A Teoria do Encosto e a Performatividade do Corpo

 

Antes de tudo, para compreender a característica performativa do corpo, é preciso saber que ele não possui uma forma estável natural: a postura ereta de um esqueleto muito móvel permite uma ampla variedade de articulações sensório-motoras. Essa “abertura” faz do nosso corpo ao mesmo tempo paciente e agente da cultura, formando as disposições que nos conduzem enquanto hábito, como modo de perceber o mundo e de agir nesse mesmo mundo. E é essa característica de “abertura” que possibilita as mudanças tanto do corpo quanto da cultura.

Essas disposições são ordenadas nos músculos na forma das atitudes organizadas na postura corporal. Assim, obedecem às leis do equilíbrio cuja falha, houver, aciona reflexos para impedir a queda. Isso quer dizer que na medida em que um afeta a estabilidade da atitude do outro, afeta também o modo como o equilíbrio do corpo está organizado habitualmente. Trata-se de um jogo cujas regras são ao mesmo tempo impessoais, com a urgência de equilíbrio, e pessoais/sociais, em que há o confronto entre disposições que ora se desequilibram umas às outras ora se complementam na forma de hábitos.

O estudo da arte da performance é enriquecido quando se aproxima dessa perspectiva incorporada à cultura, às relações sociais e aos processos mentais, baseada nos desdobramentos éticos e políticos do sistema sensório-motor. Perguntamos, então, como o corpo forma padrões de comportamento e como se transforma? Seria o mesmo que perguntar: o que move o corpo? Para responder a essa pergunta, vamos usar a metáfora da marionete biomecânica.

 

A Marionete Biomecânica

A estrutura biomecânica do corpo humano pode ser comparada a uma marionete: as unidades motoras, que unem músculos e tendões ao cérebro, podem ser entendidas como os cordões que movem o esqueleto, esse boneco articulado e movido por cerca de 400 mil unidades motoras, os tirantes da marionete. Mas, se considerarmos os níveis de tensão que cada uma das unidades pode aplicar nos músculos, esse número triplica. Essa versatilidade permite a compreensão da característica performativa do corpo, tanto na sua possibilidade de assimilação de padrões e repetição, quanto na sua possibilidade de formar novidade, interrompendo os padrões e irrompendo em criatividade.

Essa marionete, que somos nós, está imersa num campo de afetividade. Afetividade provém do latim fac, que quer dizer fazer. Isso significa que “o objeto nos afeta, isto é, faz algo conosco, e nós o afetamos, fazemos algo com ele” (Ibidem, p. 106). Por objetos, entenda-se também corpos que podem estar em movimento, como os corpos vivos. Hoje, o campo dos afetos vem se ampliando, na medida em que “a interatividade é toque. As redes são prolongamentos e extensões do toque com respostas em tempo real e em escala global” (KERCHKOVE, comentado por DOMINGUES, 2002, p. 141).

 

O que Move a Marionete Biomecânica?

 

A penetração no campo mítico (…) é pouco vivenciada pela maior parte das pessoas, que têm noção precária desse estado. (…). A instauração do campo mítico é o ponto de partida para o trabalho de roteirização, de laboratórios e, finalmente, para a apresentação dos espetáculos. (COHEN, 2006, p. 67)

 

Para o propósito deste texto, tratarei apenas da regência dos Deuses, dos demônios e do Destino, pois na pesquisa completa tratamos também do “eu” e da “teoria” na manipulação da marionete que é nosso sistema biomecânico.

 

Os Deuses e os Demônios 

Comecemos com Csordas (1990), que desenvolveu uma pesquisa sobre dois grupos religiosos protestantes neopentencostais norte-americanos. Sua análise foi guiada pelos conceitos de consciência pré-reflexiva e de hábito aplicados no domínio empírico da experiência e da prática religiosa, pois no corpo podemos perceber a teoria da prática. Em seu estudo “inclui objetos culturalmente reificados, especialmente seres sobrenaturais e as práticas associadas a eles” (CSORDAS, 1990, p. 6), enquanto esquemas disposicionais reificados.

Nos cultos que estudou, os rituais visam expulsar demônios ou acolher a mensagem e a cura dos anjos ou seres celestiais que se aproximam das pessoas. Ele percebeu que os participantes do culto não reconhecem os demônios como parte deles mesmos; os demônios são vistos como entidades autônomas (Ibidem, p. 14). Por isso, Csordas entendeu os demônios como objetos-disposições, e suas manifestações entre os participantes, como self-objetificações concretas desses objetos culturais no culto religioso. Descreve ainda os demônios como objetos com significados e expressões convencionalizadas e dependentes da orquestração do ritual. Eles não são manifestações inteiramente espontâneas, pois se trata de uma “coordenação de imagens cinestésicas culturalmente definidas como manifestações de espíritos malignos, incluindo vômitos, escrever no chão, assovios, virar os olhos para cima” (Ibidem, p. 17). O culto visa curar o corpo, as emoções e os sentimentos provocados pelos demônios manifestados diante da manifestação, também cinestésica, da presença do Poder Divino por meio de alguns participantes. A cura acontece pelo “repouso no espírito”, vivido como uma dissociação motora na qual a pessoa é dominada ou “desmaiada” pelo relaxamento provocado pela presença de Deus: uma “aceitação encarnada de Deus”. Essas imagens demoníacas e Divinas correspondem a disposições corporais características do ambiente religioso que as evoca. Está em jogo, aqui, um conhecimento corporal de disposições culturalmente compartilhadas.

