o mais belo
é o objeto que não existe
Zbigniew Herbert [1]
Recomeçar
[…] (Saio da sala de espetáculo. Começo pelo fim para esclarecer que este texto crítico pouco se importa se assume as condições necessárias para ser nomeado como um texto crítico ou não. Nesse momento, pouco me importa. Esclareço que o que vem a seguir, talvez inconstante ou fragmentado, opera mais como um registro superficial de lugares idos ao ver um trabalho do que uma argumentação precisa que o preencha de sentido, pois esse preenchimento – me parece – rechearia uma caixa que precisa estar, pelo menos parcialmente, vazia.
O trabalho de arte e o texto crítico como uma caixa vazia. Tentar colocar meu corpo dentro dele e perceber que os pés sempre ficam para fora) […]
Introduzir
Hoje tão célebres quanto as próprias pinturas de Pollock, as fotografias de Hans Namuth, que retratam o pintor em seu ateliê, realizando o gesto de derramar a tinta sobre a tela de pintura, nos apresentam imagens que anunciam uma grande alteração no olhar para a obra artística, que se desloca do produto final e passa para o próprio embate entre o artista e seu objeto. Datadas dos anos de 1950, essas fotografias mostram Pollock constituindo seu “legado” artístico, que prenunciaria o surgimento de uma nova linguagem artística na década seguinte: a performance art.
Essa é uma entre uma série de outros movimentos artísticos (como a arte conceitual, o hiper-realismo etc.) que marcam a transição da modernidade para o que tendemos a chamar de pós-modernidade artística, na forma de um provável sintoma da falência dos ideais de utopia e transformação da chamada arte moderna. Qualificá-la como sintoma já indica de antemão que pensaremos o surgimento da linguagem da performance não como algum tipo simples de ruptura em relação à representação artística – colocação corriqueira que desconsidera um olhar mais alongado para a história da arte e da própria conceitualização do termo performance –, mas sim como uma nova linguagem pautada na necessidade latente de se revisitar o estatuto do corpo nos mais diversos âmbitos e que surge como um movimento histórico natural, decorrente de um contexto histórico no qual ebuliam questões críticas referentes aos modos de produção artística, principalmente no que tange a uma lógica produtiva moderna do trabalho artístico que unificava a subjetividade do artista sob a égide do gênio criador, deixando de lado possíveis lacunas e zonas marginais do ato criador e da relação entre o corpo do artista e o que lhe é externo. A arte da Performance e a pós-modernidade, sendo nomeações que surgiram em um contexto de fim de regime moderno das artes, partilham problemas de vínculo e separação com o regime que os antecedeu.
Diversos teóricos estabeleceram relações de proximidade entre esses conceitos. Nick Haye, em seu livro Postmodernism and performance, coloca-os como paralelos, sendo a performance uma espécie de prenúncio do pós-moderno, que “pode ser lida como tendendo a promover o olhar em direção às contingências e instabilidades do pós-moderno” (HAYE apud CARLSON, 2009, p. 22). Já Ihab Hassan, conforme apresentado por Marvin Carlson em seu livro Performance: uma introdução crítica, dissocia, de forma binária, o modernismo e o pós-modernismo, opondo uma lógica processual, que seria própria do pós-modernismo, a uma concepção objetual da obra modernista (CARLSON, 2009, p. 141). Apesar da ironia contida no fato de se criar uma tabela binária para se discutir o pós-moderno – geralmente apontado como “líquido” ou “esquizofrênico” –, o apontamento sobre a relação entre obra finalizada e processo nos interessa, pois a lógica processual pós-moderna que Hassan marca pode apontar tanto para essas zonas marginais que são tão próprias de um zeitgeist dos anos de 1960 e de 1970 quanto para uma especificidade da performance, como nos relembra o etnógrafo Dwight Conquergood, também citado por Carlson, ao situar a performance – assim como seus estudos – “nos limites e nas margens, como aquele que mais claramente a distingue das disciplinas e dos campos de estudo tradicionais, preocupados em estabelecer um centro para suas atividades” (CONQUERGOOD apud CARLSON, 2009, p. 31).
