Ressignificação Coletiva da Memória dos Sentidos: Um Processo Artístico com Performance

 

Para Halbwaschs a memória é sempre fruto de um processo coletivo, na medida em que necessita de uma comunidade afetiva, ou seja, um grupo ao qual o sujeito já faça parte. A lembrança está sempre inserida em um contexto social preciso. Para esse pensador, o apego afetivo a uma comunidade dá consistência às lembranças, e o desapego é oposto disso, estando, por sua vez, ligado ao esquecimento. A memória em Halbwaschs é reconhecimento e reconstrução. É reconhecimento na medida em que porta o “sentimento do já visto”. E reconstrução, porque não é uma repetição linear de acontecimentos vivenciados no passado, mas sim um resgate desses acontecimentos e vivências no contexto de um quadro de preocupações e interesses atuais.

Sobre essas considerações de Halbwaschs, iniciei uma pesquisa com a memória que chamei de “Memória dos Sentidos” ou “Memória do Corpo”. No começo, minha pesquisa tinha como objeto a relação nebulosa entre a lembrança racional e a lembrança física. Para mim, enquanto artista, o que interessa é a lembrança dos sentidos, a lembrança do corpo. Minha pesquisa estabelece, como objeto, os sentidos, e parto deles para falar da memória e do resgate das sensações através do reviver um acontecimento do passado.

Tanto o reconhecimento como a reconstrução de que a memória é oriunda dependem de um conjunto de referências, tendo em vista que as lembranças retomam relações sociais, e não simplesmente ideias ou sentimentos isolados, e é resultado de um compartilhamento de dados e noções. Para Halbwaschs, num primeiro nível há um testemunho que o sujeito dá, e que provém da relação que ele tem consigo mesmo, e das opiniões formadas com o apoio dos depoimentos dados por outros. Há também um segundo nível em que o sujeito atinge a esfera do social, do diálogo com o outro. Nesse sentido, a memória se dá a partir do encontro desses dois níveis no sujeito, de um confronto que nasce das noções próprias com os dados trazidos da relação social.

Resgatar a memória é estar em coletivo, trazendo elementos para o presente que possam ajudar os sujeitos a conectarem suas lembranças do passado com os relatos e dados dos outros, no presente momento. A retomada da lembrança está interligada à relação dos sujeitos com espaços e eventos determinados, onde são expostos elementos que dialogam com o passado ao mesmo tempo que estão no presente. Desse exercício de reconhecimento e resgate do passado para uma leitura do presente surge a primeira performance.

 

Élle de Bernardini, O Afogamento. Performance realizada na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Abril de 2014. Fotografia de Giacomo Giacomoni

 

O Afogamento foi uma ação de autoafogar-se no dia 1 de abril de 2014, às 16h45mim, em uma livraria no centro da cidade de Santa Maria (Rio Grande do Sul, Brasil). No mesmo dia, outros quatro bailarinos, seguindo a mesma lógica estabelecida por O Afogamento, realizaram, no calçadão principal da cidade, a mesma ação. Quatro deles se autoafogaram em baldes de água numa tentativa de resgatar a memória dos cinquenta anos do Golpe Civil e Militar Brasileiro. A performance O Afogamento é a presença de um corpo frágil e cansado junto de uma bacia com água; o corpo autoafoga-se em uma ação determinada e contínua. Ele inflige a si a autotortura, numa ação infértil que instaurou no ambiente da livraria uma atmosfera de tensão e lembranças. As pessoas que por ali passaram foram surpreendidas com a ação da performance, e rapidamente associaram a cena com a memória do golpe. A performance, no entanto, desenrola-se para além da memória dos anos de chumbo; ela também é, tal qual no primeiro nível proposto por Halbwaschs, um resgate particular do sujeito. O performer traz para o seu corpo, através de uma ação no presente, as lembranças tensas e dolorosas que, em certa medida, ele não viveu, e possui delas apenas o relato dos outros, para depois ativar em cada um que assiste uma lembrança. O Afogamento é um ato de autotortura na tentativa de expor questões mais profundas a respeito da relação particular de cada sujeito consigo mesmo. A autotortura é empregada para se discutir as relações de maus hábitos que se repetem inconscientemente todo o tempo com todos os sujeitos. Para olhar os registros dessa performance é preciso ter em mente que a ação de autoafogar-se é uma ação em função de uma memória, mas sobretudo em função de acontecimentos do presente momento.

 

Se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a de todos, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias. (HALBWASCHS, 1990, p. 25)

 

Para Halbwaschs, toda memória é resultado de um processo coletivo. Até mesmo a memória particular do sujeito é um ponto de convergência de diferentes influências sociais, como uma forma particular de articular essas influências. A memória coletiva, por sua vez, é o trabalho que um determinado grupo social realiza, articulando e localizando as lembranças. O resultado desse trabalho constitui uma espécie de acervo de imagens e lembranças compartilhadas que são o conteúdo da memória coletiva.

Halbwaschs pensava que a memória coletiva adapta lembranças de fatos antigos a crenças e necessidades do presente. Na memória coletiva, o passado é permanentemente reconstruído e vivificado enquanto é ressignificado. Nesse sentido, a memória coletiva pode ser melhor compreendida como uma forma de história vivente. E a segunda performance surge disso, desse segundo nível no resgate da memória.

