Política Intempestiva-Extemporânea: Do Ato De Viver Juntos Em Performance

 

Cenários de Emergência

O presente artigo orienta-se pela discussão de tópicos relacionados com o conceito de política no contexto de uma reflexão sobre a emergência de padrões no campo da produção artística crescente de eventos e encontros de performance arte nacionais, com foco no Circuito Regional de Performance BodeArte.

O BodeArte é um evento produzido pelo Coletivo ES3, em Natal, Rio Grande do Norte. Busca promover apresentações de performances, palestras, fóruns on-line e presenciais, debates, exposições de trabalhos híbridos entre performance e fotografia, mostra de vídeo de registros de performance, e lançamentos de livro de pesquisa na área, além de publicações on-line (catálogos, textos) resultantes do encontro realizado.

Nesse intuito, o Circuito já possui duas edições de abrangência nacional realizadas, com participação de mais de cem artistas de dezesseis estados brasileiros. Apresenta-se como uma estrutura sem seleção de trabalhos: o performer que deseja efetivar sua participação em qualquer das etapas do Circuito BodeArte participa de uma série de fases de integração numa rede de discussão e debates em que apresenta sua perspectiva artística de criação, assim como as visões políticas que cercam seu contexto e seus trabalhos, discutindo também os trabalhos de outros e respectivas colocações nessas trocas.

Antes de iniciar nossa explanação sobre os pontos pretendidos, gostaríamos de nos ater a um detalhe significativo tanto para a metodologia do Circuito BodeArte como para a que se tecerá em nossa leitura de suas ações e articulações, a ideia de emergência trabalhada por Steven Johnson (2004), em seu livro homônimo, Emergência.

Para pensar este conceito, Johnson se concentrou primeiramente sobre a figura de um estranho organismo semelhante a uma ameba, o Dictyostelium discoideum, estudado por diversos ramos, inclusive a matemática, por seu comportamento assimétrico quanto a sua definição enquanto grupo ou indivíduos isolados em si. Como descreve Johnson:

 

(…) Quando o ambiente é mais hostil, o discoideum age como um organismo único; quando o clima refresca e existe uma oferta maior de alimento, ‘ele’ se transforma em ‘eles’. O discoideum oscila entre ser uma criatura única e uma multidão. (JOHNSON, 2004: 10)

 

Esse movimento de grupo coordenado e paradoxal, por ora instituir a união e ora reordenar sua divisão, atrela a próxima questão apresentada por Johnson relacionada a este procedimento não usual desse(s) organismo(s). Seria esta a retirada de um paradigma usual de olhar organizativo que pressupõe a ação de um líder, uma inteligência ordenadora e centralizadora que reúne os demais organismos e que coordena esse movimento de união e separação, a que se chama de um formato top-down (de cima para baixo). Contudo, como experimentos com o discoideum vieram a comprovar, sua ação não é coordenada “de cima para baixo”, não existe uma liderança isolada que a comande, o que ocorre nele é um comportamento bottom-up (de baixo para cima), um fenômeno coletivo que integra as inteligências individuais numa ação que emerge do grupo, e não por esta ou aquela liderança.

Existem para Johnson, diante dessa perspectiva, ações de indivíduos em interação com o ambiente que geram soluções para questões razoavelmente mais simples, e agrupamentos que coordenam a emergência da reunião de indivíduos para uma ação de caráter mais amplo que tenta lidar com a demanda de um problema de ordem mais complexa. Esse movimento de ações localizadas em cenários individuais, para comportamentos bottom-up de organização complexa que emergem, é o que Johnson denominou como emergência.