Para nos guiar por essas questões, olharemos para um solo de dança nomeado Performance e concebido em 2012 pela performer Clarissa Sacchelli, lançando luz em uma questão central que permeia o trabalho e nossa discussão: a revisão do estatuto entre sujeito e objeto incidindo sobre os modos de produção, entendendo-os não mais como uma relação estanque e hierárquica, mas como um campo intersubjetivo e dialético, no qual “as fronteiras do individual mudam constantemente assim como as fronteiras entre público e privado, e a noção de indivíduo muda” (WARR, 2000, p. 7). Interessa-nos observar como esse estreitamento pode colocar o artista distanciado de sua própria lógica de produção mas amalgamado ao seu produto. Assim, o corpo da obra não mais substitui o sujeito, mas o sujeito incorpora a obra, em um pensamento que opera de modo distinto do pensamento moderno, no qual o “corpo da obra substituía a alma como a potencialmente imortal parte do sujeito” (GROYS, 2009, p. 11). Ao passo que o objeto de arte se torna cada vez mais isento de uma relação de produção essencialmente subjetiva com seu produtor, o artista que produz torna-se cada vez mais consciente de que não está mais na separação do objeto artístico do corpo do artista a possibilidade de se colocar subjetivamente no mundo, pois o objeto manufaturado já adentrou os domínios da artes.
Apresentar
texto
tex.to
(ês) sm (lat textu) 1 As próprias palavras de um autor, de que consta algum livro ou escrito. 2 Palavras que se citam para provar qualquer doutrina. 3 Passagem da Escritura que forma o assunto de um sermão.
crítica
crí.ti.ca
sf (de crítico) 1 Apreciação minuciosa. 2 Apreciação desfavorável. 3 Censura, maledicência. 4 Discussão para elucidar fatos e textos. 5 Exame do valor dos documentos. 6 Arte ou faculdade de julgar o mérito das obras científicas, literárias e artísticas. 7 Juízo fundamentado acerca de obra científica, literária ou artística. 8 Filos Parte da Filosofia que estuda os critérios. 9 Conjunto dos críticos; sua opinião. C. pessoal: a em que se trata mais do autor que da obra.
[…] (releio a última frase, sobre crítica pessoal, umas três vezes. Às vezes acho que ela seria a única definição possível) […]
Lanço as mesmas cartas que a artista: apresento, antes de tudo, como convite e primeiro acesso ao material produzido, as próprias definições do objeto com o qual o corpo do espectador será colocado em relação. Se no nosso caso, como visto acima, temos nos termos texto e crítica sua própria definição objetiva, em Performance (2012) somos deparados logo de antemão com dois conceitos no lugar do que seria a sinopse do trabalho: o conceito de performance e o de produto. Desse primeiro momento podemos pressupor algumas coisas, dentre elas que será um trabalho que discutirá a si próprio, aparentemente de modo imparcial e analítico, uma vez que não coloca nenhum tipo de hipótese acerca desses conceitos a ser comprovada pelo trabalho, reduzindo ao máximo um caráter projetivo ou idealizado da criadora em relação à sua obra. Sabemos somente o que há de mais racional, objetivo e geral sobre o que ela se debruçou. Outro pressuposto possível vem do posicionamento da definição de produto logo abaixo à definição de performance. Mais do que um olhar puramente estético, a relação proposta é claramente da ordem poética, ou seja, olharemos modos de fazer, produzir performance e – principalmente – abrir campo para se provar capaz de nomear o produto produzido como performance.
Ainda na sinopse, a relação possível entre performance e produto se dá na ordem contrária de sua apresentação, uma vez que são as capacidades do produto o que [também] pode ser denominado como performance. Há então uma espécie de valor ao que atribuímos (ou não) como performance, e que reside nos usos mais corriqueiros – e sempre citados – da palavra como bom desempenho ou funcionamento. Assim, performance seria uma qualificação do produto e, se possível, positiva. Estão estabelecidas, na junção dessas duas definições, uma série de relações de poder, tanto da ordem de quem produz quanto de quem assiste. Nessa lógica imposta de produção, o quanto a obra de arte precisa ser um produto?
