como na publicidade, a repetição e os modelos prontos com naturalidade. Porém, isso só é possível na medida em que esses artistas filiam-se a uma espécie de “pressuposto recognitivo”, operando sempre sobre o familiar ou o já conhecido. Até aí nenhum problema, se a performance não tivesse derrubado a porta da modernidade utilizando-se da imprevisibilidade, destruição e repulsão. Ou “construído-se” politicamente no prometeísmo vanguardista em agenciar o Novo.

O diagnóstico de Schechner, ao relacionar a performance enquanto arte de vanguarda que anuncia a novidade, mas que só oferece o que já foi estabelecido enquanto regra, levanta outras questões. Devemos ser precisos nesse ponto, e esforçar-nos para entender que a novidade, nesse caso, foi a pretensão da vanguarda artística a priori, ligada tanto à construção de mundos por vir como à abolição dos mundos presentes. Nesse sentido, a transgressão da performance é a sua regra e ao mesmo tempo o que a fez perdurar no tempo, servindo como o emblema que legitima a sua presença enquanto “linguagem provocativa”. No entanto, conforme o corpo foi “interpelado” pelas instituições e mercados de consumo, assim como pelas políticas de identidade e seu peso histórico, todas as bordas e os excedentes destituintes da harmonia social foram quebrantados para dentro dessa esquizofrênica sede acadêmica (e também institucional) por arquivo e catalogação, em que a novidade, a transgressão e boa parte das propostas artísticas passaram a dormir, servindo apenas enquanto passado no qual temos a obrigação de nos inspirar [4].

Esse sono nostálgico atua como uma matriz de acesso que expropria tanto da performance como da arte em geral (se é que é possível falar em arte geral) a apreensão do presente enquanto fuga daquilo que já foi enquadrado num regime simbólico que abraça o mais do mesmo, ou seja, do seu estado sine qua non para a existência de um fora imprevisível e radical. Qual marchand, artista, ou curador, não se pergunta antes de mais nada acerca das referências que guiam suas vontades? A imposição de uma correlação entre criação e referenciais conceituais, imagéticos ou até mesmo das primeiras vanguardas, pode facilitar saber o que é a arte a partir de um recorte, mas não experimentá-la em níveis de projetar o novo. Mas a reperformance não é apenas o modo como alguns artistas-marcas vêm trabalhando nos últimos anos, como aponta Schechner. A reperformance é uma redução cognitiva colada às maneiras nas quais vivenciamos as soluções em torno das práticas artísticas atuais, que dependem de um sistema cultural estacionado no consumo do eco da tradição provocativa sem compreender a sua relação com o sistema capitalista.

Apesar de Schechner não relacionar o fracasso da busca pelo novo e consequentemente pela transgressão a um efeito do capitalismo tardio, essa relação está explícita em como o evento da Cultura no neoliberalismo sucumbe ao agenciamento sobre o novo, ao modular um lento “cancelamento dos futuros”, para citar a máxima de Franco Berardi Bifo, pois agir junto ao tempo, ou tomar o campo da imaginação requer starts de vida que não existem mais, ou ao menos não há disposição para construí-los no presente cindido pela fragmentação existencial.

A sensação de constante reciclagem na qual todas as formas possíveis, sejam elas políticas, desconstrutivas ou hiper engajadas, estão sobre uma mesa, bastando ao artista servir-se desse repertório de fórmulas prontas e já experimentadas com glória no passado, nada mais é que um efeito do mundo pós-fordista. Como apontam Simon Reynolds, Fredric Jameson ou Mark Fisher, a ânsia por retrospectivas e pastiches encontra paradoxalmente a solidez na constância de uma acelerada produção de fluxos sem localização precisa. Apesar de toda retórica pela novidade e inovação, o capitalismo neoliberal estaciona os artistas em uma precariedade ausente de tempo, na qual adentrar em processos de produção do novo, além da demanda da arte enquanto informação, não é mais possível. Pois para intuir a novidade é necessário retirar-se, e para isso precisamos de tempo, o que implica em seguridade financeira [5].

Antes de finalizar, uma última questão. Transgredir as regras, de certo modo, tem a ver com tomar uma dimensão enunciativa. Talvez não consigamos mais levar isso em conta, pois os enunciados são esferas que dependem de uma ocupação parcial. A arte de vanguarda realiza seu projeto revolucionário em meados do século XX ao produzir a máxima de que a “arte está na vida”. Isso, de alguma maneira, estava colado a outros enunciados produzidos pelas revoluções socialistas, que também foram estéticas. Havia quiçá aí uma confluência contingente que afetava uma multiplicidade de estratos comprometidos com a reconstrução dos mundos por outras vias que não a do fascismo. Mas os tempos são outros e os enunciados de transgressão, por exemplo, estão tomados atualmente pelo fascismo 2.0. “Todo poder emana do povo” ou ser “antiestablishment” não pertencem mais às zonas revolucionárias de uma esquerda antitradição e sim a uma nova intensidade muito bem articulada na modulação de suas forças. A que deve submeter-se o gesto da performance, do político e da política na arte para produzir um novo do novo e ser capaz de transgredir?

