Performance e Ética

 

Em seu mais recente livro, Esferas da Insurreição: Notas Para uma Vida Não Cafetinada, Suely Rolnik observa o que muitos de nós temos sentido também: não basta resistir macropoliticamente, é preciso agir para reapropriar a força de criação e cooperação. Isso se dá, evidentemente, no âmbito da micropolítica. Inquieta com a mesma questão, escrevi em meu último livro, Fabulações do Corpo Japonês e Seus Microativismos, que a chave para isso seria trabalhar o que a arte tem de mais potente, ou seja, fazer da alteridade um estado de criação e não de exclusão. Ao contrário da vida cotidiana, no ambiente artístico não cafetinado (para usar o termo de Rolnik) não se trata de eliminar a diferença, mas de se alimentar dela, de se desconstruir em relação ao outro para criar e cooperar.

Infelizmente, não tem sido fácil cultivar essa postura ética. Assim, quando se fala na relação entre arte e política, a maioria dos debates está pautada por necessidades práticas vinculadas diretamente ao tema da sustentabilidade financeira. No entanto, considero importante incentivar uma reflexão no âmbito da crítica e da discussão político-filosófica, ativando diálogos para além da discussão sobre empregabilidade.

O meu foco principal são as pontes possíveis. Algumas teorias podem (e devem) ajudar a pensar a sustentabilidade, não apenas para viabilizar a sobrevivência dos artistas, grupos e projetos, mas no sentido ético, ou seja, de manter a coerência conceitual das experiências e estimular uma discussão mais ampla da arte no mundo contemporâneo. Se é sempre tão difícil sobreviver de arte, por que faz sentido seguir criando?

Essa pergunta não é novidade. Em setembro de 2010, como parte do debate suscitado pela 29ª Bienal de São Paulo – cujo tema era a impossibilidade de separar a Arte da Política –, o professor da Universidade de São Paulo, Teixeira Coelho [1], pontuou que a política seria um conjunto ordenado de iniciativas que visam buscar algum tipo de consenso com a finalidade de mudar um estado de coisas, de preferência para melhor. Já a arte funcionaria como um instrumento de provocação do dissenso: a “iminência de uma revelação que não se produz” ou a “iminência de um começo de mundo”.

Essas frases, respectivamente formuladas por Néstor Garcia Canclini e Merleau-Ponty, foram lembradas por Coelho para argumentar sobre a incompatibilidade entre a “poética da iminência artística” e a “aspereza da política”, que constrói um abismo que não interessa à arte transpor.

Sob essa perspectiva, a arte nunca poderia ser política. Mas, ao semear o dissenso, teria agido sempre como uma espécie de tecnologia cognitiva de transformação e, portanto, indissociável da política. Quais seriam então os perigos e benefícios dessa aproximação? Qual a extensão das zonas de indistinção entre arte e política quando o tema é a empregabilidade e a distribuição de recursos financeiros para a arte? É possível separar com clareza os territórios de atuação de uma e de outra?

A definição de arte que mencionei acima (“tecnologia cognitiva de transformação”) não faz parte de nenhum ensaio de arte contemporânea, mas do livro Bonds of Civility: Aesthetic Networks and the Political Origins of Japanese Culture, da pesquisadora Eiko Ikegami, que estudou as redes de resistência do Japão medieval, demonstrando que o caráter transformador da arte não é dado, mas construído a cada dia e coletivamente. Sem isso, descaracteriza-se. Essas redes nascem do absolutamente comum no sentido de comunitário, público, compartilhado.

No coração do neoliberalismo, não é fácil lidar com essas tecnologias e, embora se queira acreditar que a arte é uma exceção, como dizia o cineasta Jean-Luc Godard, é dolorido perceber que toda exceção tende a se transformar em regra.

Segundo o filósofo Giorgio Agamben, em Estado de Exceção: [Homo Sacer II, I], é a exceção que define a soberania, desafiando as dicotomias habituais de dentro e fora, privado e público, o que é próprio e o que é do outro. Ao contrário do que costumamos pensar, a exceção não é o que se subtrai à regra. É a regra que, ao ser suspensa, dá lugar à exceção. Nesse sentido, reconhecer a arte como exceção pode não ser exatamente um elogio à natureza excepcional dos processos de criação que desafiam as regras estabelecidas. A arte reconhecida como um estado de exceção representa a exposição da lacuna que resta no lugar das regras suspensas.

