Matéria em Constante Movimento: Joseph Beuys e Tim Ingold

 

1. Introdução: um homem que fala com lebres

 

A poluição ambiental avança paralelamente à poluição do mundo dentro de nós.

Joseph Beuys e Heinrich Böll

 

Um dos trabalhos mais paradigmáticos da arte contemporânea, reproduzido em diversos livros e estudos sobre o tema, consiste em uma performance de alto teor simbólico realizada em 1965 na Galerie Schmela, em Düsseldorf, intitulada Como se explicam quadros a uma lebre morta. Nela, o artista passeia pelo espaço expositivo repleto de quadros, embalando uma lebre morta nos braços e explicando para ela o que é “arte” pelo período de três horas. Vestindo sapatos com sola de feltro e cobre, e com o rosto envolto em mel e ouro em pó, Joseph Beuys (1921 – 1986) interrompe a explicação prévia e se senta com ela em um banco para lhe falar murmúrios incompreensíveis. O artista alemão, autor desse e de tantos outros trabalhos marcantes da segunda metade do século XX, será discutido no presente artigo como um promotor de novas formas de se pensar a relação entre homem e natureza.

No trabalho que citamos acima, por exemplo, essa nova forma pode ser indicada pelas simbolizações e relações entre os elementos utilizados pelo artista, conforme apontado pelo crítico Alain Borer: o mel, produzido pelas abelhas – de forma absolutamente organizada – e utilizado pelo homem, ao ser empregado na obra une os diferentes reinos, assim como estão unidos homem e lebre, cujo pelo pode ser entrelaçado e feltrado (assim como o feltro sobre o qual o artista pisa com seus sapatos). Porém, morta, a lebre se torna símbolo de renascimento e reencarnação de uma relação que só é possível a partir de uma língua primordial e gutural: os murmúrios (BORER, 2001, p. 20). A imagem solitária do homem que tenta se comunicar de forma ritualizada com um animal já morto sintetiza um interesse declarado do artista por uma revisitação de um saber primitivo e por uma igualdade no diálogo entre homem e animal como elementos necessários para se discutir, pensar e refletir não somente a respeito da arte, mas acerca de uma nova sociedade crível.

Como é possível ver nesse breve exemplo, a produção artística de Joseph Beuys promove um outro tipo de olhar sobre natureza, de caráter sinérgico e coetâneo, o que leva ao nosso interesse de pensar sua produção por um viés da coexistência entre forma e material na constituição de um “reino” que pretende reconstruir espiritualmente a unidade do ser humano, “onde natureza e civilização, ser humano e técnica, arte e vida, teriam suas dimensões igualadas” (ROSENTHAL, 2002, p. 20).

Para tanto, colocaremos sua produção em relação às recentes teorias do antropólogo britânico Tim Ingold, que propõe uma revisão dos termos “natureza” e “cultura” e dos usos que deles fazemos, pensando a relação do homem com o seu ambiente de modo coetâneo e sinérgico. Autor de livros como Being alive (2011), The perception of environment (2001) e Making (2013), Ingold – ainda não traduzido no Brasil [1] – realiza constantes entrecruzamentos entre a antropologia e as artes. Mesmo sem analisar diretamente a produção de Beuys em seus textos, suas reflexões fornecem outros caminhos para pensarmos a produção do artista, uma vez que a sinergia pensada por Ingold conversa diretamente com a “fusão entre ecologismo radical e estética pós-moderna” no projeto artístico de Beuys, que é acompanhada pela “falta de uma distinção significativa entre humanidade e o resto da natureza” (GANDY, 1997, p. 638).

É importante o termo projeto para introduzirmos o artista pois suas obras sempre se destinam a um objetivo maior, que visa, dentre outros fatores, a reestruturação de uma economia baseada num imperativo ecológico, reformulando o organismo social – o qual Beuys chama de escultura social. Esse projeto tem como alicerces a sabedoria mitopoética criada a partir de sua própria história pessoal e de uma série de partituras (grandes diagramas simbólicos e textuais) que são resultantes de suas aulas e palestras.