Em algum momento do culto, ocorre a manifestação do dom de “falar em línguas”, quando alguns participantes se entregam à língua dos anjos. Partindo do princípio de que a fala é um gesto fonético, e que toda a linguagem tem um significado existencial gestual, “a glossolalia, por sua característica formal e eliminação do nível semântico da estrutura linguística, realça a realidade existencial dos organismos inteligentes que habitam um mundo significativo (…) o dom de línguas é uma declaração ritual de que habitamos um mundo sagrado, uma vez que a linguagem ritual é um dom de Deus” (Ibidem, p. 24). Para Csordas, a ausência do nível semântico revela a fala como um ato corporal e fundamento da linguagem: o verbo divino feito carne, que revela, nesses cultos, mediante o dom manifesto em algum participante, uma posição existencial que antecede a palavra codificada, é a personificação não verbal do pensamento (Ibidem, p. 26), “puro ato de expressão não sujeito à codificação” (Ibidem, p. 27).

Agora, vamos adiante para entender que também os demônios consistem em predisposições culturalmente constituídas e reificadas na forma de atitudes com qualidades destrutivas ou violentas. Eles são capazes de se apossar de qualquer indivíduo nas situações em que são “evocados”, ou seja, podem possuir o corpo e a mente daquelas pessoas com as quais sua qualidade é identificada. Podemos relacionar aos demônios algumas possessões cotidianas, que nos fazem reagir tomados por comportamentos sobre os quais já ouvimos falar muitas vezes ou vimos atuar, como, por exemplo, os seguintes personagens sociais típicos: o “ciumento”, não como um sentimento, mas como uma gestualidade que lhe diz respeito – o jeito de expressar o ciúme; a “autoridade”, que faz com que tantas pessoas, ao assumirem uma posição de comando, imediatamente incorporem certa gestualidade; o “rebelde”, quando diante de alguma situação de contrariedade; a “vítima”; o “homem”; a mulher”; a “mãe”; e tantos outros.

Quando citamos esses personagens sociais, imediatamente imaginamos o jeito de cada um deles e a maneira como se “encostam” em nossas ações, comandando-as. Mas por que demônios? Porque “amarram” a pessoa a uma reação padrão, emperrando as muitas possibilidades de comunicação e interação disponíveis. Os demônios prendem a pessoa numa teimosia em conduzir as emoções numa única direção, e muitas dessas emoções não oferecem nenhuma solução: o demônio “cega” e “amarra”, como diz bem a sabedoria popular. Mas como ele “amarra”? Amarra com os músculos que conformam a atitude “endemoniada”.

Por sua vez, o “repouso no espírito” não pode ser sentido sem relaxamento muscular. O relaxamento propicia o “desencosto” porque libera o corpo das “tendências esmagadoras” comandadas pelos demônios das atitudes, das disposições reificadas socialmente. Gaiarsa, em 1988, portanto bem antes de Csordas, já escrevia que esse sentimento de “repouso no espírito” é entendido como “algo maior do que o ‘eu’ que me move”. Para ele, as habilidades criativas de sustentação do nosso corpo agem afrouxando os interesses das atitudes habituais já transfiguradas em demônios, emergindo no estado de relaxamento quando “nosso potencial motor ‘ligado’ (…) pode responder por certo sentimento que, esse sim, reside em todos nós. Podemos emprestar várias fórmulas verbais a esse vago sentimento ou sensação: ‘sou mais do que sou’, ‘sou mais do que aparento ser’, ‘posso mais do que faço’, ‘posso mais do que sei’ (…) Poderia também responder pela clássica definição mosaica de Javé: ‘Eu sou aquele que É’, ou pela intuição filosófica de Schopenhauer: ‘Deus é vontade pura’, quanto de S. Tomás: ‘Deus é Ato Puro’. As três definições contêm uma noção negativa básica: ausência de energia potencial; as três contêm a noção de atualização perfeita, dinâmica pura” (GAIARSA, 1988, p. 75).

O conflito com os demônios se deve ao fato de que as atitudes “endemoniadas” que “encostam” em nós concorrem com a emergência das novas atitudes propostas pelo nosso sistema de equilíbrio – nosso anjo da guarda?! – diante das situações que exigem uma recolocação, e que poderiam se manifestar como “vontade pura do espírito”, mas que são barradas pela ação dos demônios como tensões musculares ativas e padronizadas. Para Gaiarsa, essa seria a base do conflito entre o orgulho – que reage ao temor de queda diante do desequilíbrio provocado pela novidade, o pecado original, sem o qual não seríamos perturbados pelos demônios encostados – e a humildade propagada pelas religiões – que permite a renovação e o alívio proporcionado pelo “repouso no espírito”, pela mão do Grande Espírito. No êxtase da entrega religiosa, “o indivíduo descobre, com surpresa, que ele ‘não precisa fazer nada’ para existir. Descobre que algo nele é maior do que ele, e que a esse algo é possível confiar-se – e dormir. Descobre que ele existe antes do ‘eu’ e pode continuar existindo mesmo sem o ‘eu’, sem deliberação, sem atenção, sem intenção” (Ibidem, p. 79).

