“Reliquiarium Experientiis”: Meu Corpo Diferenciado em Performance

 

A performance Reliquiarium experientiis foi apresentada no dia 24 de novembro de 2014 no Largo de São Francisco (Pelourinho), em Salvador (BA, Brasil), e fez parte das apresentações criativas da disciplina Processos de Encenação, ministrada pela Profa. Dra. Sonia Rangel, no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O título da performance Reliquiarium experientiis, etimologicamente, vem do latim e significa Relicário de vivências. Logo na referida apresentação criativa elenquei como um dos princípios realizar uma arte ao vivo, no aqui e agora, que também se configurou como uma arte viva que deu oportunidade a uma aproximação direta com a vida, em que se preconizou vivências espontâneas, em detrimento do que é/seria ensaiado. A performance Reliquiarium experientiis se fez a partir de um movimento de ruptura com objetivo de dessacralizar a arte, tirando-a de sua função elitista, especialmente na vontade de fazer arte fora dos muros da instituição de ensino superior supracitada.

A ideia modal da performance Reliquiarium experientiis foi trazer à tona a característica ritual da arte, ou seja, fazer com que a arte saísse de espaços institucionais e passasse a assumir uma posição viva na sociedade. Esse movimento é dialético na arte contemporânea, pois se tira a arte de uma posição sacra e se busca uma ritualização dos atos cotidianos da vida (COHEN, 2009). Sendo assim, na performance não ensejei a representação do real, mas a reelaboração do real, na qual a obra de arte tem vida própria e não se limita a representar o objeto mimeticamente, como ocorre no teatro tradicional.

Dessa forma, em Reliquiarium experientiis vislumbro afirmar que o performer é um insurgente [1] da cena contemporânea porque, este indivíduo, inexoravelmente, se insurge contra os ditames totalitários da arte tradicional, bem como contra o anacronismo da sociedade pós-moderna na qual vive, e a qual, através da indústria cultural, produz variáveis discursos e práticas em que tudo e todos são fabricados e descartados se não forem aprovados pela métrica normativa do capital. Essa insurgência se desdobra até mesmo sobre o próprio corpo, como condição de existência ontológica da própria performance feita no hic et nunc cenicamente. A insurgência ocorrida durante a performance Reliquiarium experientiis deu-me oportunidade de dizer que a arte não suporta limitações que intentam petrificá-la. O performer, nesse sentido, delata em sua performance as premissas de sua vida e o sentido de que sua arte necessita estar viva para que, dessa forma, não reproduza os cânones cênicos tradicionais, pois ao romper com o institucionalismo sagrado da arte, finalmente abre fendas nas quais o ser humano se reveste do direito de ser o dono de sua história em devir, pois passa a ser o espetáculo em si, e propõe “a dialética entre os padrões da conduta humana e as estruturas nas quais se apoia entram em crise” (GLUSBERG, 2003, p. 90).

Nesse contexto, em minha pesquisa de doutoramento no PPGAC da UFBA, venho tentando estabelecer especulações entre o pensamento de Antonin Artaud, o qual é o mais importante princípio do referido estudo, principalmente no que se refere à crueldade, e suas reverberações na performance, justamente porque percebo as seguintes proposições e ligações entre as duas formas de espetáculo: 1) Ampliar as fronteiras da realidade na qual se faz o exercício da vida; 2) Buscar fazer e estabelecer elos entre arte e vida, e não a separação entre ambas; 3) Desorganizar aparências, derrubar preconceitos e fazer emergir verdades secretas e não imaginadas, provocando no espectador uma recepção muito mais cognitivo-sensória do que racional; 4) Produzir imagens físicas violentas, baseadas na ideia de ações extremas que provoquem os sentidos e a alma do espectador; 5) Provocar nos participantes um desejo de mudança, não necessariamente partidária; 6) Produzir cenas ritualísticas permeadas pela emoção e, principalmente, centradas no corpo do atuante e em tudo que apele aos sentidos do espectador, renegando, dessa maneira, a dogmatização do texto dramático como sendo comparado ao regente supremo do fazer teatral.

Compreendo que o pensamento de Artaud é insurgente, porque seu pensar/fazer cênico dilatava e embaralhava as fronteiras e os territórios da vida e da arte. Nesse sentido, o teatrólogo francês exigia uma forma de teatro ligada à vida, pois é a partir do desvendamento da vida que se pode interpenetrar teatro e vida. O que ele buscava era a singular religação do teatro com a vida, do mundo material e espiritual, que foi perdido no momento em que o teatro passou a se ocupar apenas com a realidade cotidiana (SALLES, 2004).