Dessa forma, mesmo sem uma preocupação cronológica [2], o artigo se debruçará sobre algumas obras de Beuys que se agrupam a partir do entrecruzamento entre o artista e Tim Ingold, uma vez que as obras nos levarão aos questionamentos de Ingold acerca do olhar socialmente dado aos materiais, que condiciona nossos modos de relação e sensibilidade para com o mundo material e os tornam meramente utilitários. Iniciaremos com a constituição do mito de Beuys e a importância desse ponto de partida para sua produção posterior, ainda com grande caráter escultórico, porém com um modo de tratamento dos materiais e resolução formal das obras que se distancia da lógica utópica da modernidade artística, dando espaço para uma existência concreta dos seus principais materiais (o feltro e a gordura animal). Em um segundo momento, olharemos para alguns desenhos e anotações de Beuys, comparando uma forma recorrente neles e na argumentação de Ingold: a forma espiralada. Com esses breves estabelecimentos de relação, veremos em Beuys modos de articulação concreta das proposições teóricas de Ingold.

 

2. Forma e matéria

 

Em ações concretas, Beuys traz para o espaço retangular de uma galeria vários pacotes de gordura. Abre-os, empilha-os e amassa tudo, de modo que o material se torne plasticamente maleável. Então ele aplica essa gordura a um ou mais cantos, alisando-a ao máximo. Depois contempla, analisa o todo por algum tempo e, a seguir, deixa a sala. Assim como se aplica óleo na cabeça do moribundo no sacramento da extrema-unção, o espaço humano, marcado pelo ângulo reto, é ungido nas ações do artista, para que possa estar à altura do futuro orgânico, das leis da vida e crescimento da natureza.

Volker Harlan

 

O artista Joseph Beuys, após ter participado da Segunda Guerra Mundial como soldado da Alemanha nazista, retira-se em um longo período de exclusão marcado por uma profunda crise pessoal, interrompendo a sua produção durante os anos de 1950. Ao retomá-la, o artista narra constantemente uma história sobre sua participação na guerra, que inclui uma experiência de quase morte e que descreve principalmente o encontro afetivo com os materiais que serão recorrentes em sua produção futura. Sem nunca ter comprovado os fatos – de caráter altamente simbólico –, a história é geralmente nomeada como uma lenda. Citamos um trecho dela, transcrita por Alain Borer em um denso texto sobre a obra do artista, que servirá como uma das bases para nossa argumentação:

 

Ainda jovem, começou o estudo de medicina, pretendendo devotar-se aos mais humildes, esse desejo, no entanto, foi destruído quando pilotava o seu Stuka, depois de ingressar na Luftwalle em 1941. No ano de 1944, aos 22 anos, ele miraculosamente escapou da morte na Ásia. O seu avião, um JU 87, caiu numa região coberta de neve chamada Crime ou Crimeia. Joseph ficou inconsciente por vários dias, semicongelado, foi levado por genuínos tártaros, que cuidaram de suas chagas. O povo, natural do lugar, logo o tomou por um dos seus: “Du nix Njemcky, du Tatar” [3], e trouxe-o de volta à vida, enrolando-o em seus tradicionais cobertores de feltro e aquecendo-o com gordura animal (BORER, 2001, p. 13).

 

Essa lenda, constantemente atacada por diversos teóricos que duvidam de sua veracidade, importa mais como elemento integrante do projeto artístico de Beuys – que compreende um olhar afetivo e sensitivo em relação aos materiais – do que como fato histórico a ser comprovado. Como nos coloca Alain Borer, “a lenda de Beuys deve ser tida como ‘verdadeira’ não porque os fatos que a alimentam sejam verdadeiros (eles nunca foram totalmente comprovados), mas porque uma lenda não é nem verdadeira nem falsa” (ibid., p. 12).