Para encerrarmos essa retomada da base do conceito de emergência em Johnson, acreditamos que seja importante ressaltar que o autor localiza um espaço de reformulação da ação de pesquisa sobre o fenômeno da emergência na contemporaneidade: a retirada da ênfase no entendimento dos espaços direcionadores e produtores desse comportamento coletivo, para o reconhecimento de padrões, criação e produção de estruturas emergentes como forma de ação. Dessa feita, a emergência estaria deixando de ser objeto de estudo, para passar a ser concebida como forma de ação modificadora, ou seja, sairíamos de um espaço de análise da emergência de cenários para a criação de cenários de emergência.

 

Espaços Emergentes

Espaços emergentes em performance arte têm se criado e desenvolvido em continuidade por todo o país nessa primeira década do século XXI. Mais do que construírem visibilidade para esta linguagem artística e aqueles que nela operam sua produção, esses espaços são sintomas de uma dinâmica de aproximações que tem se configurado de maneira premente para o pensamento sobre este gênero artístico no Brasil. Nesse entremeio, pode-se verificar o aparecimento de padrões que se repetem em suas estruturas, como esforço político de geração desses momentos de multidão de corpos em performance, esse momento em que sujeitos em sua potência própria reúnem-se para frisar problemáticas individuais que resultam na percepção de cenários mais complexos da produção e condições da produção artística.

A emergência aqui se coloca, em primeiro lugar, no encontro entre corpos, que, como aponta Baruch de Spinoza (2009), é a base da política. Esse encontro é espaço emergente, a partir do qual se pode afetar a experiência do outro e, simultaneamente, tornar visível uma potência comum que surge do ato de criação nesse mesmo espaço da arte, o que não significa dizer espaço homogêneo de criação, considerando, sobretudo, a ênfase com a qual divergem em abordagem, prática e modo as produções de artistas em performance arte no país. Trata-se do encontro como emergência, pois é, antes de tudo, produtor da visibilidade de uma multidão.

Em segundo lugar, podemos assinalar a emergência de padrões de abordagem que buscam atender as questões apontadas pelos performers e suas práticas, além de tentar pensar o ato e organização do encontro como uma performance per si. Esses padrões dizem respeito aos encontros que propõem uma linha bastante semelhante de ações, ou seja, dentro desses espaços de encontro, podemos ver a ocorrência de debates, palestras, mesas redondas, exibições de vídeos e apresentações de performances. Esse padrão sugere a emergência de uma necessidade não apenas de abertura para as apresentações de trabalhos artísticos nessa linguagem, mas também espaços que compreendam linhas de discussão, reconhecimento e leitura da multiplicidade de práticas na performance, isto é, espaços que se diferenciam da estrutura de festival, bastante empregada no campo do teatro e da dança, que modulam a ocorrência de diversos eventos voltados a cada linguagem (apresentações de peças, workshops de técnicas, etc.).

Os espaços abertos para a performance arte buscam, em sua base, ter um panorama de igual importância para as múltiplas ações de debate, discussão e apresentação, cujo foco é produzir uma inteligência de ordem complexa sobre os problemas e soluções de cada espaço político de onde aquele sujeito se encaminhou antes de chegar à multidão provocada pelo encontro no evento. Assim, falamos de uma emergência de padrões de abordagem, pois o objetivo artístico está intrinsecamente conectado a uma potência política nesses eventos.

Pensemos no “Perfor I”, promovido pela Associação Brasil Performance em São Paulo, que apresentou, em sua estrutura, a produção de um manifesto coletivo que encerrou a programação, apresentações de performance e, ainda, debates e discussões, reunindo os artistas que participaram para apresentarem seus cenários de produção em suas características (per)formativas. Consideremos ainda o “Performance, Corpo, Política e Tecnologia”, criado pelo Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos em Brasília, que propôs além das apresentações, debates entre os performers, e a produção de textos teóricos sobre os espaços de discussão do evento. Podemos ainda ressaltar o evento “Perpendicular”, organizado por Wagner Rossi Campos, que realiza itinerância por diversos estados do país, onde também são agenciadas ações de debate sobre a produção de cada performer em seu local de origem, apresentações de performances, residências de troca entre artistas convidados e artistas locais.