Lembremos também que o que aqui realizo e denomino como texto crítico também opera dentro de um sistema produtivo, que está de antemão estabelecido para que eu, uma vez o aceitando, tenha como recompensa algum tipo de visualização desse material produzido. Sim, fazemos coisas para o outro, mas essa troca é mediada por um sistema no qual o outro recebe a forma já reificada. Para participar do processo, é preciso assumir que se produz e se consome. Enfim (estou divagando demais), entremos no teatro para ver Performance [Fig. 1].
Fig. 1 – Clarissa Sacchelli, Performance, 2012. Solo de dança. Fotografia de Ludo des Cognets
[…] (A partir de agora, não é possível se isentar) […]
Sumarizar
No palco, uma pessoa e uma caixa. Dessa pessoa, inúmeras nomeações possíveis, que carregam consigo pesadas determinações: um indivíduo, um sujeito, um corpo, uma bailarina, uma performer, Clarissa, um objeto. Sim, algo que objetifico com o olhar, que já insiro, denomino e delimito de acordo com determinado repertório meu, sujeito que age sobre a imagem vista. Se, como nos lembra Marvin Carlson, o que sugere em primeira instância que as artes performativas são performativas é “elas requerem a presença física de seres humanos treinados ou especializados, cuja demonstração de certa habilidade seja a performance” (CARLSON, 2009, p. 13), entro no espaço esperando que aquela pessoa faça algo, que eu reconheça esse algo como performance (dentro do que hoje entendemos como uma) e que, se possível, eu a qualifique como boa. Os graus de objetificação, imensos mas já internalizados no corpo, me colocam na segura posição do observador que analisa. Ao lado dessa pessoa, uma caixa de tamanho próximo ao seu corpo, com duas janelas na região dos olhos (fazer a relação me parece inevitável). É mais fácil nomear a caixa como objeto, pelo menos por enquanto. Também é fácil imaginar seu processo de produção, as dobras do papelão, as informações padrão que a acompanham (this side up, handle with care e do not drop) e como todos esses signos estão vinculados a uma função específica da caixa. E daquele corpo, cujo processo de produção não conseguimos ter acesso: a quais funções seus signos evidentes apontam? Eles corresponderão ao produto-espetáculo? Ou o questionarão?
Como primeira ação, essa pessoa me narra as quatro partes do seu solo, fornecendo as informações que julga essenciais. O que vemos delineado é uma espécie de projeto, ou plano de ação. Há um caráter de planejamento muito racional que nos evidencia cada vez mais que tudo foi pensado, como se, logo após o campo de estudo, víssemos o sumário do trabalho. Está claro que tudo o que veremos a seguir parte desse programa, que precisa se desenvolver e se finalizar. Seria essa primeira ação – de acordo com a definição do dicionário que nos foi dada na sinopse – uma performance por si só, uma vez que “apresenta uma peça”, delineadas suas partes e principais características? Temos aqui, de forma sutil, a primeira de uma série de camadas sobre o ato performativo: apresentar.
Esses dois objetos, silenciosamente, tornam-se um, com a entrada da pessoa na caixa. O que antes era uma possível relação entre sujeito e objeto, na qual a pessoa agiria sobre a caixa, dá lugar para essa imagem na qual a pessoa entra na caixa e desaparece, permanecendo apenas o reconhecido repouso daquele objeto. Iniciar um processo de produção requer dominar o objeto (ou o que você objetifica, inclusive seu próprio corpo) e transformá-lo para seu uso, colocar-se como produtor de algo que é produzido, sendo possível inclusive pensar a dança (ou ao menos um tipo de dança) como um exemplo desse processo de olhar de modo objetificado para um corpo, impor sobre ele um modo de produção e processá-lo a fim de moldá-lo à forma idealizada. André Lepecki nos coloca possíveis porquês para essa relação no seguinte trecho:
Dado que a dança possui uma relação íntima com as questões política e ética da obediência, dos gestos governados, dos movimentos determinados, não é de admirar que a dança (mas também a performance, graças à sua verve politicamente aberta e, particularmente, a sua preocupação sobre como objetos provocam ações) deva se aproximar de objetos – já que os objetos parecem estar governando nossa subjetividade, parecem estar nos subjetivando, direcionando gestos e corpos, sob a função dispositivo. (LEPECKI, 2012, p. 97, sublinhado nosso)
De antemão, não há mais distinção possível. Dentro dessa clareza assumida e anunciada, a imagem é também clara e direta: a antiga justaposição dá lugar a um amálgama, no qual o que está em evidência é o caráter reprodutível desses corpos, o corpo contido, corpo-caixa, corpo com modos de usar previamente estabelecidos e que corresponde a funções pré-determinadas.