 

Élle de Bernardini, Performance II Sem Título. Performance realizada na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Agosto de 2014. Fotografia de Susane Kochann

 

A segunda ação de minha pesquisa resultou de um entendimento de que a primeira performance apresentou o corpo da performer e uma ação que se limitava à performer. De modo que agora era preciso trazer o público para dentro dos acontecimentos por uma exigência que é do presente, tornar esse resgate da memória uma ação simbólica e política que reflita nossas necessidades do presente. O público precisa ser chamado a tomar decisões e a assumir responsabilidade na ressignificação da memória através da arte e, no caso, por meio da performance proposta por uma artista. Para isso o público recebeu uma dinâmica que devia ser seguida. E ela compreendia os seguintes passos: 1) escolher um copo cheio de água sobre a mesa; 2) pronunciar em voz alta a data referente ao copo escolhido; 3) jogar a água do copo na performer; 4) devolver o copo vazio ao seu lugar de origem. Havia cinquenta copos com água sobre a mesa, aludindo aos cinquenta anos do Golpe Civil e Militar, e, no chão, um balde também cheio de água representava o ano de 2014 – porque, na contagem das datas desde 1964 até 2014, temos um total de 51 datas, havendo um número a mais do que os cinquenta anos do golpe. Esse número a mais é representativo do presente, do que o resgate da memória desse tempo ruim que passou pode recuperar em nossa recente memória do presente já esquecida. A memória coletiva, por necessitar de articulação social para estar constantemente presente, acaba se tornando efêmera e de curta duração, e isso é efeito da contemporaneidade e da aceleração da impressão da passagem do tempo, e também do individualismo dos sujeitos. De modo que a proposta era resgatar a memória, ressignificar as lembranças, e então isso tinha de ser feito em conjunto, no coletivo. O público que chegou para assistir à performance nas ruínas da Estação Férrea de Santa Maria, não esperava ser convidado a participar de uma ação que envolvia água em um dia muito frio de agosto. Era 17 de agosto de 2014 às 16h45mim da tarde e aproximadamente 150 pessoas estavam no local e acompanharam, de algum modo, a performance que demorou quarenta minutos para acontecer.

 

Élle de Bernardini, O Afogamento. Performance realizada na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Abril de 2014. Fotografia de Giacomo Giacomoni

 

Nesses oito meses de pesquisa, e nos materiais resultantes do processo com as performances e com os registros, notei que havia sobrado algo, algo que eu não contava como produto final, e que parecia bastante significativo para se pensar a performance a partir disso. Notei que pensar a performance enquanto arte possui um alcance social e um apelo aos sentimentos das pessoas de modo geral muito maior que a pintura, por exemplo. Observei também que ela podia, se bem empregada com propósitos estéticos sérios, ser instrumento de reivindicação social. Ao mesmo tempo, percebi ainda na performance um papel de assegurar e conservar o caráter de essência da arte, que é de se direcionar aos sentidos dos sujeitos e, através dos sentidos, se fazer entendida. A performance é um veículo artístico de propagação de ideias e queixas, e ela acontece justamente onde o público se doa a recebê-la, prestando-se a dividir o tempo-espaço com ela, de modo que um afeta o outro reciprocamente, e ambos, sem saber, chegam a instantes semelhantes, a conclusões semelhantes. Em outras palavras, a performance desperta um sentimento de coletividade nos sujeitos, e ela faz isso evidenciando o que temos de singular, através da ação de uma única pessoa, do artista, e une todos os que dela participam em um sentimento coletivo, que ressignifica o tempo todo a história e o próprio tempo-espaço. Num jogo mútuo entre performer e público, a performance coloca as pessoas em um estado de arte, e desse estado provém, além da recepção e contemplação da obra, o que eu particularmente considero mais importante para o presente em se tratando de arte e criações artísticas: a crítica, o exercício do qual muito Bertolt Brecht falou, que é o de ver o mundo com olhos estranhados.

Ter estado com o público nesses dois momentos singulares, através de ações bastante delicadas, fez crescer em mim um sentimento de pertencimento que há muito eu havia esquecido. Fez com que eu desejasse, enquanto artista e através da arte, fazer alguma coisa por todos nós. Quando penso em arte e quando trabalho nela, e trabalho nela todos os dias sem folga, o que me percorre sobretudo são questões de ordem formal e subjetiva que dizem respeito a boa parte da criação e concepção da obra de arte segundo uma lógica artística. Mas depois de ter passado pelo processo que durou oito meses e resultou nessas duas performances, começo a inserir, na minha lógica de criação artística, as necessidades e crenças do presente, tal qual Halbwaschs citava, até mesmo para compreender a contemporaneidade e a própria arte. E tenho concluído disso tudo que a arte precisa se voltar mais para o engajamento social e político, não como um fetiche de moda, ou baderna, mas como uma necessidade do presente que obriga a própria arte a tomar decisões em um momento de incertezas políticas. A arte tem se tornado mais política, e criar uma arte que seja também engajada requer não esquecer a essência da arte, que é direcionar-se aos sentidos. Foi tendo em mente esses objetivos que iniciei, e por ora arquivei, essa pesquisa que acabo de compartilhar por meio de premissas e de dados apresentados aqui neste texto para o leitor. Depois da água começo a pensar em terra, quem sabe pratos de porcelana, pratos quebrando.

 

 

BIBLIOGRAFIA

DUVIGNAUD, J. “Prefácio”. In: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990, p. 9-17.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

BERNARDINI, Élle de. “Ressignificação Coletiva da Memória dos Sentidos: Um Processo Artístico com Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e a autora

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