Dentro desse panorama, poderíamos incluir a “Mostra Osso Latino Americana (MOLA)”, proposta pelo Coletivo OSSO da cidade de Salvador, que além de apresentações de performance, agenciou encontros de discussão entre artistas participantes, entre artista e público, e também toda uma gama de outros eventos que se encaixariam nessa perspectiva de estruturação, como o “Performa Paço”, promovido pelo Paço das Artes na cidade de São Paulo, o “Festival de Apartamento”, proposto por Thaíse Nardim, Ludmila Castanheira e Rodrigo Emanuel Fernandes em São José do Rio Preto, o “Trampolim”, promovido pelo Laboratório de Ação & Performance (LAP!) em Vitória, o “P.Arte”, com curadoria de Fernando Ribeiro e Tissa Valverde, entre outros.

É interessante aqui observarmos que resiste, nesses eventos, a ideia de espaços emergentes ou espaços de criações de cenários emergentes. Embora sejam propostos a partir de uma determinada localidade e produzidos por um grupo de pessoas à frente da organização das atividades, não devemos compreendê-los em seus movimentos como espaços top-down, pois o que parte de um ponto não é comando para formação. O que se propõe é, nesses casos, um ponto de encontro, zona de convergência para a produção de uma ação em multidão [1].

Devemos considerar, com mais ênfase, que essa política produzida pelo encontro de uma multidão de corpos não tem por fim reduzir a multiplicidade das diferenças a sensos resolutórios de demandas do grupo, muito embora, eles não deixem de existir, mas existem como emergência da própria multidão. Porém, re(in)siste uma questão de afirmação das diferenças que sustenta a possibilidade de dissociação do encontro e retorno dos indivíduos a seus respectivos contextos, ou seja, o encontro não é perspectiva de dissolução das individualidades na força expressa pela reunião daqueles corpos em dado intervalo de tempo.

O espaço produzido por esse encontro é dotado de um movimento que Gilles Deleuze (1976) denomina, a partir da obra de Friedrich Nietzsche, como sendo uma contrapartida da negação dialética, o que implica na retirada da diferença como situação de oposição, de negação ao outro, e transporta o momento de encontro para outra zona, de intensidade, de leveza, provocado pela afirmação da diferença, pelo próprio jogo, diante do qual as afirmações criam processos próprios de erosão e deslocamento.

Mesmo estando perigosamente a colocar em nossa leitura esses espaços de criação de cenários emergentes num território limítrofe com relação ao conceito de política, isto é, a dissuasão da imagem integradora do encontro para jogar com a afirmação das diferenças de cada sujeito, sugerir este apontamento implica que existe uma política na base da afirmação das diferenças, que além de constituir o próprio pensamento de Spinoza (2009) e de Hardt e Negri (2005) sobre a multidão, incita no corpo, que está na base da filosofia nietzscheana (DELEUZE, 1976), essa provocação de um jogo entre diferentes que produz esse movimento de simultânea alteração que não desfaz a diferença, e sim perfaz a diferença [2].

Sair do espaço da diferença como negação dialética, “que suprassume de tal forma que preserva e mantém o que é suprassumido, e, consequentemente, sobrevive à sua própria suprassunção” (HEGEL, 2007: 129), para a negação não-dialética (DELEUZE, 1976) que Deleuze propõe, como uma diferença indissolúvel, cujo movimento sintético é impossível, pois significaria o cessar da própria performance.

Embora haja momentos de compartilhamento dessa potência comum (SPINOZA, 2009), da qual já tratamos no texto, a própria política em seus movimentos de estabilidade e desestabilidade, provoca nesse encontro a volta a esse jogo de diferenças entre corpos e experiências, criando, nesse movimento vivo, a insistente ação de “virar de ponta cabeça o avesso”, parafraseando o músico brasileiro Itamar Assumpção, isto é, aprender com o encontro, mas persistir nas diferenças.