[…] (Desses corpos, resta performar) […]
Processar
Esse projeto, apresentado em quatro etapas, nos relembra um projeto muito maior: o da transição da dança moderna para a contemporânea, em seus primeiros passos no início do século XX. Assim, uma vez que já fomos informados sobre o atual projeto, condensado na forma de espetáculo-produto, resta para Clarissa fabricá-lo (relembro-me de que informar e fabricar são componentes de um mesmo programa, uma vez que o conceito dado ao objeto institui sua função e significado). Assim, somos apresentados, sem pressa, a um processo de produção de uma dança possível desse corpo, que se dá a partir da relação e experimentação programada com um outro, no caso, a caixa de papelão. Essa dança, que gradualmente vai se fabricando, é produzida de modo a corresponder notadamente a uma lógica reprodutiva, que em nada lembra a autonomia buscada pelos grandes coreógrafos no período que Laurence Louppe denomina como grande modernidade.
Em seu livro Poética da dança contemporânea, a autora retoma a crítica Françoise Dupuy e sua análise dos fundamentos da dança contemporânea, dentro de um quadro ainda denominado como a grande modernidade (marcado pelo período compreendido por Isadora Duncan até os experimentos da Judson Theater). Dentre esses princípios, o segundo citado é: “a produção (e não a reprodução) de um gesto” (DUPUY apud LOUPPE, 2012, p. 45). O que vemos em Performance, claro espetáculo-produto, parece um comentário crítico sobre esse próprio projeto quando visto de forma distanciada, fundamentado principalmente na indissociabilidade entre produção e reprodução e na impossibilidade de se pensar em indivíduo que produza a partir de uma origem pessoal.
Esses dois fundamentos, notadamente pós-modernos, quebram com qualquer ilusão fundamentadora do gesto artístico, assim como qualquer hipótese de que aquele indivíduo que performa possui alguma genialidade própria que qualificará seu produto. Como vemos na citação abaixo, estamos em um outro campo, onde não há mais chances de se criar uma originalidade a partir de um gênio criador
Este componente novo é o que geralmente se costuma chamar a “morte do sujeito” ou, em expressão mais racional, o fim do individualismo como tal. Os grandes modernismos estavam, como dissemos, ligados à invenção de um estilo pessoal e privado, tão inconfundível como a nossa impressão digital, tão incomparável como nosso próprio corpo. Porém, isto significa que a estética da modernidade estava, de certo modo, organicamente vinculada à concepção de um eu singular e de uma identidade privada, uma personalidade e uma individualidade únicas, das quais se podia esperar o engendramento de sua visão singular de mundo, forjada em seu próprio estilo, singular e inconfundível (JAMESON, p. 4, 1985)
Oras, se não há mais um sujeito fixo e determinado, a categoria do objeto também muda. Vemos com Henri Pierre Jeudy que “a distinção sujeito-objeto não tem mais muito sentido: o corpo, como um objeto entre outros, é também sujeito” (JEUDY, 2002, p. 10), ou seja, estamos frente a frente com um processo intersubjetivo no qual as categorias de poder e domínio sobre o objeto são reconfiguradas.