Quanto ao Espírito, Gaiarsa oferece ainda mais. Repara que, em sua etimologia, Espírito deriva de “sopro”; o latim spiritus significa “que sopra”. O Espírito permite a relação do homem com Deus através da respiração e da atmosfera: “as ideias relativas às coisas concretas eram alguma coisa invisível, mas muito atuante: uma operação potencialmente criativa, capaz de gerar e definir os objetos ao modo como a laringe e a boca formam as palavras. Todas as coisas tinham uma essência ou um espírito capaz de ‘explicá-las’, isto é, todas as coisas podiam ter um nome! Todas as coisas eram ‘pensamento divino’ – palavras de Deus!” (Ibidem, p. 18). Com essa explicação, Gaiarsa deixa explícito que “as palavras são uma forma que contém um significado”, e é assim que ele relaciona o anjo (mensageiro) alado à palavra que voa no ar: “palavras são mensagens que caminham no ar e são feitas de ar. Palavras são anjos” (Ibidem, p. 18). Mas também podem conter demônios…

Gaiarsa ressalta ainda que embora as palavras tenham essa leveza e invisibilidade, elas atuam no corpo, “faz a gente tomar posição; preparar-se para a coisa, para ir com ela – ou contra ela” (Ibidem, p. 18). Importa ressaltar que cada atitude contém uma respiração que lhe é própria, moldada por ela. Embora a musculatura da respiração seja lisa, quer dizer, não treinável, ela é “envolvida” pelo sistema muscular que sustenta o tórax e a coluna. O conflito que vivemos diante de uma situação na qual não sabemos como nos colocar implica num conflito respiratório, na “disputa” entre atitudes incertas e, muitas vezes, divergentes entre si. O conflito é geralmente expresso no imaginário popular como inspiração dos anjos ou tentações dos demônios.

Isso nos remete ao conceito de “ecologia do espírito” (STIÈGLER, 2002), já que os espíritos estão à solta e se propagando, talvez como nunca, pelos novos médiuns que lhes dão suporte, ou seja, pelos avançados meios de comunicação e informação, que também servem como médiuns para os demônios a serviço da captação dos tempos da consciência. Afinal,

 

o espírito é aquilo que permite que a experiência individual (…) se torne experiência comum de partilha, não somente como memória dos fatos, mas como herança de problemas a resolver, de questões a ruminar, de ideias a defender e a explorar. (…) O espírito é uma capacidade de retorno ao passado. É por isso que os espíritos também são as almas dos mortos, os fantasmas. Mas não existe espírito sem um médium (sem intermediário), e esse é aquele que conserva a memória como organização da matéria inorgânica (Ibidem, p. 98).

 

Daí então as tecnologias como médiuns.

O excesso da atividade espiritual propiciada por essa intensificação dos médiuns tecnológicos deve ser aplainado pelo “Repouso no Grande Espírito”, quer dizer, pelo relaxamento que desfaz as inclinações, tendências e intenções teimosas ou contraditórias que agem sobre os conflitos respiratórios. Desse modo, a atuação do relaxamento pode nos auxiliar a encontrar o Caminho. Mas isso só será possível desde que a ideia de Grande Espírito não seja sequestrada por um sistema de dominação. Contra isso, é sempre bom lembrar da irredutibilidade do poder do Grande Espírito.

A entrada dos demônios é favorecida pelo medo da queda, ou pelo conflito provocado pelo medo da queda: cair, não sustentar a postura, “porque o risco da queda é o mais poderoso estímulo à zona reticular do mesencéfalo. É o que mais nos chama a nós mesmos” (GAIARSA, 1988, p. 62). A relação entre o medo da queda e o orgulho é a relação perigosa que atrai os demônios quando o medo da queda leva a uma reação que atrai uma atitude habitual na forma de esquemas de esforços reificados ou coisificados. O medo da queda é também o medo da emergência do novo que nos levará a um caminho desconhecido. Entregar-se é se deixar levar pela mão de Deus: ela moldará do barro, da massa informe, a forma que abrirá novos caminhos. “Muitos autores falam, esporadicamente, do temor da queda, mas atêm-se ao seu significado simbólico. Haveria em todos nós o temor da queda moral, da decadência, da degradação, da humilhação e outros. Tenho, contra essa interpretação, que o temor de queda é real – temor de levar um tombo. Os significados apontados decorrem deste, e não o contrário” (Ibidem, p. 60).

A oscilação da sustentação do esqueleto provoca a sensação de que estamos desamparados, nos sentimos perdidos, sem sentido, temendo o ridículo de cair de quatro, regredidos como um animal ou uma criança, esmagados em nossa dignidade antigravitacional: “a queda é sentida por quase todos como ‘culpa’ própria… ou do outro (…), note-se com que facilidade o ‘eu’ se identifica ao nosso aparelho – de certo modo impessoal – de equilíbrio; como abusa dele tanto na vitória como na derrota” (Ibidem, p. 82).