 

Seria a Geoperformance uma Prática Comunista? 

Em 2017, iniciei um processo de pesquisa que entende a performance arte a partir de uma bifurcação entre a construção de um eu artista e a possível captura do “método performático” subjacente às ações de performance. Esse segundo ponto me levou a acreditar ser possível deslocar a experiência que acumulei na arte até então enquanto um EAT (estudante-artista-trabalhador) para espaços físicos destinados a focar naquilo que a performance monta e desmonta na esfera sígnica, afetiva, discursiva e estética. Nesse momento, decidi que o primeiro caminho dessa bifurcação precisava ser suprimido, retirado e extirpado durante as proposições de práticas coletivas, que chamei de Geoperformance, pois minha intenção sofreu uma mutação até uma máxima: fazer performance, mas não produzir artistas, ao menos naquele recorte de tempo e junto àquelas pessoas.

A geoperformance é uma espécie de materialismo experimental ligado a práticas de imersão que buscam relacionar o corpo a forças que atravessam o inconsciente, porém sem reduzir ingenuamente essas forças à vontade humana. Sendo assim, a noção de um eu autossuficiente e autônomo ante suas vontades não faz sentido. Pois nenhum corpo organiza sua existência sem uma técnica e sem um agenciamento junto a certos dispositivos tecnológicos, uma certa tecnologia, fora de nossos corpos. Os humanos abastados, viris, ascéticos e idealizados em uma autonomia dependem de algo que os sustenta para além da materialidade visível. Abrir o corpo até a sua despersonalização é espantar-se como o mesmo emaranhado em materialidades estranhas, onde próteses tecnovivas estão conectadas a “nós” e entrelaçam a existência.

 

Laboratórios de Geoperformance ocorridos no ano de 2017 e 2018 em Porto Alegre-RS no Brasil

 

A fuga do Eu para a hipótese da georperformance é crucial para entender a sua proposição. Abrir mão da interiorização do eu é retirar o gesto da performance de sua tutela a um alguém que o teria feito, um sujeito autoral ao qual temos a obrigação de conhecer para entender a “obra”. Aqui a questão é como ignorar todas as circunstâncias que preparam a obra, para que seja possível aproximar-se dela em si mesma, liberando-a para um acesso desterritorializado de uma propriedade exclusiva. O que importa, nesse caso, é entender que o processo artístico desde sua preparação, execução e manipulação de matérias (me refiro de modo expandido aqui) produz um método que se desloca do artista até o fora, deixando de pertencer ao mesmo, assim como cada performance em ação produz um corpo exógeno à subjetividade do performer. É esse corpo que podemos apreender, assim como é esse corpo que devemos aprender a produzir. O processo imersivo da geoperformance ao tentar borrar o Eu, procura deslocar a subjetividade até o fora, de modo que ela se torne estrangeira a si mesma, pois só no fora esse eu se desfaz a ponto de atingir um universal, de modo que “pertença” a todos e não mais a um.

Desde os anos 1960, uma fração da arte conceitual toma a subjetividade enquanto um fenômeno interior. Disso decorreu entendê-la na arte que se propõe política enquanto uma identidade, unidade e presença. Muitos artistas, por exemplo, que utilizam o campo dos afetos em seus trabalhos, acabam por reduzi-los em uma interiorização psicologizada, na qual a ficção indivíduo restringe a modulação desses afetos ao rosto de um artista. É como se agir politicamente contra as opressões estivesse ligado exclusivamente às experiências fechadas em um único corpo. Mas essa tendência é recente na arte contemporânea. Quando a arte conceitual viveu seu giro afetivo após os anos 1960, essa demanda foi encarnada por coletivos de artistas engajados em politizar o pessoal nas estruturas de poder [6]. Porém, a partir do que existe hoje, é possível falar em um segundo giro afetivo na arte, em que reagir à violência é o mesmo que incorporar o afeto em uma dimensão individual limitada à produção e incorporação discursiva.

A geoperformance entende que a violência não é redutível aos atos pontuais sobre nossos corpos. A violência age em potencial num campo superior [7]. Isso significa que é possível responder a ela adentrando potencialmente no mesmo plano em que ela se encontra. Pois se a mesma é um evento de uma esfera dos poderes, enfrentá-la equivale a recuperar o espaço potencial e ocupá-lo novamente. Isso demanda nada mais nada menos que uma organização estratégica que extrapole a cena individual e entenda a violência por pontos comuns e opostos ao mesmo tempo. Essa interiorização do político enquanto confirmação de um espaço limitado pelos estilos de vida e pelas subjetividades apenas confirma o fracasso em propor uma outra modulação do real. Desrostificar o afeto para localizar a violência em um plano mais complexo do que ela se apresenta é conspirar novas formas de defesa, ação e destruição.

