Performance: Ação na Construção de Outras Espacialidades

 

Diante do tema aqui proposto, as cidades nas suas relações com as artes, e mais especificamente com a performance, gostaríamos de começar com uma desilusão [1]. A desilusão experimentada pelo narrador de Em Busca do Tempo Perdido. Repetidas vezes, ao longo dos sete volumes que compõem a obra de Marcel Proust, nos deparamos com esta desilusão: a desigualdade entre as cidades tantas vezes imaginadas e sonhadas (como Balbec, Veneza…) e as mesmas cidades Balbec, Veneza que poderíamos chamar de reais. A visita proporcionada por tão sonhada viagem resultava num desencantamento, ao que o narrador conclui, no último volume, que “muitas vezes, no decurso da existência, a realidade me decepcionara porque, ao vislumbrá-la, minha imaginação, meu único órgão para sentir a beleza, não se lhe podia aplicar, devido à lei inevitável em virtude da qual só é possível imaginar-se o ausente.” (PROUST, 1988: 153) Retornaremos a essa conclusão posteriormente, mas gostaríamos de reter a oposição, aparentemente intransponível, entre a realidade e a imaginação, e também entre a verdade e a beleza.

Por hora, entretanto, gostaríamos de levá-los a outros caminhos. Cabe ressaltar que não pretendemos propor aqui nenhuma análise ou interpretação para os diferentes registros de ações performativas por nós elencados ao longo do nosso percurso. Nosso objetivo é pensar com essas imagens, fazer das imagens uma forma do próprio pensar. Não pretendemos usar os conceitos para pensar a arte, ou a performance, mas usar a arte para pensar o conceito.

Assim, se pretendemos pensar a arte da performance na sua relação com o espaço, temos que primeiro definir de que espaço exatamente estamos falando. Podemos responder imediatamente que se trata de ações realizadas em espaços públicos, espaços privados ou mais, especificamente, museus, galerias, praças, ruas, etc. O que parece ser um consenso é que quando falamos de performance, ou seja, de ações performativas desenvolvidas por um performer, mesmo que tenhamos discordâncias acerca do que venha a ser exatamente performance art concordaremos que essa ação acontece em um lugar. Lugar este que será, eventualmente, referido na legenda de um registro fotográfico, nos créditos de um vídeo ou ainda na descrição da ação num portfolio. Pois o consenso reside no fato de que uma ação (de qualquer tipo) acontece em algum lugar no tempo e no espaço.

É sobre esse consenso que gostaríamos de falar. O consenso não reside, no entanto, no fato de haver espaço, e da relação que uma ação estabelece com um qualquer espaço (o que em filosofia chamaríamos de necessária, por não ser contingente). O consenso diz respeito ao conceito que possuímos do espaço: um espaço superfície, um espaço extensivo, no qual as ações se desenrolam. Logo, temos, então, o espaço como um conjunto de coisas imóveis, sobre as quais os seres se deslocam através do tempo. Desse ponto de vista, o espaço é apenas uma coordenada xy, possível de ser conhecido, e sublinho aqui o termo conhecido. Acreditamos, por exemplo, que conhecemos um lugar quando o vemos representado num mapa ou através de um GPS. Além disso, em certa medida, esse conceito de espaço o reduz ao conceito de tempo, pois ele apenas é, possui existência, na medida em que as coisas acontecem sobre a sua superfície: “e se o espaço for a esfera não de uma multiplicidade discreta de coisas inertes, ainda que completamente inter-relacionadas? [pergunta Doreen Massey] E se, ao contrário, ele nos apresentar uma heterogeneidade de práticas e processos?” (MASSEY, 2008: 160).