Edgar Morin, ao propor um retorno do “homem” ao fluxo da physis, contribui para a compreensão da manipulação da marionete mecânica pelos Deuses e demônios. Com sua concepção de homem como sapiens-demens, ele afirma que:

 

a crença de que a transformação (do mundo) alcança uma outra vida em que se mantém a identidade do transformado (renascimento ou sobrevivência do ‘duplo’) indica-nos que o imaginário irrompe na percepção do real e que o mito irrompe na visão do mundo. Daí por diante, o imaginário e o mito passam a ser simultaneamente produtos e coprodutores do destino humano (MORIN, 1973, p. 95).

 

O duplo nasce com o desenvolvimento maior da percepção das individualidades particulares, inclusive da de “si mesmo” e da do “eu – do outro”, que se observa na sofisticação dos rituais funerários que fundamentam essa irrupção do duplo, e formam o sapiens-demens. Sapiens porque conhece as transformações e age sobre elas, demens porque irrompeu na emoção intensa da qual emerge o imaginário que nunca mais abandonará a realidade. O duplo surge como a permanência da imagem do morto ou do longínquo. Nas pinturas rupestres, “a imagem contém a presença do duplo do ser representado e permite, por seu intermédio, agir sobre esse ser; é essa ação que é propriamente mágica: rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de possessão sobre a imagem (enfeitiçamento)” (Ibidem, p. 99).

Os objetos do mundo passaram a ter simultaneamente uma “presença no espírito”, no imaginário, no “outro mundo” onde habita o duplo: “daqui em diante, todo o significante, incluindo o sinal convencional, transportará potencialmente a presença do significado (imagem mental) e esse último poderá se confundir com o referente, isto é, com o objeto empírico designado” (Ibidem, p. 99). A ação do homem sobre o mundo passa a ser feita também no mundo do duplo (das imagens e dos símbolos): é o fundamento da magia. E os ritos mágicos são feitos através de movimentos corporais, através da mimese e de gestos simbólicos, incluindo aí as ações vocais, cantos, chamadas etc.

Sobre essas ritualizações, Gaiarsa diz, com base na biomecânica: “creio que nos será dado compreender também o ‘mito do herói’ em todas as suas variantes, desde o mais alto budismo até a mais humilde macumba. Não procuram todos eles, na contemplação e no ritual, entrar em contato e talvez assenhorear-se de uma certa força poderosa? Será desvario humano ou haverá, em tudo isso, uma intuição obscura basicamente correta?” (Gaiarsa, 1988, p. 77). Trata-se, dessa forma, de processos através do quais atraímos determinados poderes às ações.

Um apoio pode tanto nos amarrar – como vimos acima – como pode nos ajudar. Alertamos para o fato de que “não existe apoio gratuito”, porque o apoio permite mais eficiência numa direção específica e preferencial. Ele é análogo às distribuições de forças musculares sustentadas sobre um centro específico de sustentação e de aplicação dessas forças. Assim, contar demais com um mesmo apoio corresponde a constituir deformações tensionais crônicas (Ibidem, p. 88), que se transformarão numa amarração endemoniada.

A habilidade do feiticeiro, do pajé, do pastor ou do padre corresponde à sua habilidade de, ao mesmo tempo, expulsar os demônios e atrair para si as forças intercessoras, quando, em instância última, devem promover a entrega de si próprios ao poder do Grande Espírito. Entregar-se ao Grande Espírito exige a entrega do Guerreiro ao mistério do desconhecido.

E os Deuses? No imaginário popular eles habitam numa “esfera” superior à dos demônios, e não amarram as pessoas, mas as auxiliam, desamarrando-as. Eles também são representados num gestual próprio do qual emana a qualidade da força que os caracteriza. Jung (2005) chamava essas imagens do imaginário de arquétipos que habitam o inconsciente coletivo, que podem ser relacionadas às condições estruturantes da evolução do corpo da humanidade. Entendemos que o fato de serem estruturantes significa que correspondem à condição da ação, e não sua consequência. Por isso libertam e não aprisionam: são Deuses e não demônios. Favorecem os processos criativos da autopoietica da postura ligados aos quatro elementos: o poder do fogo, da água, da terra e do ar transformado em poder humano, ou em competência humana, como a generosidade da água expressada nas mãos estendidas sob a intenção de um abraço e a disciplina exigida pela terra seca, que nos fez erguer os olhos para além do horizonte e planejar o futuro com esperança em uma terra prometida.

Pires (2009) reconhece que os Deuses universais estão vinculados a estes elementos desde o trabalho do xamã, e estão associados também aos poderes animais na perspectiva de uma natureza anímica. Mircea Eliade (1996), por sua vez, reconhece na trajetória do Deus do ocidente, Jesus, a trajetória de iniciação do xamã: o chamado do espírito, as tentações, os aliados, o flagelo e a descida aos infernos, o contato com o Pai, a morte do corpo mundano e o renascimento do corpo sagrado (entre inúmeros outros detalhes que estão fora do nosso propósito desenvolver aqui). Essa trajetória também é reconhecida por Brandão (1996) como familiar à vivida durante a iniciação dos adeptos do orfismo grego, até o ponto culminante do renascimento no espírito. Isso tudo permite supor um referencial humano comum na evolução da consciência com base nas condições estruturantes das disposições corporais, embora diversificada nas trajetórias culturais.