Em outras palavras, interessa mais o reconhecimento corpóreo e, poderíamos dizer, afetivo, que todos podemos ter da sensação de aquecimento do feltro e da gordura, dois dos materiais mais usados pelo artista. Essa lenda demarca, em relação aos trabalhos anteriores, um processo de reconhecimento do sensível nas obras de Beuys, que afirma: “Os homens de hoje não têm mais conhecimento da essência das coisas […] e nem do sentido da vida, ou do sentido das relações com o mundo” (BEUYS apud BORER, 2001, p. 14).

Para pensar sobre a revisão dos sentidos em Beuys, olhemos para um dos postulados de reversão citados por Borer ao introduzir o pensamento poético do artista (BORER, 2001, p. 15). O segundo deles, denominado como perda, consiste na percepção de uma redução da sensibilidade dos homens e da tentativa constante do artista de revertê-la (daí o caráter reverso dos postulados). O meio de operar contra essa redução será deslocar o olho e o corpo do espectador de sua obra para a qualidade pura dos materiais, preocupação próxima à de Tim Ingold, ao colocar a seguinte pergunta em seu livro Being alive: “Que perversão acadêmica nos leva a falar não dos materiais e de suas propriedades mas da materialidade dos objetos?” (INGOLD, 2011, p. 20). A constatação feita é que o olhar que lançamos para o trabalho manual com os materiais compreende todo o processo social que envolve sua produção (quem o produziu, o contexto da produção, quais objetos produzidos etc.), porém nunca olhamos para o material que o constitui. Somos culturalmente condicionados a focar em processos de consumo em detrimento dos processos produtivos, o que move nosso olhar para os objetos produzidos – e que contêm determinada materialidade – e não para o material. Dito em outros termos por Ingold: “é por isso que nós comumente descrevemos materiais como ‘crus’ mas nunca como ‘cozidos’ – pois a partir do momento em que eles se solidificam como objetos eles já desapareceram” (ibid., p. 26).

Há um paralelo claro entre esse modo de visão teórica e grande parte da história da arte ocidental, uma vez que ambas compreendem as substâncias materiais do mundo como tábula rasa para a inscrição de formas ideais. É preciso lembrar, inclusive, que Beuys contraria o minimalismo, movimento contemporâneo a Beuys no qual a “noção de real significado de se descobrir ‘como é o mundo’ excluía a possibilidade de formularmos qualquer hipótese estética segundo a qual pudéssemos investigar em profundidade o centro da matéria e dar-lhe vida metaforicamente” (KRAUSS, 2002, p. 303). Negando a “interioridade da forma esculpida” (ibid), escultores minimalistas como Donald Judd ou Carl Andre colocavam a ideia em primeiro plano, subjugando a matéria a formas mínimas como cubos, retângulos etc. Em Ingold, podemos perceber como esse posicionamento dialoga com uma visão mecanicista da natureza, na qual a imersão do criador “foi gradualmente suplantada pelo trabalho operativo cujo trabalho era colocar em movimento um sistema exterior de forças produtivas, de acordo com os princípios do funcionamento mecânico” (INGOLD, 2011, p. 295).

Poderíamos dizer que Beuys, contrariando uma racionalidade dominadora da matéria pressuposta no minimalismo, retoma uma importância do espaço interior da forma escultural visto durante a primeira metade do século XX [4]. Em um paralelo com os anéis de um tronco de madeira, Rosalind Krauss demonstra a importância de um núcleo interno que mantém viva a energia da matéria para os artistas modernistas:

 

A importância simbólica de um espaço interior, central, de onde provém a energia da matéria viva, a partir do qual sua organização se desenvolve como os anéis concêntricos que anualmente se formam em direção ao exterior a partir do núcleo constituído pelo tronco da árvore, tinha desempenhado um papel crucial na escultura moderna. Isso porque, na medida em que a escultura do século XX rejeitou a representação realista como sua principal ambição e voltou-se para jogos bem mais genéricos e abstratos da forma, surgiu a possibilidade – o que não se deu com a escultura naturalista – de que o objeto esculpido fosse visto como nada senão matéria inerte (KRAUSS, 2002, p. 301).