Talvez os modos como a arte vem sendo tratada traduza novos sintomas do que Peter Sloterdijk chamou de “razão cínica” em sua obra Crítica da Razão Cínica. Trata-se de uma situação recorrente em que não se acredita mais em nada, no entanto segue-se fazendo o que sempre se fez. Quando a arte replica na mesmice, submissa às armadilhas da empregabilidade, perde o vigor, e, assim como todas as outras atividades, sucumbe ao cinismo e aos abrigos abstratos para justificar a máxima de que cada um sabe de si. Afinal, tudo se justifica quando o argumento se fecha nas necessidades da vida de cada um (as contas de água e luz, o aluguel, o supermercado). Quando o patrocinador potencial “apoia” arte tendo em vista pagar menos imposto, segue a mesma lógica que vale para todas as outras operações do seu cotidiano. Quando a imprensa escolhe dar destaque apenas às atividades artísticas que já são reconhecidas internacionalmente ao invés de discutir experiências locais, segue docilmente a trilha do mundo-mercado.

Nesse contexto, o tempo parece ser sempre um divisor de águas fundamental. Quanto tempo se pode resistir? Aquilo que é efêmero pode ser político? A ação política tem a ver com o grau de exposição e visibilidade? Há ainda outros estudiosos que ajudam a refletir sobre tudo isso.

Judith Butler tem insistido em conferências e publicações, como na publicação Vida Precária: Os Poderes do Luto e da Violência, que aquilo que move politicamente alguém é o momento em que o sujeito ou o coletivo assegura o direito à vida, quando não há nenhuma autorização prévia existente e nenhuma convenção parece viável. É apenas ao se tornar coletiva que a política fica palpável. O que é produzido é o potencial de divergência dos movimentos. Este seria um tipo de política do “ainda não” que abre espaços para que tudo que ainda não aconteceu possa vir a acontecer.

Transitando por essa política do “ainda não”, em 1955, no texto “Instintos e Instituições”, que faz parte do livro A Ilha Deserta e Outros Textos, o filósofo Gilles Deleuze chamou a atenção para a relação entre os termos instinto e instituição, concluindo que estas são duas formas organizadas de uma satisfação possível, mas constituem também alguns problemas políticos que se referem ao grupo. Isso porque toda instituição impõe algo a nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, e delega à nossa inteligência um saber. Em algumas situações, diz Deleuze, parece mesmo que o ser humano não tem mais instintos. O que ele faz são instituições. Parece um animal em vias de despojar-se da espécie.

O instinto traduz as urgências do animal configuradas na espécie humana e as exigências da complexidade incidem sobre o animal, domesticando-o. Tudo acontece ao mesmo tempo. Não é um ou outro. Assim, o problema comum ao instinto e à instituição é como fazer uma síntese entre uma necessidade e aquilo que a satisfaz: “A água que eu bebo pode não representar os hidratos dos quais meu organismo carece, mas ela pode me satisfazer. O tempo que passa implica muitas vezes em um tempo não vivido, mas assim mesmo ele passa.”

A diferença entre a instituição e o instinto está no fato de que não há interdições ou coerções instintivas. Existem repugnâncias instintivas, mas a coerção é sempre institucional. Nesse contexto, o que se chama de ação política não parece diferente, configurando-se sempre como uma tendência entre a instituição e o instinto, que testemunha a coevolução entre corpo-mente-ambiente. Isso porque nenhum fator exclusivamente interno desencadeia comportamentos diferentes em diferentes espécies. É a lacuna que não pode ser preenchida, nem ter as bordas coladas. Ela pode ser a origem do pensamento/ação.

Talvez o território do pensar politicamente esteja ainda antes dos sujeitos individuais, naquilo que Deleuze, inspirado por Gilbert Simondon, chamava de individuações impessoais ou singularidades pré-individuais, uma vez que a fissura da ação política está sempre no entre: entre um sujeito e outro, entre a vida de um e a vida de muitos. Ela é, de certa forma, a compulsão para olhar o outro. O que temos ainda a aprender é como lidar com essa alteridade.

No caso específico da performance, enfrentamos um dilema que expressa as tensões entre a produção artística e as redes de consumo, e reflete também discussões que têm encontrado eco nas mudanças da natureza do trabalho, transitando entre o instinto e a instituição, entre a regra e a exceção, entre a arte e a vida.

As artes vivas sempre foram marcadas por uma produção reconhecida por muitos autores como “imaterial” a partir de Karl Marx e, mais recentemente, de Antonio Negri e Maurizio Lazzarato, que irão discutir isso na obra Trabalho Imaterial: Formas de Vidas e de Produção de Subjetividade. Ou seja, trata-se de um tipo de trabalho cujo produto seria marcado pela efemeridade do processo que o constitui, sempre fadado ao desaparecimento a partir do momento em que a ação se interrompe. Isso e outros aspectos estabilizados nos modos de pensar tradicionalmente a arte, criam um dilema entre os próprios artistas, sobretudo quando o tema é dinheiro ou o valor da obra de arte. A maioria admite uma dificuldade para lidar com isso e busca tangenciar o problema com novas formulações, na tentativa de concluir que a sua obra tem valor mas não tem preço.