Já sabemos que as formas do imaginário correspondem às habilidades motoras, imagens-habilidades que podem ser estabilizadas nos processos de reificação ou na forma de esquemas motores que se estabilizam e percorrem os homens no plano da imanência. Como reificações, podem ser evocadas e manipuladas, mas também se transformam. Edgar Morin (1973) conta com as trans-formações: “é nas suas características radicais que a estética das formas vivas deixa de se reduzir às funções eficazes, adaptativas, seletivas, e surge imanente do jogo nengentrópico da vida, que é combinação, diferenciação, proliferação inventiva das formas. Assim se pode reunir o jogo luxuoso da vida na sua origem e o jogo luxuoso da cultura no seu desabrochamento” (MORIN, 1973, p. 101). Isso é possível devido à extrema criatividade potencial da postura humana: um esqueleto muito articulado cuja forma é tecida pelos músculos-cérebro na relação criativa com o ambiente, um ser em grande medida criador da própria forma autopoietica, ao mesmo tempo livre e infinitamente comprometido no campo dos afetos.

Lembramos que afetividade é a capacidade de exercer “um fazer” sobre as coisas, e vice-versa, através de um corpo que oscila continuamente para todos os lados, que balança, emocionado, formando sentidos e direções: caminhos. “Vê-se bem que o que caracteriza o sapiens não é uma redução da afetividade em benefício da inteligência, mas, pelo contrário, uma verdadeira erupção psicoafetiva e, inclusivamente, o aparecimento da húbris, isto é, do excesso, do desmedido” (Ibidem, p. 107). Assim, podemos incluir no caráter oscilatório dos sistemas metaestáveis, que Morin relaciona com o caráter “vibratório” no cérebro do sapiens (Ibidem, p. 103), a oscilação biomecânica contínua, já que o cérebro não pode ser separado do sistema sensório-motor. Trata-se do balanço contínuo do esqueleto envolvido no afeto que é um fazer do meio sobre o corpo que, por sua vez, refaz o meio, inclusive o meio do outro mundo do duplo, o imaginário.

 

O Destino

Sobre os artistas que trabalham com o corpo na arte da performance, Cohen disse que,

 

se o artista funciona como uma espécie de antena que capta e transmite uma mensagem – e para isso, mais do que uma sensibilidade aguçada, ele dispõe de tempo e interesse de pesquisa – é fundamental, para se situar a arte da performance dentro de um contexto maior, analisar o “envoltório” para onde estão apontada as antenas. Para tornar mais claro o conceito de envoltório, torna-se necessário entendermos o termo environment: essa palavra, que não tem tradução satisfatória em português, diz respeito ao clima, ao envolvimento, ao meio ambiente. Seria uma espécie de cor de fundo, não no sentido de uma mera referência estética e sim como uma “energia” que está no ar. Usando uma expressão da gíria, environment poderia ser traduzido por “astral”. É esse astral que é consequência de fatos, comportamentos e, talvez, de um fator “destino” que é captado. (COHEN, 2006, p. 144)

 

O conceito de environment pode ser aplicado no contexto deste estudo e relacionado à concepção de tenda que proponho nesta pesquisa: essa “energia” que está no ar pode ser compreendida como a sensação, que emerge na consciência como imagem mental, das resultantes virtuais dos esforços musculares dirigidos e sustentados na poética do corpo de cada um em particular, mas, ao se cruzar esses corpos, formam a tenda resultante, que é o envoltório, invisível, mas sensível. Sensível porque os movimentos são sensações que se transformam em percepção das intenções pela propriocepção: “os sinais proprioceptivos/cinestésicos formam numerosos mapas dos aspectos do corpo que eles descrevem. Esses mapas situam-se em vários níveis do sistema nervoso central, da medula espinhal até o córtex cerebral. O sistema vestibular mapeia as coordenadas do corpo no espaço, completa as informações sômato-sensitivas” (DAMÁSIO, 2000, p. 200). Gaiarsa (1988) já chamava a atenção para ficarmos atentos à sensação muscular no intuito de compreender o processo que leva nossas ações, ao invés de ficarmos presos na relação olho-fala-ouvido.

O environment ou a tenda, como prefiro, é um espaço significativo que faz sentido, que unifica a todos no equilíbrio conjunto de tendências diversificadas. Essas diferentes tendências são unificadas nos esforços de composição, mesmo nas situações de oposição e contrariedade. A identificação de uma tenda se sustenta na assimetria ou onde os esforços de equilíbrio dependem da harmonização constante da assimetria provocada pelas ações que derivam da poética do corpo e de suas transformações. Por isso, na tenda existe um sentido invisível, mas cultural, conjunto, comunitário.