Assim como o discoideum apenas se forma por um período, vivendo durante outras estações como formas distintas lidando com suas próprias escalas, demandas e problemas, a emergência do encontro nesses eventos de performance é momentâneo encontro e contínuo jogo de diferenças, de corpos.

 

Entre Contemporâneo e Extemporâneo

Como já mencionamos, esses eventos – espaços de encontro, cenários de emergência – começam a despontar com grande evidência neste início de século XXI e, como podemos observar nos websites de quase todos eles, os mesmos passam a ser denominados como fenômenos “contemporâneos”, seja pelos performers, que deles participam nos debates e fóruns, seja na própria afirmação do foco do evento.

Lançamos aqui a questão sobre esse foco dito contemporâneo: será que o termo contemporâneo é o que melhor especifica o recorte promovido por estes pontos de convergência em performance pelo país? No recorte do Circuito BodeArte, é de fato essa a melhor concepção para definir seu espaço prático-conceitual de interesse?

A resposta que oferecemos é um jogo. Pensemos na origem da palavra contemporâneo, do latim Con (junto), e Tempus (tempo) [3] que, grosso modo, gravitaria em torno de “tempo juntos”, “juntos no tempo”, ou, como pode ser derivado, “juntos no mesmo tempo”. Roland Barthes (2003) propõe operar sobre essa ideia do contemporâneo pensando-o como o Viver-Junto, e conecta esse pensamento às Considerações Intempestivas (1976) ou, como apresentam algumas traduções, Considerações Extemporâneas (1983), do filósofo alemão Friedrich Nietzsche.

Antes de falarmos de Barthes e da ideia de Viver-Junto, gostaríamos de nos deter a uma questão que é rica para este ponto da discussão, que é esta da divergência de traduções que nos apresenta duas palavras importantes: “intempestivo” e “extemporâneo” [4]. Muito embora o dicionário Aurélio Século XXI dê definições idênticas às duas palavras, podemos encontrar numa revisão sobre os termos realizada por Cláudio Moreno, Doutor em Letras, que retoma a origem destes no Latim, uma divergência fulcral entre eles. Como averigua Moreno:

 

(…) Extemporâneo (de ex tempore — “em seguida, imediatamente”) significava “súbito, sem premeditação, sem preparativos, no calor da hora”; aparece muitas vezes usado em textos de retóricos como Cícero e Quintiliano, falando de poetas e oradores que tinham a capacidade de “fazer discursos extemporâneos” ou compor “versos extemporâneos” (entenda-se: de improviso). [5]

 

A base da palavra “extemporâneo” sugere a ideia de algo criado de improviso, composto no momento em que está “sendo feito”, sugerindo uma ação que no espaço deste artigo pode ser associada à própria prática da performance arte. Embora seja um sentido assumido no uso dado a palavra hoje, a princípio ela não se relacionava, no sentido de uma sinonímia, com a significação do termo “intempestivo”. Moreno novamente coloca:

 

(…) Por sua vez, tempestivus era o adjetivo usado pelo Latim para designar o tempo ideal para algo acontecer, o tempo favorável, oportuno, o momento adequado — um conceito herdado dos Gregos, que acreditavam que havia um tempo ideal para cada coisa. (…) Seu antônimo, intempestivus, indicava o que acontecia na hora errada, fora da hora adequada; o que era inoportuno, inconveniente. [6]

 

Criando aqui um jogo com base na ideia de negação não-dialética, podemos observar nessa escolha de tradução diferenciada feita para o título desse artigo de Nietzsche um espaço de diferença, mesmo que não pretendido, que nos interpõe uma reflexão valorosa. As considerações construídas por Nietzsche em torno de uma desconstrução filosófica da importância da História para o homem, ou o seu contrário, como se pode perceber na arguição que o autor faz em seu texto, olhadas como extemporâneas, no sentido etimológico apresentado, resultam numa proposta realizada no calor do momento, o calor do momento que se vive, em que o corpo se presentifica, o corpo que sente esse calor do momento que vive.