 

Porém – como Krauss argumenta –, não era o interesse desses artistas fornecer o material não transformado ao espectador, o que em Beuys surge como um dos principais fatores da obra. O uso da gordura animal, por exemplo, permite que reflitamos “sobre o material antes da forma” (BORER, 2001, p. 15), uma vez que ela possui um movimento próprio da sua relação sensível com o calor. É essencial para Beuys as propriedades de cada material em relação à transmissão de calor [5], uma vez que “observar as reações de materiais sensíveis ao calor também é um modo de investigar a relação entre movimento e forma” (ibid.). Em obras como Sala com gordura em Lucerna ou FOND III (ambas de 1969), podemos perceber como a forma de organização espacial e os materiais usados dialogam diretamente com a transmissão de calor entre corpo humano e material: Na primeira obra, o artista preenche as quinas da sala de exposição com gordura, substituindo os ângulos retos por massas que os arredondam; em FOND III, o artista dispõe, no espaço expositivo, diversas pilhas de feltro com chapas de cobre sobre cada uma, ligadas a um fio condutor, criando sistemas de fluxo, condensação e dispersão do calor que alteram diretamente o material (como no caso da gordura na sala, uma vez que ela é colocada nas áreas mais quentes do espaço) ou que simplesmente agrupam em áreas da sala quantidades extremas de calor (uma vez que o calor contido nas placas de cobre não se dissipa com o feltro).

Em Beuys, é a propriedade da matéria que constitui a obra, uma vez que “ante a matéria e, se pode dizer assim, antes da forma, antes de dar a forma, Beuys convida a apreender a dar próprias substâncias às potencialidades que elas encerram e, por conseguinte, às nossas” (ibid.). Essa aproximação entre o objeto de arte e um organismo vivo, que dialoga diretamente com outro (o observador), nos reporta a Tim Ingold no capítulo “Sobre tecer um cesto”, de seu livro The perception of environment (2001). Nele, o autor propõe o entendimento de que a ação de fazer é um modo de tecer, ao contrário do comum pensamento de que a ação de tecer é um modo de fazer, pois na tecelagem há uma geração da forma que parte diretamente da relação entre a matéria e o artesão.

Para desenvolver seu argumento, Ingold se reporta à divisão entre forma e substância, que, para o autor, implica a relação entre a especificação do objeto e os materiais brutos que o constituem, respectivamente. No caso dos seres vivos, poderíamos dizer que a forma é gerada internamente, uma vez que são os genes que indicam a estrutura formal primeira do ser; já no caso dos objetos, essa relação é invertida: a “forma é aplicada de fora, ao invés de ser revelada de dentro” (INGOLD, 2001, p. 339). Nos objetos, em uma primeira instância é o mundo das substâncias, da matéria pura, que precisa se apresentar ao feitor do artefato como substância para ser transformado.

Mas Ingold prossegue, em uma pergunta que Beuys pode já ter feito antes de passar mel em seu rosto, na performance de 1965: E por que uma colmeia de abelha não poderia ser um artefato, uma vez que é decorrente da aplicação de uma força externa sobre um material bruto? Uma visão padronizada dessa distinção responderia que o que torna o objeto produzido um artefato é a possibilidade de projeção humana (ou seja, de idealização) antes de sua execução. Essa separação “metafísica” entre mente e natureza supõe que a forma dos objetos tem sua origem na mente humana, como “soluções preconcebidas e intelectuais para problemas particulares de design” (ibid., p. 340). Encontramos na constatação do seguinte problema por Ingold a chave para sua relação com Beuys: “Se o fazer significa a imposição de uma forma conceitual na matéria inerte, então a superfície do artefato vem representar muito mais que uma interface entre substância sólida e o meio gasoso; ela se torna a própria superfície do mundo material da natureza ao confrontar a mente humana criativa.” (ibid.)