No que concerne ao processo criativo da performance Reliquiarium experientiis, parti de imagens de diferentes momentos da minha vida, principalmente as ligadas à religião (educação em colégio de freiras, contemplação das estátuas religiosas, desejo de seguir o sacerdócio, interesse pelas histórias de santos, luta pela aprovação da lei que permitiu as pesquisas com células-tronco embrionárias e a consequente reprovação na disciplina de ensino religioso no colégio etc.). Logo, as “[…] IMAGENS, então, material direto para o poeta: literário, cênico ou visual, compõem unidades primordiais, o Princípio da obra em seu jogo de vir-a-ser, existir, e operar numa rede de conexões individuais e coletivas em diversas formas e formatos. […]” (RANGEL, 2014, p. 53). Assim, durante a performance Reliquiarium experientiis imediatamente intensifiquei e disponibilizei minha imaginação a serviço de suas infinitas formas e formatos, pois ao pensar e fazer sua arte, explorei imagens em ação em infinitas situações que possibilitaram a existência de múltiplas construções da realidade segundo os meus pontos de vista, enquanto produtor e fruidor da performance.

Finalmente, em Reliquiarium experientiis, enquanto performer não separei as imagens em ação de minha vida física instaurada no espaço-tempo do humano, isto é, minha arte fica como um modo de ação que não está indissociável da objetividade da sociedade e, sobretudo, de sua subjetividade. Logo, em Reliquiarium experientiis devo ser compreendido a partir das experiências vividas originárias das percepções experimentadas no mundo que nos cerca e do qual fazemos parte, pois estive disponível para me caracterizar como uma estrutura viva que continuamente se transforma e se adapta ao meio.

Escolhi fazer a performance Reliquiarium experientiis no Largo de São Francisco (Pelourinho) porque, além de ter sido historicamente considerado um espaço de estigmatização e poder no qual os escravos eram açoitados e vendidos, e por significar uma grande representação/repressão católica, na rua, segundo Antônio Araújo (2011), se potencializa ações disruptivas, que, ao promoverem uma produção temporária de espaço, interferem na dimensão pública dos lugares de circulação na cidade. Assim diferentes espaços e tempos se justapõem ou, ainda, são criados entre-espaços, fendas que se tornam visíveis, revelando a coexistência de distintas cidades em um mesmo território urbano.

Em síntese, em Reliquiarium experientiis fiquei sentado e imóvel em uma cadeira de rodas durante uma hora, vestido com um figurino que fazia alusão às vestimentas religiosas e com os pés descalços. Coloquei um livro à minha frente e pendurei um banner que tinha a frase Escreva no livro o que você sente e/ou pensa ao me ver, em quatro idiomas (português, inglês, francês e espanhol).

Poucas pessoas realizaram o pedido feito no banner. Vejamos o que elas escreveram no livro:

 

  • Camila Freitas: Eu vejo uma pessoa frágil, mas com coragem de mostrar suas fragilidades. Me faz questionar o que é considerado como frágil; corpo ou espírito?;
  • Olívia Camboim: A 1ª imagem: um santo / A 2ª imagem: o pagador de promessas;
  • Carlos Alberto Ferreira: Então, o que é o corpo isolado? Qual sua noção há em ver o outro? E a imobilidade? Uma vida ser. Uma vida outra. É a minha, que não é a sua vida! Vida, Vide! IDA, DAVI. Filho ser. VIDA;
  • Telma dos Santos: EU QUERIA VER MINHA FILHA SE ESTÁ Bem;
  • Gildon Oliveira: Minha primeira impressão é admirar a coragem para realizar esse trabalho. Nem todos os artistas são capazes de tamanha entrega. O impacto está, para mim, em ver a expressão artística em tudo que o cerca e principalmente na corporificação dessa arte. Sinto-me admirado e orgulhoso!

 

Durante a performance Reliquiarium experientiis percebi, na prática, o processo de estigmatização que os seres humanos com corpos diferenciados sofrem cotidianamente pelos outros, considerados normais, em decorrência de suas características corporais. De acordo com Erving Goffman (1975), na contemporaneidade o estigma se imputa nas relações interpessoais, pois cada sociedade seleciona, dentro das suas características sociais, históricas e culturais, uma determinada quantidade de atributos e valores que ajustam a maneira como cidadãos devem ser corporal, intelectual e moralmente. Esses atributos devem ser iguais, mesmo havendo poucas diferenças, para todos os cidadãos, grupos e classes da sociedade, o que acaba resultando em expectativas normativas. Os sujeitos que não se encaixam nelas acabam sendo estigmatizados, como é o caso das pessoas com corpos diferenciados.