Uma série de contingências colaboram com as armadilhas presentes nessa dificuldade. Se a arte não tem preço, o artista não pode depender dela para viver. Por outro lado, se o artista paga as suas contas com as suas atividades artísticas corre o risco de deixar de ser o “gênio criador”, adentrando a esfera dos trabalhadores comuns. Se adere às regras de mercado e de empregabilidade, perde o distanciamento crítico que caracteriza a arte e a pesquisa. Não é nada fácil discernir onde e como agir.

A fratura provavelmente vem de longe. O filósofo Immanuel Kant dizia que o gênio era o dom do criador artista e era no artista que a imaginação se liberava e o entendimento se alargava. Essas não seriam características universais, mas sim excepcionais.

Como Deleuze explicou no artigo escrito em 1963 sobre “A Ideia de Gênese da Estética de Kant”, novamente em A Ilha Deserta e Outros Textos, nem no artista nem no gênio encontramos uma subjetividade universal, mas sim uma intersubjetividade excepcional. E este sim seria um ponto importante a ser estudado.

Para Kant, o artista de gênio tinha duas atividades: de um lado ele criava, produzia o material de sua obra; e de outro lado formava e ajustava a sua imaginação liberada a um entendimento indeterminado, conferindo à sua obra um objeto de gosto. O gosto passou a ser, desde então, suficiente para a obra do gênio se tornar um exemplo para todos.

O que me parece importante refletir é se ainda tem sentido nutrir os ecos desse sistema kantiano, três séculos depois, diante das reconfigurações do mundo em que vivemos. Se o capitalismo e o neoliberalismo têm mercantilizado os desejos, por outro lado, também apontam reenquadramentos significativos. Não seria o momento de repensarmos antigos impasses reconhecendo o desgaste das antigas dicotomias, dentre as quais destaca-se a do artista gênio versus os trabalhadores comuns?

Profanar as categorias tradicionais pode nos ajudar a ativar novas redes. Para tanto, é preciso deslocar os esforços. Ao invés de oscilar entre a intangibilidade de obras geniais e a total mercantilização da arte, seguindo as classificações dadas a priori, pode ser interessante refletir acerca da sustentabilidade ética de cada experiência, tendo em vista os acordos possíveis para além da vida cafetinada, como sugere Rolnik.

Se é importante trabalhar de acordo com a singularidade de cada experiência, também é fundamental mudar o modo de pensar, evitando as perversidades da razão cínica. Quando reconhecemos a arte como um estado de exceção, no sentido proposto por Agamben, de certa forma identificamos que há uma suspensão das antigas regras, mas ainda não sabemos quais são as novas. Por isso, algumas soluções de sustentabilidade que pareciam efetivas em outros momentos históricos tem se mostrado cada vez mais ineficientes.

Para tanto, é interessante lembrar a hipótese do neurocientista Vilayanur S. Ramachandran, em Fantasmas no Cérebro, para quem a função da arte é o acionamento do sistema límbico (o centro da vida). Por isso não pode ser tratada como um produto qualquer nem tampouco como algo transcendente, mas sim como uma tecnologia de transformação vital. Foi essa qualidade de existência que lhe garantiu a sobrevivência até hoje. E é assim que pode viabilizar a nossa permanência, pelo menos por mais algum tempo, neste planeta.

 

NOTA

[1] Ver em: <http://www.seminariosmv.org.br/2008/textos/teixeira_coelho.pdf>.

 

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: [Homo Sacer II, I]. Trad. de Iraci Poleti. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004.

BUTLER, Judith. Vida Precária: Os Poderes do Luto e da Violência. Trad. de Andreas Lieber. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2019.

DELEUZE, Gilles. “Instintos e Instituições”. Trad. de Fernando J. Ribeiro. In: A Ilha Deserta e Outros Textos. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2006.

GREINER, Christine. Fabulações do Corpo Japonês e Seus Microativismos. São Paulo: Ed. n-1, 2017.

IKEGAMI, Eiko. Bonds of Civility: Aesthetic Networks and the Political Origins of Japanese Culture. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

NEGRI, Antonio; LAZZARATO, Maurizio. Trabalho Imaterial: Formas de Vidas e de Produção de Subjetividade. Rio de Janeiro: Ed. DP&A, 2001.

RAMACHANDRAN, Vilayanur S.; BLAKESLEE, Sandra. Fantasmas no Cérebro: Uma Investigação dos Mistérios da Mente Humana. Trad. de Antonio Machado. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2004.

ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição: Notas Para uma Vida Não Cafetinada. São Paulo: Ed. n-1, 2019.

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. Trad. de Marco Casanova. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

GREINER, Christine. “Performance e Ética”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

Texto completo: PDF