A figura do calor surge também numa metáfora proposta por Spinoza para a ideia de política, a ideia de que a política se dá como a sensação do calor, num espaço entre corpos. Assim, puxamos um traço que, em nossa reflexão, nos conduz para a seguinte proposição, as considerações traduzidas como extemporâneas de Nietzsche, colocam o homem num espaço político, o espaço do calor do momento que vive, o espaço da experiência vivida no corpo em relação com outros corpos, com o contexto, criando, no momento do contato, o modo como se coloca, os desejos que nutre. Chamar de extemporâneo nesse sentido é colocar em movimento político o sujeito no momento em que vive.

Ao mesmo tempo, chamar intempestivo é um movimento de relação direto com uma força que parte com o momento em que vive. Aqui o homem seria aquele que não condiz com seu tempo, que não está congruente com aquilo que se espera desse tempo, inquieto, precipitado, atrasado, anacrônico, “discrônico”, um homem que em seu tempo não se encaixa.

Pensando no sentido que atribuímos à palavra intempestivo, aqui temos um homem cujo corpo imputa em sua experiência a potência de uma diferença sobre como se percebe, ou direciona, o que se deve fazer das coisas em seu tempo. Esse homem em incongruência com o seu tempo, é na política membro da multidão, parte de um grupo de corpos constituído por suas diferenças e potências [7], agentes de uma ação desestabilizadora. Considerando essa “emergência” de uma situação de tradução, gostaríamos de nos referir aqui à obra de Nietzsche, e suas aproximações que com esse artigo desenvolvemos, como Considerações Extemporâneas-Intempestivas.

Refletindo a respeito de nossa linha de leitura sobre essa questão dos eventos voltados à performance arte no contexto nacional atual – como o Circuito BodeArte em si – serem referidos como contemporâneos, e o olhar sobre esse conceito de “contemporâneo”, falamos anteriormente da origem etimológica de tal palavra, (“tempo juntos”, “juntos no tempo”, ou, como pode ser derivado, “ juntos no mesmo tempo”). Pois bem, a ideia do termo para Barthes está profundamente arraigada naquilo que ele chama de Viver-Junto, não só no tempo como no espaço. Assim reflete sobre a questão do “ser contemporâneo de”, ou seja, “viver no mesmo tempo”, como expresso na própria relação etimológica da palavra.

 

“(…) certamente tomaremos o Viver-Junto como fato essencialmente espacial (viver num mesmo lugar). Mas, em estado bruto o Viver-Junto é também temporal e é necessário marcar aqui esta casa: ‘viver ao mesmo tempo em que…’, ‘viver no mesmo tempo em que…’ = contemporaneidade. Por exemplo, posso dizer, sem mentir, que Marx, Mallarmé, Nietzsche e Freud viveram vinte e sete anos juntos. Ainda mais, teria sido possível reuni-los em alguma cidade da Suíça em 1876, por exemplo, e eles teriam podido — último índice do Viver-Junto – ‘conversar’. Essa fantasia da concomitância visa a alertar sobre um fenômeno muito complexo, pouco estudado, parece-me: a contemporaneidade. Com quem é que eu vivo? O calendário não responde bem. (BARTHES, 2003: 11-12)

 

Contudo, como podemos observar em sua reflexão, o Viver-Junto passa também pela questão do espaço, viver junto como “ser contemporâneo de” no espaço, que hoje não necessariamente se constitui do mesmo espaço físico, mesmo local, mas também dos espaços virtuais (chats, live streaming, etc.).