Para Ingold e Beuys, o fazer está vinculado mais a um processo de diálogo e coexistência com o material do que à imposição de formas externas sobre ele. Se vemos demonstrado esse interesse nos materiais em constante transformação de movimento e calor em relação aos outros corpos e ao espaço, encontramos em seus desenhos e diagramas outros eixos de representação e visualização dessas questões. Porém, para chegarmos aos desenhos, voltemos antes à argumentação de Ingold sobre o fazimento como um modo de tecelagem para ver uma forma específica que demonstra esse diálogo entre forma imposta e crescimento orgânico: a espiral.

 

3. A forma espiralada e a natureza

 

O mundo de nossa experiência está, de fato, continuamente e eternamente se construindo ao redor de nós enquanto tecemos. Se há uma superfície, é como a superfície de um cesto: não tem “dentro” ou “fora”. A mente não está acima, nem a natureza abaixo; ao contrário, se nós nos perguntarmos onde a mente está, ela estará na tecelagem da própria superfície.

Tim Ingold

 

O fazimento como um processo de diálogo entre a aplicação de forças internas e a força constituinte da própria forma do artefato é exemplificado por Ingold através da forma do cesto. Construído a partir do entrelaçamento das fibras em um processo de tecelagem, “a atual e concreta forma do cesto não parte da ideia. Ela surge através do gradual desenrolar do campo de forças armado através do engajamento sensitivo e ativo do praticante e do material” (INGOLD, 2001, p. 342). Como já citado, o exemplo vem demonstrar a inversão proposta por Ingold entre a ação de fazer e tecer: em vez de pensarmos a tecelagem como um dos modos de fazer, o autor propõe pensar o tecer como um modo de fazimento, processo de constante embate de forças que cria um campo que “não é nem interno ao material nem interno ao praticante (por isso externo à matéria); ao contrário, ele atravessa a superfície emergente entre eles” (ibid.).

É central para a argumentação do autor a forma espiral que se dá no processo de entrecruzamento das fibras. Contrapondo um desenho da forma do cesto feito pelo antropólogo Franz Boas com uma imagem da concha de um molusco feita pelo biólogo D’Arcy Wentworth Thompson, Ingold demonstra como em ambos os casos “a forma aparenta emergir com uma certa inevitabilidade lógica do próprio processo, de enrolamento no primeiro caso [o cesto] e sedimentação no segundo [a concha]” (ibid., p. 343). Essa recorrência da forma tanto na natureza quanto no artefato encontra-se também em Beuys, porém a partir da forma das plantas, como representação gráfica de processos naturais como percebidos pelo artista.

Em um estudo minucioso sobre o processo de formação das teorias que movem a produção de Beuys, Volker Harlan encontra diversas aparições das espirais. Elas aparecem primeiramente em anotações e esboços nas margens dos livros de Rudolf Steiner, grande influência teórica para o artista, que o leu aos 26 anos, em 1947, antes da produção das obras analisadas neste artigo. Nessas anotações, a espiral surge tanto como uma forma circular que volteia ao redor do seu eixo quanto como espirais ascendentes e descendentes, que se unem numa formação gráfica que remete a uma flor (figuras 1 e 2).

 

Figuras. 1 e 2: Aparecimentos da forma espiralada nos desenhos de Joseph Beuys

 

Ao comparar com desenhos posteriores do artista, datados de 1970, Harlan nota a semelhança formal entre o esquema morfológico de uma planta e as formas espiraladas que o artista desenha. Como analisa o estudioso

 

Também aí se reconhece que a intenção do artista é representar a formação do tipo planta; quando a planta floresce, os cotilédones caíram, secos, há muito tempo. Girando em forma de espiral e balançando levemente, sobe pelo meio do desenho uma linha que se expande e, em seguida, contrai-se numa pequena estrutura, antes de continuar a subir e de partir, em linhas circulares, rumo ao centro (HARLAN, 2010, p. 33).