Seguiremos então com essas duas questões para podermos pensar outras possibilidades de espaço, e também outros sentidos que podem daí emergir da arte. Então prosseguimos um pouco mais na direção proposta por Massey. Segundo ela “se o espaço é mais do que coordenadas (ou mesmo não é), mas um produto de relações, então ‘visitar’ é uma prática de envolvimento, um encontro. É nesse processo de estabelecer uma relação que […] o espaço é construído, bem como atravessado, nesse encontro” (MASSEY, 2008: 139; grifo nosso). Temos, então, um espaço que é processo, construção de práticas. “Então [prossegue Massey] ele [o espaço] não será um todo já-interconectado, mas um produto contínuo de interconexões e não conexões. Assim, ele será sempre inacabado e aberto.” (MASSEY, 2008: 160) Como demonstra o argumento de Massey, o espaço é encontros e processos, e não um lugar no qual esses encontros e processos acontecem, pois desse modo seria ele apenas uma superfície lisa e imutável; tais encontros e processos são o próprio espaço, e, dessa forma, não é possível que o espaço seja algo concluído. Talvez ao invés de dizermos “seja”, devêssemos dizer “esteja”, tendo em vista que em nosso idioma essa distinção retira das coisas o caráter das essências, daquilo que permanece inalterado. Dessa maneira, o espaço alcança um “estar”, de forma que ele mesmo possa ser interminável e inacabado. Cabe ressaltar aqui que não se trata de uma subjetivação psicológica do espaço, pois isso resultaria apenas na relativização do espaço enquanto impressão subjetiva. Tampouco iremos submeter essa noção de espaço a certo objetivismo, pois isso apenas empobreceria a discussão proposta por Massey.

Ao confrontar as artes performativas a esse espaço processo, podemos perceber que o espaço já-interconectado (e destaco aqui que Massey opta pela grafia em forma de uma só palavra, pois isso evidencia justamente a imobilidade e a forma fechada do espaço) é estreito demais para comportar corpos, sujeitos e objetos que o atravessam. Nesse atravessar de corpos, sujeitos e objetos, estes o transformam em novas relações e processos muitas vezes efêmeros, mas nem por isso menos reais e construtivos. Massey continua ainda dizendo que o espaço processo:

 

[…] não é um terreno firme para ficar. Não é, de forma alguma, uma superfície. Trata-se do espaço como a esfera de uma simultaneidade dinâmica, constantemente esperando por ser determinada (e, portanto, sempre indeterminada) pela construção de novas relações. Está sempre sendo feito e sempre, portanto, em certo sentido, inacabado (contanto que “acabado” não esteja na agenda). […] “Sempre” significa, em vez disso, que há sempre conexões ainda a fazer, justaposições ainda a florescer em interações, ou não, elos potenciais que podem jamais ser estabelecidos. Resultados imprevisíveis e histórias em curso. (MASSEY, 2008: 160-161)

 

Marcus Vinícius, Frágil III. Performance realizada no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Dezembro de 2011. Fotografia de Marcela Antunes

 

Paulo Vega Jr., P.I.C.C.R.V. (Performance II). Performance na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

É nesse ponto que encontramos novamente a performance art; os encontros que acontecem entre o performer, seu corpo e sua ação são parte de um espaço enquanto uma simultaneidade de histórias-até-então. Escolhemos alguns trabalhos diretamente ligados à primeira edição da Mostra Performatus para nos acompanhar neste pensamento. Quando Daniel Toledo e Ana Hupe veste[m] nu no centro do Rio de Janeiro, ou na Central Galeria de Arte, que espaço estão construindo? Quando o Re-banho ocupa o adro de uma Igreja no Porto (Portugal) para um banho coletivo, que histórias acrescenta àquele inacabado espaço/monumento? Quais interações acontecem nesse espaço como eventualidade quando as duas cidades se encontram no voo de nuvem de Suzana Queiroga? Ou ainda, quais interconexões são possíveis no caminhar de Marcus Vinícius em Frágil III, ou no caminhar de Elen Braga em Trabalho 5: Sapatos de Ferro, ou também na habitação sonora do espaço por Paulo Vega Jr.? E poderíamos citar ainda os trabalhos de Ana Hupe, Waléria Américo, Lia Chaia etc., isso considerando que nossa opção foi destacar aqueles trabalhos que de alguma forma se relacionam com o espaço público e, principalmente, com a cidade, pois é sobre esse tema que nos temos dedicado há mais de um ano.

Às perguntas acima, não temos respostas. Mas são perguntas que permitem o ensaiar, o pensar. Arriscaria dizer que o voo de nuvem da “menina balão” é uma outra possibilidade da cartografia na qual a posição relativa não está fixada pela já-interconexão definida nos mapas. Também que o cheiro de sabonete dove no adro da igreja desconstrói o odor natural da missa dominical e transpõe ao espaço público aquilo que habitualmente é apenas privado: o banho. Mas igualmente transpõe o universo publicitário “da real beleza” para o discurso religioso, no qual o corpo é algo a ser controlado; tal transferência cria no espaço/monumento um novo espaço de interconexões, inabitual e político. O longo e lento caminhar de Elen Braga por uma rua do Porto pôs à prova seu próprio corpo, mas também o espaço, ao desvelar sua dureza árdua e íngreme. É seu caminhar dificultoso que dá a ver de forma singular o relevo tão característico da região do Douro. Do mesmo modo, Paulo Vega Jr., ao habitar a rua Mourato Coelho durante pouco mais de trinta minutos, criou novos fluxos descontínuos e eventuais para a rua paulistana. Atrapalhou o tráfego das pessoas e dos veículos apenas com a sua voz amplificada, criou desvios e paradas e, por fim, deixou-nos com uma enorme sensação de vazio e silêncio, algo inusitado na imagem da cidade/metrópole/movimento que é São Paulo.