O ato de estar no mesmo tempo e no mesmo espaço que outros retoma a ideia do encontro sobre o qual nos referimos. Estar próximo do outro como espaço de contemporaneidade, o que, nesse sentido, nos remete novamente para a ideia da política entre corpos, estar próximo como possibilidade de criação de uma política entre estes corpos. Saber e procurar saber com quem se vive, é esse movimento do corpo para aproximar-se da produção dessa política de contato.

Ser contemporâneo passa, em Barthes, por esse direcionamento, proximidade no tempo e espaço, nesse último ponto, numa proximidade considerada como encontro, e não à toa uma citação do mesmo pensador, especificamente de uma anotação dos seus cursos no Collège de France, é levantada numa abordagem do filósofo italiano Giorgio Agamben (2009), mais concretamente, “O contemporâneo é o intempestivo”. O intempestivo desponta aqui novamente como essa ideia de quebra com o seu tempo, com o tempo do que se deveria ser, uma quebra política em relação de desestabilização, o olhar que não conflui com os demais, pensando que, como na própria analogia tecida por Agamben, esse intempestivo vem como referência à obra do jovem Nietzsche em seus primeiros escritos.

Aqui retornamos à política nesse traçado entre corpos teóricos e críticos que constituímos até esse momento em nossa leitura. Ora, o contemporâneo passa assim de maneira inerente pela política. O contemporâneo é um processo de desestabilização política pela produção de distintos encontros e as potências individuais e comuns que formulam a anacronia nos sujeitos. Como coloca Agamben, “(…) a contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este, e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente essa é a relação com tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo” (AGAMBEN, 2009: 58).

Esse pensar contemporâneo no Circuito BodeArte é refletir sobre uma qualidade de abordagem das problemáticas relativamente atuais no campo da arte. Mais concretamente no caso do crescimento de uma cena no campo da performance arte, sua visibilidade, suas proposições. É pensá-lo intempestivo-extemporâneo, num fluxo que se orienta fora do circuito das galerias, museus e teatros, rompendo com um cenário de produção cultural estabelecido na cidade de Natal, tomando como base para essa ação a reunião momentânea de uma multidão, cujo efeito dos encontros provoca, entre outros efeitos, um desnível na paisagem, uma estrutura de desestrutura.

Intempestiva-extemporânea é a estratégia, evidenciada pelo BodeArte e outros eventos, de um encontro entre corpos para fazer emergir a multidão, e a partir da multidão tantas outras emergências. O encontro remonta, em primeiro lugar, ao Viver-Junto, o espaço de estar aberto para ser afetado e afetar, encontro entre corpos, o calor político de jogos de diferenças no ato da presença, algo que se cria no momento em que se faz. Em segundo lugar, vem tocar justamente nesse jogo de diferenças, produtor de emergências nas discussões, debates, fóruns (esses padrões que mencionamos anteriormente), onde o encontro entre corpos evoca novamente a percepção spinozista, em que o corpo se dá na experiência de entre corpos, espaço onde se modificam as potências. Peter Pal Pelbart (2008) argumenta de maneira fortuita sobre essa questão na filosofia spinozista:

 

(…) Não sabemos ainda o que pode o corpo, diz Espinosa, só o descobriremos ao longo da existência. Ao sabor dos encontros. Só através dos encontros aprendemos a selecionar o que convém com o nosso corpo, o que não convém, o que com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui. Um bom encontro é aquele pelo qual meu corpo se compõe com aquilo que lhe convém, um encontro pelo qual aumenta sua força de existir, sua potência de agir, sua alegria. (PELBART, 2008: 33)

 

Intempestivo, o encontro joga com associações não programadas, estruturas de acaso, fora do tempo próprio. O encontro entre artistas, o desenvolvimento de ações espontâneas e o impacto em seu trabalho são ressonâncias desse momento em que se forma a multidão no Circuito BodeArte. Extemporâneo, o encontro se dá entre os corpos que é a multidão, se criam no próprio momento afinidades, discussões, linhas de força sobre proposições em performance, performances conjuntas, convites para deslocamento para apresentações em outros pontos. Algo que se cria no momento em que é feito: é este o calor na multidão.