 

Essas espirais, que geralmente aparecem em trios, partem dos estudos do artista sobre a estrutura tripartida das folhas [6], mas vão gradualmente se estendendo à sua compreensão do organismo social. Curiosamente, em um dos diagramas feitos pelo artista (figura 3), a espiral aparece como parte central desse trio, entrecruzamento entre os polos da forma e do caos (sempre representados com um triângulo e um quadrado, respectivamente). Estaria aqui um caminho de aproximação com Ingold, ao propor a forma espiralada como amálgama do embate entre forma idealizada e inexatidão formal do processo de fazimento?

 

Figura 3: Diagrama de Joseph Beuys

 

Simbolicamente, as estruturas circulares se traduzem nas obras de Beuys como o constante movimento das matérias usadas pelo artista em sua obra, que se dá pela interface entre “objeto (organismo ou artefato)” e “ambiente”. Assim, homem, gordura, planta fazem parte de um mesmo ambiente no qual “as propriedades dos materiais são diretamente implicadas no processo de geração da forma” (INGOLD, 2001, p. 345).

Porém, além do simbolismo, a estrutura cíclica e espiralada nos remete às esculturas citadas na primeira parte do artigo, pois a forma espiral compreende, para Beuys, principalmente a movimentação inerente a todo organismo em funcionamento, nos reportando novamente a Ingold, para o qual “inverter o fazimento e a tecelagem é também inverter ideia e movimento, ver o movimento como verdadeiro gerador do objeto e não como mero revelador de um objeto que já está presente, em uma forma ideal, conceitual ou virtual” (ibid.). Essa movimentação opera tanto nos materiais – como já vimos – quanto na própria atitude do artista em relação à sua obra: ao propor para a documenta de Kassel o trabalho 7000 Carvalhos, no qual plantava sete mil árvores pela cidade, colocando, ao lado de cada uma, pedras de basalto, Beuys demonstra profunda compreensão de que “o artista se envolve no mesmo sistema do material com o qual trabalha, assim sua atividade não transforma o sistema mas é – assim como o crescimento das plantas e animais – parte e parcela da própria transformação do sistema” (ibid.). Sem crer em um espaço para a criação de uma obra que parta de sua individualidade, o artista apenas se movimenta pelo espaço urbano e planta árvores. Aqui a “regularidade da forma e repetição rítmica do mesmo movimento” (BOAS apud INGOLD, 2001, p. 345), vista por Ingold como parte integrante do movimento autopoético de tecelagem, aparece traduzido como uma grande ação artística e urbanística.

 

4. Considerações finais: Para um só futuro

Para concluir, citemos a expressão usada por David Adams em seu artigo para definir o artista: um ecologista radical. Vimos que Beuys não desenvolve sua arte apenas como representação indireta de conceitos ou de teorias sobre o papel da arte para a transformação de um organismo social, mas sim como uma apresentação direta desses conceitos, com a qual “a criação artística pode diretamente transmitir as atitudes existenciais de um entendimento mais profundo das relações naturais e ecológicas” (ADAMS, 1992, p. 26).

Assim, ao falar que todo homem é um artista, Beuys deixa pressuposto que o pensamento e a criatividade são motores para a escultura. Essa movimentação desvia-se de um olhar para a produção artística como algo já morto – cadáver que só pode ser contemplado de forma desinteressada [7] –, e recoloca-a como algo da ordem mágica, mística e religiosa. Seu trabalho, como aponta Adams, solicita “um passo adicional, levando a novos conceitos de arte e ciência, baseados na aquisição de um modo de pensar intuitivamente vívido e consciente” (ibid., p. 28), unindo pensamento racional e intuitivo.