É inevitável pensar nesse surgimento e validação como sintoma de um processo de tecnicização crescente da produção e das inúmeras transformações que esses mecanismos geram no corpo. A sociedade disciplinar, como vista por Foucault, em seus fundamentos no século XVIII e XIX, disciplina e organiza os corpos até que seja possível a internalização desse processo de contenção corporal, tornando a inserção de uma sociedade de controle um fenômeno sutil de molde corporal, pontuado pelos eventos do fim do século XIX e da primeira metade do século XX, como as revoluções industriais e as grandes guerras. Vemos em Foucault o corpo como um recipiente passivo de inscrição cultural, receptáculo que nos requer uma consciência histórica para possibilitar o entendimento do “processo de destruição histórica do corpo” (FOUCAULT apud BURT, 2004, p. 148). Uma vez que o corpo é “a superfície inscrita de eventos (traçados pela linguagem e dissolvidos pelas ideias), o local de um sujeito dissociado (adotando a ilusão da unidade substancial) e um volume em perpétua desintegração” (ibidem), faz-se necessário entender e refletir sobre as alterações realizadas no corpo a partir das transformações metodológicas do trabalho realizado por esse corpo. Esse deslocamento do modo de produção para um nível cada vez mais objetificado e globalizado leva a um questionamento direto sobre o polo oposto da linha de montagem: o corpo que produz e como essa produção molda sua subjetividade.
Na Performance de Sacchelli, aos poucos o processo de produção se intensifica, determinado a partir de alguns gestos simples (como dar um passo, elevar os braços com as mãos fechadas, abaixar o pescoço). Impossível não sentir certo déjà-vu de UM “corpo pedestre” tão visto na dança hoje produzida. Esses gestos, apropriados pela dança no seu diálogo direto com a performance, parecem operar em uma lógica funcional, como vemos com Louppe
Tirar a roupa para dormir, varrer, fazer café, abrir e fechar portas são interessantes numa dupla óptica: aproximam-se da não dança, uma dança de ação pura sem um objetivo, procurando menos ainda qualquer efeito coreográfico, próximo da performance, na qual o movimento não é realizado pelo seu teor, mas é unicamente utilitário, no sentido da concretização de uma ação precisa (LOUPPE, 2012, p. 128)
Nesse processo de produção de sentido, algumas imagens: a constante imagem de setas verticais apontando para cima, na caixa, contra a imagem de um pescoço que nunca permanece na mesma angulação; o This side up [Este lado para cima] de um corpo vivo só dura frações de segundo; ao mesmo tempo vemos, logo atrás da caixa, uma cabeça que sobe e desce através de um pulo, e lembramos que um corpo humano tem articulações que permitem esse gesto (nesse caso, um lado do corpo pode subir de outra forma que a caixa). Começo a ver as faces dos objetos, suas diagonais e os diferentes modos de incidência da luz teatral sobre eles. Ao mesmo tempo, percebo que o produto começa a se formar, eu me afeto, estabeleço relações, identifico imagens, aproximo-me e me distancio. Repito: eu me afeto, e nesse percurso me pergunto se a possibilidade de se afetar é apenas da ordem da arte ou é também possível em um produto construído de forma tão cartesiana. Talvez seja preciso deixar de lado certo maniqueísmo e lembrar que “em nossa presente sociedade, as próprias massas são moldadas pelo mesmo modo de produção que o material a elas impingido” (ADORNO, 1986, p. 37). Dessa forma, o tecido de relações e o processo de formação dessa subjetividade que me atravessa também produz esse afeto. Nesse processo de se afetar, aquela antiga frieza processual se torna apenas um esclarecimento que a superfície não é em nada problemática, pelo contrário, é onde a imagem se constitui.
De repente, em meio ao processo que se constrói diante de nossos olhos, a performer começa a girar durante alguns minutos, para logo em seguida repetir sua produção de dança. Sua pele está avermelhada, seu corpo cambaleante. Vemos seu corpo em outro estado repetindo a mesma estrutura coreográfica, mas sua presença mudou. Ela está mais atenta, seu cuidado para andar mudou pela dificuldade gerada pela perda de equilíbrio, o espaço até parece mais quente. Mas só parece.