 

Considerações Finais Intempestivas-Extemporâneas

Distintas proposições se colocam ao refletirmos sobre estes emergentes fenômenos da contemporaneidade. Seus padrões e os índices que apontam estão distantes de serem apenas um espaço sem significação para nosso tempo, pensando numa perspectiva de que o futuro nos dirá a validade dessas arguições. A proposição dessa espera de “um olhar do futuro” sobre o que acontece “no calor do momento” é um pensamento que recai não só no distanciamento necessário à leitura de um fenômeno no tempo, mas também numa premissa tradicional, na qual o olhar historicizador do futuro sobre o presente interpola sua importância aos ecos que deste sobrevivem.

Este artigo procurou se colocar de maneira distinta em relação a esse cenário, ensejando leituras voltadas às estruturas e padrões que emergem na contemporaneidade, no caso a primeira década do século XXI, e, especificamente, no caso do Circuito BodeArte, os últimos quatro anos deste século. Dessa feita, o raciocínio que desenvolveu incide sobre a reflexão de que produzir conhecimento também significa produzir política, uma política incorporada nos contextos de interações, no tempo presente, e distante da espera para seu tempo de maturação (tempestus), devemos tomar essas formas fora do melhor tempo, o tempo mais seguro, para pensá-las (intempestus).

Não descartamos, com isso, que a distância do tempo auxilia o olhar do pesquisador a compreender as ramificações e impactos erigidos pelo objeto ao qual se volta sua leitura. Contudo, o risco de se viver no contemporâneo consiste talvez na proposta de Agamben (2009), de que devemos receber na face o facho de luz de nosso tempo, abertos a sermos afetados por essa escuridão que leva o pesquisador a compor seu movimento questionador do aparente, do naturalizado, do entranhado.

Valer-se das trevas para tecer movimentos imprevistos significa manter o olhar do pesquisador, no caso da performance arte no Brasil, em constante confronto com relação aos movimentos aparentemente distanciados pelas medidas geográficas, mas aproximados por políticas de compreensão da arte e da produção artística. Pesquisar a performance arte contemporânea é uma ação de performance, um espaço de colocação da presença do olhar no momento em que se vive e, nesse, buscando outras leituras diferentes do que está à plena vista. Investigar além do conveniente e do explicitado, ação intempestiva.

Os eventos contemporâneos de performance arte no Brasil criam, no momento do súbito, no calor do instante e da pele, uma política entre corpos, que se aciona no espaço do encontro entre diferentes sujeitos, um esforço extemporâneo não apenas de circulação dos trabalhos, mas de elaboração de diferentes passagens e desvios para o modo como pensamos a performance. Sua metodologia de emergência de situações, proposições e discussões a partir do encontro alvitra a própria potência que o olhar sobre o momento presente carrega.

Pensar, sobretudo, que na escuridão das questões contemporâneas, naquilo ainda sem clareza, existe uma multidão de outros sujeitos, e que, na diferença das potências que eles transitam pela escuridão, resiste a força de uma investigação de outros modos de se pensar não apenas a performance que se vê, mas os processos e contextos políticos, sociais, geográficos, temporais em que são criadas. Perceber no presente o calor dos corpos em performance, o calor diferenciado de um corpo que quer tocar e encontrar de outras formas o mundo em que vivemos e, nessa mesma esfera, pesquisa outras maneiras de pensar a performance arte.

O espaço produzido por esses eventos no Brasil é contemporâneo, pois reúne em si um Viver-Junto daqueles que pesquisam e criam em espaços insondados, espaços de escuridão na performance arte e suas políticas de produção e sobrevivência no cenário artístico brasileiro.