A antena dos artistas citada por Cohen é a sensibilidade para sentir as forças do destino: a direção significativa da ação, para onde tende a tensão na tenda. A mensagem assimilada, transmitida e manipulada, nesse contexto, é essa: a resultante vetorial das ações contidas nas atitudes do corpo ou na poética do corpo. Essa é a energia cuja definição da física pode ser dita como o que leva ao movimento ou o que faz as coisas entrarem em movimento. E, no mundo dos homens, o que leva ao movimento do destino é o sistema biomecânico do corpo.

Para tratar do destino, nos remeteremos às Fiandeiras-Tecelãs Sagradas, que fiam o fio da vida e tecem o destino dos homens. Elas são muitas e espalhadas por várias regiões culturais do planeta. O trabalho das fiandeiras e das tecelãs é uma metáfora para compreendermos as tramas que nos envolvem, pois está nas mãos das Fiandeiras Sagradas o processo que faz das ocorrências acontecimentos que formam um contexto. Gaiarsa trabalha com a hipótese de que a palavra acontecimento deriva de tec, que, por sua vez, derivou de tex, raiz da qual se derivaram os termos têxtil, tecer, técnica, e contexto. Contexto, então, pode ser compreendido, se relacionado com têxtil e tecer, como “fios que se reúnem em certa ordem, formando um todo (…) são movimentos coordenados que ligam as coisas em conjunto ou em uma sequência determinada” (GAIARSA, 1988, p. 42), o que lembra o encadeamento “dos milhares de tensores musculares, cada qual funcionando como uma agulha de um tear” (Ibidem).

Temos, então, internalizadas as Fiandeiras e Tecelãs Sagradas em nosso sistema sensório-motor. Elas são uma referência tão poderosa, que podem ser encontradas na forma mítica das mais diversas culturas, duplicadas no outro mundo. As mais conhecidas são as Moiras dos gregos, sobre as quais voltaremos a tratar mais adiante. Por enquanto, vejamos um breve panorama das diversas entidades que aparecem em mitos do mundo todo e têm relação fortíssima com as Fiandeiras e Tecelãs Sagradas.

As Parcas (Cf. BRANDÃO, 1996) eram as três fiandeiras que conduziam o destino dos romanos, cuja etimologia vem de parere, parir, dar à luz. Originalmente eram encarregadas do nascimento dos homens e, posteriormente, também foram encarregadas da morte, por influência da proximidade com as Moiras dos gregos.

As Iyá-Mi-Osoronga (Cf. MOURA, 1994), entidades extremamente antigas, conduzem o destino dos adeptos do Candomblé, de origem africana. Conhecidas como as Senhoras do Pássaro da Noite, são três entidades femininas que representam a possibilidade de gerar filhos e de povoar o mundo. São grandes feiticeiras relacionadas ao poder da noite, e suscitam um pavor que as aproxima das Queres, irmãs das Moiras.

As Nornas (Cf, DURAN, 2004) são as três fiandeiras gigantas que conduzem o destino dos nórdicos. Também são extremamente antigas, nasceram junto com os deuses primordiais. Vivem perto de umas das raízes da árvore do mundo, onde há um poço de águas brancas que elas espargem sobre as raízes da árvore do mundo para adiar sua destruição inevitável pela serpente gigante que a devora pouco a pouco. Frigga (Ibidem), “Aquela que Ama”, a Grande Tecelã, conduz o destino dos escandinavos: é a “Senhora do Destino”. As Nornas, como fiandeiras, enrolam os fios e Frigga tece o destino num grande tear que nos liga aos nossos antepassados.

Maria, a tecelã, rege o destino dos cristãos. Maria, cujo fruto do ventre é bendito. Ventre: a caverna onde se inicia o fio da meada da vida. Maria, bendita entre as mulheres na linhagem da Grande Mãe. Mãe de Deus, cujo véu assemelha-se às “águas” da matéria primordial. Maria, que roga por nós agora e na hora da nossa morte. Amém.

As Grandes Tecelãs também estão presentes em outras mitologias, como na egípcia, através da Deusa Neith, protetora da tecelagem, e, entre os maias como A Grande Tecelã ou a Grande Fiandeira, entre outras (Ibidem).

Retornando às Moiras, sabemos que elas nasceram da primeira geração divina e conduziam o destino dos gregos. A palavra Moira, em grego, significa “parcela”, a “parte que te cabe” no destino, a parcela de vida, de sofrimento, de benesses (Cf. BRANDÃO, 1996). Elas são descendentes das primeiras gerações do Caos, do qual surgiu primeiro Geia e depois Urano, que, unidos, geraram filhos. Urano devorava os seus filhos e impedia que adquirissem estabilidade e duração. Esse processo de nascimento e aniquilação foi interrompido quando um dos seus filhos, Cronos (Tempo), a pedido de Geia, castrou o pai. Na castração, o sêmen caiu sobre Geia e gerou outros filhos que, então, permaneceram. Entre esses filhos está Noite, mãe das Moiras, e suas irmãs, as Queres, terríveis entidades femininas: a palavra queres é originada de “devastar”, “destruir”. Muitas vezes as Queres foram confundidas com as Moiras no sentido de um “destino cego”. Elas eram terríveis, vestidas de preto, aladas, ostentando grandes unhas.