É com integração parecida que Ingold traça sua argumentação: para que seja possível uma mudança de atitude em relação ao mundo, é preciso deixar de olhar para a natureza como um conceito metafísico percebido culturalmente como algo separado de nós e passar a pensar sobre um ambiente, no qual estamos construindo ao passo que somos construídos [8]. Isso inclui um retorno a outros tipos de saberes renegados pela ciência, o que o autor nomeia como intuição ou ecologia sentiente, uma sabedoria “informal” ou “não autorizada”, que agrega ao distanciamento científico uma sensitividade e capacidade de resposta que vem da integração ao próprio meio (INGOLD, 2001, p. 25). E se a arte, para o autor, “é a forma que é tomada pela nossa percepção do mundo, guiada por orientações específicas, disposições e sensibilidades que nós adquirimos ao termos coisas apontadas ou mostradas para nós no curso da nossa educação sensória” (ibid.), vemos em Beuys alguma possibilidade de se pensar a arte fora da chave dicotômica entre natureza e cultura, como uma arte que olha para o mundo como ambiente, e que vê em si a possibilidade de “desmantelar os repressivos efeitos do antigo organismo social que continua a vigorar […] e deve ser desfeito para a construção do organismo social como um trabalho de arte” (BEUYS apud ROSENTHAL, 2011, p. 113, grifo nosso).

 

Figura 4: Detalhe de diagrama de Joseph Beuys

 

Como vemos no desenho acima, a relação entre homem e planta é pensada de forma direta por Joseph Beuys, em uma clara metáfora acerca da forma e dos processos biológicos de formação e da estrutura corporal desses organismos. Não há distinção entre um homem, um coiote, um coelho ou uma planta, da mesma forma que a obra de arte é entendida como “tanto algo que resulta da ação do homem quanto uma obra da natureza” (HARLAN, 2010, p. 35). Talvez seja por isso que Beuys resolva se reportar a uma lebre morta para falar de arte, mas em seus sussurros inaudíveis certamente fala para nós algo sobre vida – ou ao menos um tipo de vida, já perdida ou ao menos já muito imaginada – integrada ao meio no qual se insere, ou seja, “uma acepção na qual a interioridade do homem estava também fora do ambiente, na qual a consciência humana e o mundo externo são interdependentes” (ADAMS, 1992, p. 28). Como a massa da gordura que vai lentamente se transformando e prova que sua substância está em relação direta com seu ambiente, também o homem e sua criatividade podem realizar o mesmo movimento.

 

NOTAS

[1] As traduções para o português contidas no artigo foram realizadas por Renan Marcondes.

[2] Como analisaremos as obras sem explicitar a relação entre sua forma e o percurso do artista, que é essencial para a compreensão aprofundada das transformações e principalmente para um aumento de proposições e intervenções de caráter mais performativo e intervencionista na fase final da produção, é importante citar brevemente sua passagem pelo grupo Fluxus (movimento vanguardista liderado por Nam June Paik e George Maciunas) durante os anos de 1960, e a posterior inclusão em diversos projetos sociais como a Organização pela democracia direta via plebiscito, a Organização para não-votantes e, principalmente, a fundação da Universidade Livre Internacional, em 1974, que coincide com a reformulação da teoria de escultura social a partir de seus estudos sobre a estrutura das plantas (vista na segunda parte do artigo) em comparação com a sociedade, ou, nas palavras do artista: o organismo social. A partir dessa vivência, cada vez mais as aulas e ações públicas tomam grande parte de sua produção, e o homem passa a ser considerado como um dos materiais essenciais a serem trabalhados e esculpidos. A relação entre o homem e seu entorno, agora não mais evidenciada apenas pelas propriedades da matéria em relação ao corpo – como nos trabalhos anteriores – opera também via discursos, performances e ações públicas.

[3] “Você não é alemão, você é tártaro”.