Quase nada do que a geoperformance propõe é novo. Não posso deixar de pensar em Antonin Artaud quando ele acredita que as formas possuem o poder de apoderar-se dos sentidos em todos os planos possíveis, nos quais a vibração é resultado de um encantamento imanente para além da percepção. Considero, assim como Artaud, que a ação (encenação para Artaud) é antes de tudo uma espécie de magia e de bruxaria, onde não importa entender o jogo de linguagens sígnicas ou o quão correta é tal ação para um sistema de valores morais, mas sim o que pode ser extraído enquanto consequência objetiva dos gestos, palavras, sons e choque dos corpos em um recorte de espaço-tempo [8].

Já faz algum tempo que muitos artistas estão obedecendo ao conceito de justaposição em suas criações. Mas justapor não é o mesmo que aproximar-se de um fora. Justapor não é magia, é simples acumulação acelerada de ready-mades ocos inanimados. O erro de Marcel Mauss e também de Lévi-Strauss é pensar que a magia funciona por acumulação somente, evitando qualquer tentativa de subtração [9]. Qualquer acumulação sem a pretensão de uma modulação implica em agregar sem estranhar-se ante as matérias com as quais se aproxima. Tanto a aberração do estranhamento como a subtração fazem parte do processo mágico. Pois nenhuma matéria em si tem a obrigação de servir ou filiar-se ao humano. Um processo de aproximação ingênuo é aquele que entende que “nós” podemos controlar o fora, ou até mesmo estar aí.

Na geoperformance, o real é mutação a priori, em que a vida humana ficcionaliza a sua independência em relação ao fora, a fim de sustentar a normalidade e o familiar. Mas não existiria ordem simbólica, ou seja, tudo no seu lugar, sem as forças do fora modulando o real. Por isso é um erro chamar a performance de linguagem quando essa é a arte que desmonta (ou pode desmontar) o plano simbólico (ordenamento, sujeito, rostidade…), pois a performance em si é uma caminhada até o fora sem Eu. Uma coisa aberta ao estranho.

Iniciei este ensaio com um trecho do livro O novo tempo do mundo, de Paulo Arantes. Um dos elementos desse livro, o qual acredito o trecho escolhido aproximar-se, entende o presente enquanto presente estendido, um fenômeno que é um aspecto cultural da temporalidade, em que não é o novo que está impossibilitado de acontecer; somos nós, inseridos nessa atmosfera, que não podemos agir com um futuro experimentável em mente. Ao tentar apanhar o presente para prever o futuro, o amanhã se torna cada vez mais colado com o hoje. Logo, o modo como gestamos o presente capturará o futuro no agora. E como estamos gestando esse futuro que já chegou senão de maneira devastadora? É ainda na segurança absoluta do conforto entre iguais e no combate catastrófico contra a estranheza que devemos continuar a investir?

 

NOTAS

[1] Refiro-me aqui à fotografia Erótico Velado, de 1933, de Man Ray.

[2] Cf. Simon Reynolds, Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past.

[3] Richard Schechner refere-se à reperformance de 18 Happenings in 6 Parts, de Allan Kaprow, em 2014, e à retrospectiva de Marina Abramović no Museum of Modern Art, em 2010, The Artist Is Present, onde várias de suas performances foram reperformadas.

[4] Sobre o conceito de Quebranto dentro desses aspectos ver o meu ensaio “É-videntes: Notes pour la Fin d’Un Monde” para a revista Trunoir, de 2020. Ver em: <http://www.trounoir.org/?E-VIDENTES-NOTES-POUR-LA-FIN-D-UN-MONDE>.

[5] Esse comentário é diretamente inspirado no livro Ghosts of My Life: Writings on Depression, Hauntology and Lost Futures do autor britânico Mark Fisher.

[6] Aqui podemos citar a experiência da Womanhouse em 1972 na Califórnia, Tucumán Arde na Argentina ditatorial de 1968 ou a guinada antiarte de Lygia Clark ao fundar um consultório experimental para práticas coletivas de trabalho do inconsciente em 1978.

[7] Entre esses giros afetivos, tentamos recuperar a ousadia dos primeiros e distanciar-nos das limitações do segundo.

[8] Cf. Antonin Artaud, O teatro e seu Duplo.

[9] Essa é uma questão levantada por Marcel Mauss no livro Sociologia e Antropologia, e por Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, Paulo. O Novo Tempo do Mundo e Outros Estudos sobre a Era da Emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

FISHER, Mark. Ghosts of My Life: Writings on Depression, Hauntology and Lost Futures. Lanham: John Hunt Publishing, 2014.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 2012.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

REYNOLDS, Simon. Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past. New York: Faber and Faber, 2011.

SCHECHNER, Richard. “The Conservative Avant-Garde”. New Literary History, v. 41, n. 4, 2010.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

ESPÍRITO SANTO, Ali do. “Um Tridente de Hipóteses sobre a Performance. É Possível Ir Além da Gestão do Presente?” eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e o autor

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