As Moiras são filhas da resistência da materialidade com a ajuda do tempo: tecem o fio que nos formam, cuja continuidade da transformação, por sua vez, define o espaço-tempo. São mulheres porque estão na linhagem da duração na materialidade da Grande Mãe, participam do destino na imanência ou das formas na sua condição imanente. No mito, como já dissemos, fazem parte da primeira geração divina, tão antigas quanto as Nornas e as Iyá-Mi-Osoronga. São forças constituintes da existência: formadoras, mantenedoras e impessoais. E, por isso, correspondem a um significado de Lei não sujeitável às vontades humanas; não estão disponíveis aos nossos pedidos nem à intercessão dos Deuses.

Na formação da poética do corpo, as Moiras manipulam os fios dos tensores musculares que estabilizam nossas formas contendo ou propondo ritmo ao fluxo das nossas emoções ao longo da duração das relações, configurando os parâmetros de nosso lugar no mundo. Eis então a parte que nos cabe e determina os limites do caminho traçado na forma das nossas atitudes. Nossa autopoietica encontra possibilidades, limite e conformação na Lei das Moiras. São as Moiras que transformam em destino a erupção das emoções provocadas pelos afetos. A desmedida movida pelas paixões, contra a ação das Moiras, leva-nos ao destino cego de suas irmãs: as Queres.

Agindo para além da irrupção emocional, a constituição da nossa parcela pelas Moiras na ideia de tecitura dá a ideia de continuidade, ou de memória, da nossa história pessoal: “as emoções são indispensáveis para a criação e para a categorização das lembranças. Mas o cérebro límbico não basta em si mesmo para proporcionar uma memória inteira. Ele só gera rastros fragmentários, que só se tornam lembranças ao final de um trabalho analítico sobre os pensamentos e as emoções, ou seja, no momento do estabelecimento do contexto” (MEYER, 2002, p. 1000). A continuidade ou memória depende do trabalho analítico dos mecanismos de orientação da perspectiva (DAMÁSIO, 2000) e da constituição das atitudes na postura (GAIARSA, 1988) que operam através dos tensores musculares, dos fios que tecem a forma do corpo, resolvendo os afetos provocados pelo meio e pelas próprias emoções. Disso resulta o contexto tecido pelas Senhoras do Destino.

Para nós, as Moiras não são suscetíveis aos pedidos porque tecem o limite do tecido: não se pode dar o “passo maior do que as pernas”. Essa é a lei da relação entre o principal centro de gravidade do corpo e o polígono de sustentação. Entre eles, a ajuda dos Deuses. Fora deles, a queda, as Queres. As Moiras não são suscetíveis à nossa vontade porque regem os processos automáticos de compensação dos desequilíbrios, agindo muito antes de o “eu” controlar a situação ou de os Deuses intervirem. Para Gaiarsa, os afetos, agindo sobre o equilíbrio habitual, desequilibram, levando o corpo a oscilar em todas as direções, desestabilizando os parâmetros da orientação habitual. Assim, é gerado “um novelo de contradições motoras: não é difícil imaginar que seus novelos mentais estejam ligados aos novelos de tensões musculares” (GAIARSA, 1988, p. 116) que evocam a necessidade de harmonia dentro das possibilidades impostas pelas Moiras.

Isso lembra a ideia pitagórica de que “nenhuma coisa é perfeitamente limitada em sua espécie; mas há sempre algo que as des-limita, o que escapa ao limite. Por essa razão, a harmonização é uma combinação da multiplicidade, uma acordância do discordante, o que realiza uma nova unidade, especificamente superior” (Pitágoras, interpretado por SANTOS, 2000, p. 162). Essa nova unidade é a tenda invisível e sensível do espaço significativo, enquanto resultante das tensões da relação em curso.

O conceito de número, em Pitágoras, corresponde à coerência que dá forma à tensão do todo na autopoietica da postura, e pode nos ajudar a compreender o percurso do destino através da fiação e da tecitura, tal como a estamos tratando, porque envolve o significado de linhas-vetores que se cruzam compondo formas, volumes e intensidades: “se atentarmos para os fatos que constituem nosso mundo, e nesse conceito devemos incluir todos os corpos e fatos psíquicos, veremos que eles não constituem, todos, tensões estáticas, paradas inertes, mas constituem tensões dinâmicas que se processam, que passam de um estado para o outro, que tomam uma direção. O número é, por isso, também processo, ritmo, vetor, fluxo” (Ibidem, p. 113).

Ora, a relação entre o conceito de número em Pitágoras e a biomecânica, como a estamos tratando, é espantosamente evidente. E é assim que, afinal, as Fiandeiras e Tecelãs Sagradas também são conhecidas como Senhoras do Tempo, e tempo aqui é entendido como ritmo: “ritmo é a experiência do fluxo ordenado de um movimento (…) ritmo está para o tempo assim como a simetria está para o espaço (…) há ritmo quando há geração e corrupção, onde há aumento e diminuição, onde há alteração, onde há movimento” (Ibidem, p. 111). A relação do ritmo com a autopoietica da postura da biomecânica parece evidente.