O calor dessa aproximação entre corpos, pensa a política como um movimento em circuito / curto-circuito, criando cargas de estabilidade e desestabilidade entre esses corpos, e dentro da ideia de performance arte, tão variante entre cada trabalho e pesquisa. O calor que é política, essa peculiar e efetiva percepção dos eventos em performance arte que despontam no Brasil atualmente, consegue articular a diversidade e pluralidade de criação dos performers que reúnem para pensar também em que padrões emergem da diferença, em que modos de (des)organização pulsam naqueles corpos em performance.

Assim, emergem nesses contemporâneos (tempo juntos, juntos no tempo) encontros de performance no Brasil, ações e potências de agir que apontam, em eventos como o Circuito BodeArte, espaços políticos de possibilidades distintas de criação, processo, apresentação, diálogo e pesquisa em performance arte.

O encontro dos performers e suas práticas no Circuito BodeArte, assim como em outros citados nesse artigo, não é somente o local onde se apresentarão performances e outras atividades, é uma performance política de grande efeito. Um evento de performance arte sobre a perspectiva política não deixa de ser uma performance.

 

Notas

[1] Para Antonio Negri e Michael Hardt (2005), a ideia de multidão, diferentemente da compreensão de povo, propõe um conjunto de singularidades, de potências individuais que não coalescem sua multiplicidade e diferenciação, a multidão não converge, e, da mesma forma, não se evapora no interior da política. Espaço onde o múltiplo é múltiplo, potência de potência, esse é o complexo grupo de indivíduos formado pela multidão.

[2] Poderíamos aqui nos aprofundar mais sobre a proposta de afecção do próprio Baruch de Spinoza, que parte de um princípio de modificação entre corpos, contato modificador, porém para não nos estendermos para além da contribuição dessa perspectiva, optamos por não nos aprofundarmos aqui nessa direção.

[3] Disponível em:

http://origemdapalavra.com.br/palavras/contemporaneo/. Consultado em 10/09/2012.

[4] Tratando-se de Nietzsche em sua formação de um filólogo, achamos oportuno para este artigo esmiuçar um pouco mais a relação entre estas sugestões distintas de tradução. Isso, claro, além da importância para a argumentação ora desenvolvida.

[5] Texto disponível em:

http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2009/05/05/extemporaneo-e-intempestivo/. Consultado em 11/09/2012.

[6] Texto disponível em:

http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2009/05/05/extemporaneo-e-intempestivo/. Consultado em 11/09/2012.

[7] É interessante ressaltar que a visão de Spinoza e Nietzsche (sobre a ideia de potência) são semelhantes no impulso a que remetem, embora não advenham do mesmo espaço discursivo e filosófico de elaboração. Para ambos os filósofos, a ideia de potência se relaciona à capacidade de agir no mundo, para além dos valores e verdades estabelecidas, uma ética do vivo.

 

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

BARTHES, R. Como Viver Junto. Simulações Romanescas de Alguns Espaços Cotidianos. Cursos e seminários no Collège de France, 1977-1978. Texto estabelecido, anotado e apresentado por Claude Coste. Trad. Leyla Perrone Moyses. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

DELEUZE, G. Nietzsche a e filosofia. Trad. Ruth Joffily e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

HARDT, M; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na era do império. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. de Paulo Meneses. 7ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

JOHNSON, S. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares. Trad. Maria Carmelita Pádua Dia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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PELBART, P. P. Poderíamos partir de Espinosa. In: SAADI, Fátima; GARCIA, Silvana. Próximo Ato: Questões da Teatralidade Contemporânea. São Paulo: Itaú Cultural, 2008, p. 32-37.

SPINOZA, B. de. Tratado Político. Trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

 

André Luiz Rodrigues Bezerra

É performer integrante do Coletivo ES3 e produtor do Circuito Regional de Performance BodeArte. Mestrando em Artes pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde desenvolve sua dissertação referente a criação de coletividades na performance nacional através do recorte do Circuito BodeArte em seus espaços de encontro on-line e off-line.

 

 

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