Fortemente influenciado pelos escritos de Derrida, principalmente pelo capítulo “O teatro da crueldade e o fechamento da representação”, do livro A escritura e a diferença, o pensamento pós-estruturalista sobre a pós-modernidade opera uma rejeição ao projeto moderno do teatro artaudiano, que foi um dos principais alicerces para os primeiros trabalhos em performance art, defendendo que “o escape da repetição (e portanto do teatro) é impossível, que a consciência está sempre envolvida com a repetição” (CARLSON, 2009, p. 153). Vemos aqui como o caráter fenomenológico dos principais happenings dos anos de 1960 This side up, que exaltavam a unicidade do ato This side up, não opera, sendo inclusive um eco da imanência aurática da obra de arte modernista transferida para o corpo como suporte. Carlson nos aponta essa mudança de pensamento no seguinte trecho:
A abordagem fenomenológica da performance com ênfase na presença (a despeito das observações de Fried) tornou-se muito mais problemática com a chegada da teoria pós-estruturalista, pois esta questionou tanto o censo de plenitude como a liberdade dos valores externos e as afirmações defendidas pela abordagem fenomenológica. O desafio que se colocou para a estética da presença desafiou também a defesa essencialista e modernista da performance, da separação das outras artes em geral e do teatro em particular. Trata-se de um aspecto baseado na presença do corpo performático. Assim, enquanto a visão modernista da performance estava desaparecendo, ela foi gradualmente substituída por uma visão pós-modernista da
[…] (Somos interrompidos por um Blackout, o que impossibilita de ver o fim da citação e sua referência. O pensamento que se tentava se estruturar em meio a uma série de acontecimentos também se interrompe) […]
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(Aqui, um misto de nostalgia e cansaço da luz azul, fumaça excessiva e música de balé clássico. A caixa dança O lago dos cisnes, e vemos a imagem cômica de dois pés que a movimentam de um lado para outro, realizando as possibilidades de diagonais e desenhos espaciais vistos anteriormente. É tão absurdo, que só me resta acreditar. Decido que, como na peça, essa parte do texto será um enorme parêntese, um parágrafo, só que deve conter todo o resultado de um processo de produção histórico sobre a forma artística. Assim como no espetáculo, o nível de citação será breve e alto, então assumo que aqui minhas palavras serão também de outros autores. Não que elas não tenham sido até agora, mas assumir essa condição muda o olhar sobre a forma. Está sublinhado, e portanto, pode parecer exagerado, mas há exagero na tentativa de constituir uma forma pessoal. Quer dizer, mudei de ideia, não falarei sobre ninguém, apenas olharei para esse objeto que se oferece à minha visão: frente, frente, diagonal, frente, trás, diagonal. Te farei olhar de forma mais atenta e precisa para os lugares comuns da dança e do discurso acadêmico. Delimito um espaço, ambiento uma atmosfera, torno os caracteres itálicos para diferenciá-los do outro processo de produção, tomo escolhas. Aqui, temos o produto, mas vê-lo depois de tanta clareza sobre o modo de produção torna-se quase impossível. É como comprar uma roupa de marca depois de ver um documentário sobre as condições de trabalho das costureiras que a confeccionaram. Sem espaço para pausa, respiro ou esclarecimentos, somos conduzidos até uma espécie de clímax: no ápice da música, mais quatro pessoas-caixa entram, movimentando-se igualmente. Está feita a coreografia, está montado o espetáculo. Corpos que assistem ao resultado correto, preciso E DIGNO DE SER VISTO de uma produção prévia, concebida e repetida diversas vezes até ser separada da realidade por uma série de artifícios técnicos. Olhamos isso e reconhecemos dança. Olhamos isso e reconhecemos a dança. Olhamos isso e reconhecemos uma dança. Olhamos isso e reconhecemos dança?)
Blackout. E agora?
Dançar
Por fim, resta a caixa, centralizada em um palco vazio. Não se sabe mais se a pessoa está dentro dela ou não (pois no blackout anterior ela poderia ter saído). Dessa forma, o que nos olha é aquele objeto, anteriormente dotado de subjetividade e que agora retorna ao seu constante repouso. Mas ele, na nossa incerteza, nos olha. Faço as contas e relembro que se inicia a quarta parte, que seria a parte no qual “todos dançam juntos”, de acordo com as informações dadas no início do trabalho. As luzes da plateia se acenderam junto às do palco, o que me deixa ainda mais exposto em relação àquela caixa-coisa-sujeito que agora me olha, e, parada, provavelmente espera que eu dance.
