Marina Abramović Brinca aos Clássicos [1]

 

Em 2009, Marina Abramović levou a cabo uma performance que em nada se distinguiria das outras, não fosse o cenário e a impressão que temos, ao recordá-la através do registo fotográfico, que aquela linguagem nos soa familiar. Vasculhamos em nossa biblioteca visual e vemos que The Kitchen: Homage to Saint Therese é, na realidade, uma homenagem aos clássicos. Para a autora, as referências foram a sua avó; para mim, foram também Vermeer e os irmãos Grimm.

Marina Abramović mostra-nos como uma cantina de um mosteiro espanhol abandonado pode ser o cenário ideal para estabelecer relações entre a sua própria experiência (em criança participava muito com a avó na cozinha) e entre um arquétipo ocidental de beleza e de Bem. Ela é, ao longo de seis momentos documentados através de seis fotografias, simultaneamente, a bruxa de Hansel e Gretel, a mãe caridosa e santa ardente e visceral de Bernini: santa, ma non troppo. O que não há porém é uma relação percetível entre os diferentes momentos.

No primeiro momento, a autora eleva-se na cozinha numa imagem que fica marcada por uma referência muito inteligente às primeiras obras pictóricas com recurso a uma geometria estudada (vejam-se as conchas e as escumadeiras dispostas na mesa e apontando para a artista), e também ao Cristo Triunfante de Melozzo da Forli ou ao Transfigurado de Rafael, ambos a elevar-se no espaço com a mesma estrutura que a artista. A cena nos faz lembrar também do último estertor de Santa Teresa, ao erguer-se do leito na hora da morte.

No segundo momento dessa performance, a autora surge num registo um pouco diferente. A fotografia documenta, numa perspetiva aérea, Marina Abramović deitada no chão da cozinha. A fotografia capta dois espaços: um exterior e aquele em que a artista se encontra. A artista abandona-se como Santa Teresa se abandonou ao prazer de sentir o seu coração trespassado pela seta portadora do amor de Deus.

Em The Kitchen III e IV, muito semelhantes, vemos a artista sentada no chão da fria cozinha, rodeada dos objetos do seu martírio: os tachos. Tanto num caso como no outro está também presente a caveira nessa natureza morta que é – como veremos à frente – cada vez menos natural. O memento mori atira de volta ao observador a brevidade da vida e o esquecimento a que nos vota a morte. Ela regressa aqui ao seu papel de mãe que alimenta os filhos e que, como a Órfã no Cemitério de Delacroix [2], ou a mãe serena e piedosa de Michelangelo, se depara com a morte. Essa relação com a Pietá de Michelangelo estabelece-se em um nível formal, pois a posição do corpo de Marina é algo semelhante à postura da escultura do artista italiano. É de se referir que, nesse trabalho, Michelangelo foi criticado por ter esculpido Maria tão nova, o que seria incongruente tendo em conta a idade de Jesus quando morreu. Michelangelo respondeu que quem permanecia virgem e casta ficava jovem por mais tempo. A Marina Abramović falta o filho, mas aqui ela é mais Madalena (Santa Teresa d’Ávila foi muito influenciada por Maria Madalena), sobre a qual paira a suspeita de pecado, do que Maria.

Sem um seguimento lógico, Marina Abramović apresenta-se em The Kitchen V com uma taça de leite nas mãos (imagem muito semelhante a uma das muitas criadas anônimas que povoam os quadros de Vilhelm Hammershøi [3]), e no VI momento, talvez uma sequência do momento V, a autora transforma-se na criada de Vermeer. Encarna um misto de The Milkmaid e de Young Woman with a Water Pitcher, no que diz respeito à posição do corpo e à iluminação que não é a de Vermeer, mas que é feita pelo mesmo ponto de luz que o autor usa nas suas criações. Abramović é, no entanto, e nesse sexto momento, uma criada pós revolução industrial e, nesse sentido, a natureza morta pela qual a artista passou transforma-se aqui num retrato de um mundo em evolução. Essa evolução contribui para a aridez da cena, para a esterilidade dos cenários; e curiosa a referência à esterilidade num local que servia a tantas crianças.

O Castelo Interior de Santa Teresa d’Ávila faz referência a várias moradas da alma; Marina Abramović mostra-as, incentiva-nos a alimentá-las e, acima de tudo, alimenta-as. Não há interação com o público, não há tentativa de confrontar o público com a sua intimidade ou de polemizar a obra. Trata-se, tão somente, de mostrar estados interiores comuns a observadores e artista, levando em conta, também, que ela é uma observadora do seu público.

 

NOTAS

[1] Nos anos de 1980, em Portugal, uma mãe e seus quatro filhos formaram um grupo musical que se chamava Ana Faria e os Queijinhos Frescos. Brincar aos Clássicos, um dos álbuns do grupo que dava letra a partituras famosas, foi um sucesso. Em 2009, uma Marina Abramović doméstica, mas não domesticada, brincou duplamente aos clássicos: adaptou para o novo milênio cenas da pintura ocidental e fez-se passar pela Mãe que dá à luz o Filho, e, por este último, dá razão de ser à primeira.

[2] Nesse quadro, uma jovem sozinha e em ambiente árido desvia o rosto do observador como que olhando algo para além da cena.

[3] Esse artista dinamarquês apresenta, em suas obras, muitas imagens de personagens sozinhas e de costas para nós, os observadores. É como se não conseguíssemos penetrar no seu mundo, o que é perturbador tendo em conta a serenidade das obras.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

PINHO, Juliana. “Marina Abramović Brinca aos Clássicos”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 1, nov. 2012. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy 

© 2012 eRevista Performatus e a autora

Edição de Hilda de Paulo

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