[4] Cf. KRAUSS, Rosalind. “O duplo negativo: uma nova sintaxe para a escultura”. In: Caminhos da escultura moderna.

[5] Vemos em Borer que “O be-a-bá dessa linguagem [de Beuys] implica reconhecer que o feltro, por exemplo – cujas fibras de origem animal entrelaçadas deixam circular o ar em seus espaços –, é um excelente isolador de calor, ou que a cera de abelha, um bom isolante, é também um mau condutor de calor, uma vez que o absorve muito lentamente, ou reconhecer que o cobre, um isolante medíocre, é um excelente condutor de calor ou de eletricidade” (BORER, 2001, p. 15).

[6] Beuys toma como base a aplicação feita por Steiner dos três princípios alquímicos (enxofre, mercúrio e sal) para a formação da estrutura das plantas: ao processo de transformação e metamorfose das plantas, Steiner denomina mercúrio; à formação de raízes, sal; ao processo de florescimento, enxofre (HARLAN, 2010, p. 30).

[7] Diversos teóricos da arte contemporânea, como Boris Groys e Jacques Rancière, situam a produção realizada desde o romantismo como um olhar desfuncionalizado para os objetos do mundo, tomando-os como mortos e não mais pertencentes ao mundo. Essa mudança no olhar do objeto artístico vem da necessidade dos revolucionários da Revolução Francesa de lidar com os objetos provenientes dos palácios tomados da monarquia. Conforme Boris Groys: “A Revolução Francesa transformou o design do Antigo Regime no que hoje chamamos de arte, ou seja, os objetos não de uso, mas de pura contemplação. Este ato violento, revolucionário, de estetização do Antigo Regime criou a arte como nós a conhecemos hoje. Antes da Revolução Francesa, não havia nenhuma arte – apenas design. Após a Revolução Francesa, a arte surgiu, como a morte de design” (GROYS, 2014, p. 6). Para mais, ver o artigo “On art activism”, de Boris Groys e a entrevista de Jacques Rancière a Laurent Jeanpierre e Dork Zabunyan no livro La méthode de l’égalité.

[8] […] O meu ambiente é o mundo tal como ele existe e assume um significado em relação a mim, e, nesse sentido, sua existência e desenvolvimento se altera comigo e ao meu redor. Em segundo lugar, o ambiente não é completo. Se os ambientes são forjados através das atividades de seres vivos, então, desde que a vida continua, eles estão continuamente em construção. Assim também, é claro, são os próprios organismos (INGOLD, 2000, p. 20).

 

BIBLIOGRAFIA

ADAMS, David. “Joseph Beuys: pioneer of a radical ecology”. Art Journal. V. 51, n. 2, p. 26-34, 1992.

BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

GANDY, Matthew. “Contradictory modernities: conceptions of nature in the art of Joseph Beuys and Gerhard Richter”. Annals of the association of American Geographers. V. 87, n. 4, p. 636-639, 1997.

HARLAN, Volker. “A planta como arquétipo da teoria da plasticidade e a floresta como arquétipo da escultura social”. In: BEUYS, Joseph. Joseph Beuys: a revolução somos nós. São Paulo: Edições SESC SP, 2010.

INGOLD, Tim. Being alive: essays on movement, knowledge and description. New York: Routledge, 2011.

_______ The perception of environment: essays on livelihood, dwelling and skill. New York: Routledge, 2000.

KRAUSS, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ROSENTHAL, Dália. O elemento material na obra de Joseph Beuys. Dissertação de mestrado. Campinas, SP: [s.n.], 2002.

_______Joseph Beuys: o elemento material como agente social. ARS USP. V. 9, n. 18, p. 110-133, 2011.

 

 

PARA CITAR ESTE ARTIGO

MARCONDES, Renan. “Matéria em Constante Movimento:

Joseph Beuys e Tim Ingold”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

Texto completo: PDF