Aqui, relembro de um trabalho anterior de Sacchelli e sei que produzir algo agora está por minha conta. Em Sem título, trabalho realizado antes de Performance, performers pedem às pessoas que passam ou habitam o local da performance para que elas os prendam com fita isolante em alguma parede específica do local. Aqui, os polos são invertidos durante todo o trabalho, e quem realiza a ação é quem a observaria, prendendo quem deveria agir e deixando-os os mais imóveis possível. Resta aos performers uma posição próxima à da caixa, se objetificar e esperar, olhar a ação do outro se desenvolver e, nesse percurso, afetar o que for possível afetar.
Permaneço olhando a caixa durante muitos minutos, e novamente estamos revendo procedimentos, inclusive os do paradoxal still-act, que planeja as tensões no sujeito, as tensões na subjetividade pela força da sedimentação corporal pela poeira histórica. Contra a brutalidade da poeira histórica literalmente caindo sobre os corpos, o still-act “reforma o lugar do sujeito no que concerne ao movimento e à passagem do tempo” (LEPECKI, 2006, p. 15). Alguém precisa dançar para que o trabalho termine, mas essa poeira histórica determina que, nesse tipo específico de produção, quem se move é a caixa-corpo, objeto do meu olhar. Eu apenas a objetifico, sentado e no escuro. Comigo há de estar tudo bem.
Como não estou sozinho, percebo que constituo um grupo de objetificadores desesperados para serem afetados. Como um grupo, que recebe a proposta de dançar e não sabe como, é muito mais provável que um de nós desista do jogo proposto do que a caixa-que-olha. Ela, como objeto, poderia ficar lá para sempre; não é um problema a espera. Nós ainda acreditamos na nossa individualidade, e com ela toda a gama de reverberações possíveis a partir desse embate.
Alguém desiste e levanta. Tchaikovsky começa a tocar e indica que está iniciada a dança, releitura pública d’O Lago dos Cisnes. Entendendo uma camada da proposta, todos aceitam essa dança da saída, que é pontuada por algumas palmas, pedidos de licença, comentários, pausas, deslocamentos da coluna cervical para os últimos olhares para a caixa.
Eu permaneço, decidindo escrever esse texto. Acho que o jogo pode ser outro, e na pausa também pode haver dança, uma vez que nessa pausa há uma corrente infindável de pensamento, e que nesse fluxo também há dança.
O pensamento define espaços e é definido por espaços; o pensamento lógico separa e aproxima, inclui e afasta. Funciona como uma estrutura que gere territórios, um proprietário ou legislador que permanentemente diz: isto está dentro, pertence a, isto está fora, não pertence a. (TAVARES, 2013, p. 40)
A luz permanece acesa [Fig. 2]. E agora?
Fig. 2 – Clarissa Sacchelli, Performance, 2012. Solo de dança. Fotografia de Ludo des Cognets
*
Nota
[1] Trecho do poema “Estudo do objeto”, de Zbigniew Herbert, traduzido por Rogério Bettoni. Disponível em: <http://umbigodascoisas.com/2011/11/18/estudo-do-objeto/>. Acessado em: 30 jun. 2014.
Bibliografia
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BURT, Ramsay. “Genealogy and dance history”: Foucault, Rainer, Bausch and de Keersmaeker. In: LEPECKI, André (org.). Of the presence of the body: essays on dance and performance theory. Midletown: WUP, 2004.
CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
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JAMESON, Frederic. “Pós-modernidade e sociedade de consumo”. Novos estudos CEBRAP, São Paulo n. 12, pp. 16-26, jun. 1985.
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Liberdade, 2002.
LEPECKI, André. 9 variações sobre coisas e performance. Urdimento, 2012; v. 19: 95-101.
___________. Exhausting dance: performance and the politics of movement. New York: Routledge, 2006.
LOUPPE, Laurence. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
TAVARES, Gonçalo. Atlas do corpo e da imaginação. Portugal: Caminho, 2013.
WARR, Tracey; JONES, Amelia. The artist’s body. Estados Unidos: PHAIDON, 2000
Revisão de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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