Todas as barreiras atitudinais aplicadas nas pessoas com corpos diferenciados – preconceito, discriminação e estigma – são oriundas do entendimento e contribuem para o fato de que o corpo é uma construção social e cultural, ou seja, as “[…] representações do corpo, e os saberes que as alcançam, são tributários de um estado social, de uma visão de mundo, e, no interior desta última, de uma definição de pessoa. O corpo é uma construção simbólica, não uma realidade em si”. (LE BRETON, 2011, p. 18)

Portanto, a construção social e cultural do corpo está crivada por códigos que estabelecem estereótipos corporais (feio/bonito, deficiente/eficiente, improdutivo/produtivo, anormal/normal) que delineiam expectativas normativas, onde os parâmetros em relação aos diversos corpos cooperam para o estabelecimento de estigmas.

Por seu caráter visual, os estigmas efetivados nos corpos diferenciados dos sujeitos provêm e se estabelecem nas relações interpessoais a partir da hegemonia do olhar. Na vida cotidiana contemporânea, foi atribuído ao olhar a responsabilidade de regular as manifestações e as atividades do corpo; no seio das relações entre os sujeitos, o olhar dos normais submete aqueles com corpos fora dos padrões de beleza e normalidade vigentes, e possibilita que sejam evitados a todo instante pela sociabilidade, ora pelo contato físico ora pela distância traçada de seus corpos, engendrando nos outros um incômodo ou uma hesitação durante a interação.

Assim, em Reliquiarium experientiis compreendi que se não tivesse o corpo diferenciado poderia participar normalmente das relações sociais do cotidiano, mas como apresento singulares características corporais que fogem dos padrões normativos da sociedade, meu corpo diferenciado acaba acentuando as atenções alheias e, por consequência destas, os outros esquecem que sou um ser humano como outro qualquer.

Isso ficou evidenciado em diferentes momentos da performance em que ganhei a quantia de R$3,30 dos transeuntes brasileiros e estrangeiros, e tal fato fez-me refletir sobre a forte associação de mendicância presente no imaginário coletivo que inferioriza os sujeitos com corpos diferenciados desde a Antiguidade até a contemporaneidade.

Foi nesse contexto derrisório e árido que realizei a insurgência performativa com o objetivo de mostrar penosamente a todos que participaram da performance Reliquiarium experientiis as ações de sua cultura reacionária, visto que nunca, como neste momento, essas ações retomam a legitimação da aderência da vida dos seres humanos. Pois diante dessa lancinante circunstância em que os sujeitos tornam-se meros espectros de suas existências, constatei a negligência e rebelei-me contra as ideias, sobretudo ocidentais, de que a arte estaria separada da vida e do indivíduo, no ato de compreender sua cultura, não teria o proveito de exercer sua vida.

Em Reliquiarium experientiis propus ver o mundo e a instalação da arte na vida, e vice-versa, a partir de pontos de vista diferentes. Tornei-me um verdadeiro errante do meu tempo, pois a performance por si e em si se basta, haja vista que em uma espécie de desnudamento, no sentido grotowskiano, passei particularmente por um processo complexo, que compreendo como um martírio laico, pois tive que fazer uma ação de autopenetração, a fim de sacrificar os meus estigmas mais recônditos da parte mais íntima, e, dessa maneira, pude subverter, transgredir e eliminar os estigmas que foram inseridos durante toda a minha vida. Ou seja, necessitei ser plenamente sincero comigo, posto que não fingi artisticamente algo, mas ofereci humilde e corajosamente ao público minha arte em um ato real de provocação.

Em suma, pude compreender, na performance Reliquiarium experientiis, a realidade que está à minha volta e entendi que temos que instaurar o tão sonhado pensamento artaudiano de não separar a arte da vida, mas sim buscar um elo entre ambas, pois, em minha opinião, desse modo será possível pensar os corpos diferenciados como trajetos de vida capazes de promover e estimular o senso crítico dos espectadores, principalmente no que diz respeito aos estigmas, porque estando envolvidos no acontecimento artístico, os espectadores e os próprios artistas com corpos diferenciados têm a oportunidade de perceber, questionar, subverter e transgredir o mundo estigmatizador que lhes entorna, pois as artes cênicas na contemporaneidade não impõem juízos de valor sobre quais são os corpos que devem ou não participar e estar presentes em cena, pelo fato de que agora se objetiva discutir, reconhecer e se apropriar da diversidade e da alteridade dos artistas com corpos diferenciados.

 

 

NOTA

[1] A palavra insurgente, etimologicamente, vem do latim “insurgens” e denomina o indivíduo que é amotinado, insurrecto, rebelde, revel, revoltado e/ou revoltoso contra o que se dispõe a embater sua vontade.

 

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Felipe Henrique Monteiro Oliveira é doutorando em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com bolsa pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com bolsa pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Performer do Cruor Arte Contemporânea e pesquisador do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares – NACE.

 

PARA CITAR ESTE ARTIGO

OLIVEIRA, Felipe Henrique Monteiro. “‘Reliquiarium Experientiis’: Meu Corpo Diferenciado em Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102. 

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

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