Do ponto de vista do espaço inacabado e processual, a performance art possui um elemento privilegiado por ser uma arte tão eventual quanto o espaço no qual sua ação se desenrola. Interessante notar que o termo inglês possui uma ambivalência de sentido: como acontecimento e também como contingência. Algo que é atribuído ao espaço por Massey podemos nós também atribuir à performance na medida em que esta é um acontecimento que mantém estreita relação com as contingências, as quais são justamente construídas enquanto relações, interconexões do e no espaço.

Mas é tempo de retornarmos às cidades e às conclusões proustianas:

 

O que não precisamos decifrar, deslindar a nossa custa, o que já antes de nós era claro, não nos pertence. Só vem de nós o que tiramos da obscuridade reinante em nosso íntimo, o que os outros não conhecem. E como a arte recompõe exatamente a vida, em torno dessas verdades dentro de nós atingidas flutua uma atmosfera de poesia, a doçura de um mistério que não é senão a penumbra que atravessamos. (PROUST, 1988: 159)

 

A comparação aqui proposta com a obra de Proust é por analogia; o que interessa nesse caso é a potência que ele dá à arte (no caso dele, o reencontrar do tempo só é possível através da arte, mais especificamente da literatura; não iremos avançar mais nesse sentido pois o nosso tema-problema é o espaço). O que está em jogo, no entanto, é justamente a arte: para Proust, a literatura, para nós, a performance art, na sua potência de criar mundos. A arte tal como entende Deleuze, e antes dele, Nietzsche, cria outros mundos possíveis, devires, que compõem, recompõe e decompõe a realidade, pois são esses mesmos mundos a própria realidade, na medida em que a realidade e a verdade são meras ficções e o mundo uma fábula. Conforme aponta Deleuze: “a arte inventa precisamente as mentiras que elevam o falso ao mais alto poder afirmativo. É-nos preciso a arte para retomar e consolidar a potência do falso que pertence antes de tudo à essência da vida” (DELEUZE, 2001: 154-155). A arte cria outras geografias, pois não se conforma em apresentar uma outra imagem possível de uma cidade, de um lugar. Cada imagem é a própria criação de um outro espaço em devir, um espaço pensável, pois é no momento em que a imagem coloca em desvio aquilo que era habitual, que o espaço devém o inesperado: todas as possíveis especialidades. Uma obra de arte expressa além da sua visualidade, promove aberturas nos sentidos pré-estabelecidos do mundo ao constituir o real atravessado pela imaginação. Assim, as cidades proustianas são mais belas quando atravessadas pela imaginação. Nas palavras de Manuel de Barros: “O olho vê. / A lembrança revê. / E a imaginação transvê / É preciso transver o mundo” (BARROS, 1996: 75).

 

 

NOTA

[1] Procurei desenvolver aqui um diálogo entre as performances pertencentes à primeira edição da Mostra Performatus (Central Galeria de Arte, São Paulo, 2014) e as questões que venho estudando no âmbito da pesquisa de doutorado no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Tal pesquisa, que tem financiamento da Fapesp, é orientada pelo Prof. Dr. Wenceslao Machado Oliveira Junior, e faz parte das questões mais amplas desenvolvidas no grupo de pesquisa “Geografias, Imagens e Educação”.

 

BIBLIOGRAFIA

BARROS, Manoel. Livro sobre Nada. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Record, 1996.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. de Antonio M. Magalhães. Porto: RES Editora, 2001.

MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: Uma Nova Política da Espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MATA, Paulo da. “Você Tem o Pincel, Tem Suas Tintas, Pinte o Paraíso e Depois Entre Nele”: Uma Entrevista Performática com Suzana Queiroga. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013.

PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido: O Tempo Redescoberto, Vol. 7. Trad. de Lúcia Miguel Pereira. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1988.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MACEDO, Suianni Cordeiro. “Performance: Ação na Construção de Outras Espacialidades”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 11, jul. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e a autora

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