E já que estamos tratando de Pitágoras e do Destino, aproveito para especular uma questão que julgo delicada e envolve aquele que “abre os caminhos”: Exu.

A tradição patriarcal desenvolveu uma ideia da materialidade como a condição do mal, no sentido de que ela é a condição da degeneração das formas dos corpos. Ou seja, a forma, tida como um princípio transcendente, não deforma, o que a deforma é seu contato com a materialidade, “materialidade que cria gerações degeneradas e estratégias para triunfar sobre o Bem da forma transcendental” (Ibidem, p. 174).

Isso lembra a concepção de Exu na mitologia do Candomblé. Exu, nascido do barro que deu forma a si mesmo, é contemplado por Olorum – o UM – que, admirado pela sua beleza, insuflou nele o espírito da vida. Exu, então, é criado a partir da matéria que deu forma a si mesma com a aprovação do Grande Espírito. Ele é filho direto da materialidade com a aprovação da formatividade. Exu, desde então, propicia aos homens o trânsito do profano ao sagrado: ele é o mensageiro. Para nós, Exu é o regente da arte que nasce do acaso nos movimentos imprevistos da matéria, da brecha aberta pela ruptura, que daí surge criando conflitos insolúveis para as sínteses das oposições binárias, mas segue pela fuga que permite as epifanias irredutíveis. Exu: o temido inimigo da paz do simulacro.

Reconhecemos Exu na abertura provocada pela instabilidade biomecânica, quando, da materialidade sem forma, que é “a abertura biomecânica informe”, irrompem soluções formais imprevistas que rompem com as complementações binárias e estáveis. A emergência da novidade na forma cria uma ruptura com o simulacro espacial entendido, na tenda, como repetição e reconhecimento – e também estabilidade –, gerando novos conflitos insolúveis na expectativa jurídica: “de quem é a culpa?”. Ou seja, a novidade dessa ruptura não pode ser explicada pela causa: elemento de irreversibilidade do tempo. Assim, a emergência da novidade é fator de abertura à tecitura do destino através de relações não causais e criativas. Isso permite que compreendamos, então, que nossa vida pertence ao destino, embora não sejamos passivos na destinação, pois

 

todas as nossas atitudes, até o instante que precede a ação, não se definem com precisão completa. Ante a sensação interna, elas são relativamente vagas e ambíguas, cheias de possibilidades diferentes ou divergentes. Isso se deve em parte ao fato de serem sempre equívocos os sentidos das tensões dos nossos vetores – uma vez que o sentido de cada um deles depende do conjunto tensional ativo no momento (GAIARSA, 1988, pg. 94).

 

Essa ambiguidade pode ser relacionada à ambiguidade de Exu.

As Senhoras do Destino fiam e tecem na calada da noite, em lugares reservados. As Moiras fiavam numa caverna, as Nornas num grande salão: reserva que sugere o não controlável. A diminuição da luz na noite sugere a impossibilidade de nossos olhos controlarem aquilo que se prepara para vir à existência, acessível somente nos sonhos, como queriam os surrealistas. Quanto a isso, existe um episódio interessante narrado por Pierre Derlon, em Tradições Ocultas dos Ciganos: os ciganos, durante muito tempo, cultuaram a imagem de Sara, a Negra, no santuário católico de Saints-Maries-de-la-Mer, na França. Sara ficou por longos anos dentro de uma cripta escura, e era considerada pelos ciganos como A Fonte da Grande Mãe, relacionada à Mãe da Tribo. Uma vez por ano iam até a igreja beber da sua fonte. Um dia, o clero católico resolveu tirar a estátua da cripta para levá-la em procissão sob o sol, alegando que havia muitas pessoas para adentrar na cripta. Os ciganos, iniciados nos mistérios sagrados, ficaram perplexos: “o sol queimou o olhar de Sara!”. A escuridão da cripta de Sara corresponde a uma força que não sobrevive quando levada da sombra para a luz.

A luz do patriarcado, conduzida por instâncias autoritárias e controladoras, controla o espaço e o tempo estabilizados geometricamente pelo controle das forças que movem o corpo – e o mundo –, transformando a mobilidade da tenda em templo fixado. Esse sistema centralizador, unilateral e persuasivo fez com que a concepção de destino, regida pelo princípio feminino de alteridade entre o controle e o mistério, fosse mais do que relegada, tornando-a amaldiçoada: aceitar o destino é aceitar ao mesmo tempo o acaso e a limitação, e isso produz medo nos sistemas de dominação.

Para concluir, fiquemos com essa bela passagem do livro A Filha da Fortuna, de Isabel Allende:

 

Tao Chi’en tinha de admitir que se sentia preso a Eliza por fios frágeis e infinitos, fáceis de cortar um a um, mas como estavam entrelaçados, formavam cordas indestrutíveis. Conheciam-se há poucos anos, mas já́ podiam olhar para o passado e ver o longo caminho cheio de obstáculos que tinham percorrido juntos (ALLENDE, 1999, pg. 271).

 

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Revisão de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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