Breve Apontamento sobre Hamlet-Ofélia em “Hamlet-Máquina”

 

Não teremos chegado a nós enquanto Shakespeare escrever as nossas peças.

Heiner Müller

 

Essa frase sintetiza o argumento do texto Hamlet-máquina, dramaturgia escrita em 1977 pelo dramaturgo e diretor alemão Heiner Müller (1929-1995), e montada pela primeira vez em 1979, em Paris [1]. Trata-se de uma releitura intertextual do texto paradigmático de Shakespeare (que não se dá a partir de, mas valendo-se do próprio material textual), no qual Müller, a partir da transformação textual, desloca as questões contidas no texto de 1600 para um cenário contemporâneo notadamente pessimista e esquizofrênico (valendo-se da apropriação do termo psicanalítico feita por Jameson para caracterizar a pós-modernidade [2]). O texto é um ponto paradigmático no projeto teatral de Müller, cujos temas essenciais são “a revisão do processo histórico alemão, o questionamento do significado e da prática da revolução, a discussão incisiva sobre a construção do socialismo” (PEIXOTO, 1987, p. XV). Uma vez que tanto o conteúdo quanto a forma textual são inerentes à constituição da obra de Müller, nossa metodologia de análise irá se valer do curto tamanho do texto (apesar de sua densidade) para observar como forma e conteúdo refletem sobre gênero, representação e políticas totalitárias, questões determinantes para o século XX.

Hamlet, não mais um príncipe, aqui se reduz à sua dimensão humana: vira “máquina”, palavra que nos leva a diversos lugares, entre eles a ideia do corpo como máquina de cortes (proposta de Deleuze e Guattari), do conceito de máquina que permeava a produção de Duchamp. Mas, principalmente, devemos nos lembrar de Andy Warhol e sua célebre frase “I want to be a machine” [Quero ser uma máquina], pois foi ela que inspirou diretamente o título da obra e para a qual retornaremos no decorrer deste texto.

Assim como o texto original, Hamlet-máquina apresenta uma divisão em cinco partes [3] e pode-se dizer, em uma primeira análise, que seus personagens são basicamente: Hamlet, Ofélia e o ator que interpreta Hamlet (além de um possível coro). Não se pode, portanto, falar em dramatis personae no sentido clássico da expressão e representação do conflito via diálogo: “o conflito é revivido através da memória de Hamlet e de uma Ofélia lúcida, que toma para si o destino secular da mulher” (RÖLH, 1997, p. 58). As cinco cenas são compostas basicamente pela reorganização de material textual já existente, seja ele do próprio autor, de Shakespeare ou de diversos outros pré-textos que podemos constatar na obra (que vão de T. S. Eliot a Rosa de Luxemburgo), realizando um processo de ingestão e regurgitação da história. A primeira cena apresenta compactada não somente toda a história do príncipe, mas também todas as referências amalgamadas no texto, explicitadas como memória de um Hamlet que se encontra em um cenário social completamente diverso. Na segunda cena, Ofélia (que também é Hamlet e o coro) se apresenta como uma figura que sintetiza a vivência feminina no universo da política. Já na terceira cena predominam as rubricas, que indicam uma espécie de pantomima grotesca no qual se encontram Hamlet e Ofélia. Essa cena – equivalente ao clímax dramático de uma estrutura clássica de dramaturgia – coloca em foco uma relação metadrámatica do teatro pensando sua relação entre texto e efeito, entre teatro e responsabilidade, como vemos na rubrica a seguir:

 

(Universidade dos mortos. Sussurros e murmúrios. Das suas tumbas [cátedras], os filósofos mortos atiram os seus livros sobre Hamlet. Galeria [balé] das mulheres mortas. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. Etc. Hamlet contempla-as com a postura de um visitante de museu [teatro]. As mulheres mortas rasgam-lhe as roupas do corpo. De um caixão ereto com a epígrafe HAMLET 1 saem Cláudio e, vestida e caracterizada de puta, Ofélia. Strip-tease de Ofélia) (MULLER, 1987, p. 27)

 

Como vemos no texto acima, Hamlet observa passivamente e de forma distanciada essa representação que acaba por atacá-lo e despi-lo, na forma de uma obra de arte que se revela como propositora ativa e violenta em relação ao seu público. A cena quatro traz a crise existencial central de Hamlet transferida para a crise do intelectual e artista inserido na história. O texto se inicia com: “não sou mais Hamlet. Não represento mais nenhum papel. […] Meu drama não se realiza mais” (ibid, p. 28), e é seguido por ações como o rasgar de uma fotografia do autor do espetáculo, indicando um desfazimento da imagem do autor própria do período em que hoje vivemos. Assim, ao invés de contar sua história, o intérprete passa a refletir sobre o conflito do artista que busca um sentido para sua arte num palco onde a história se acha desfeita. Ao fim do seu monólogo, veste a armadura do pai de Hamlet e destrói as estátuas de Marx, Lênin e Mao [4]. Se Hamlet/Intérprete de Hamlet resolve sua crise pela ação violenta e revolucionária direta, Ofélia se encontra na última cena propondo outra alternativa ao futuro. Em uma cadeira de rodas, completamente amarrada (à história de Hamlet, ao sistema etc.), a personagem se encontra totalmente manietada. Porém, de sua boca sai a voz de Electra, que se dirige para “as metrópoles do mundo”. Em seu discurso, permanece em aberto e em constante suspensão uma ameaça da revolução, oposta ao gesto de Hamlet/Intérprete de Hamlet.

Para pensar a relação entre o que é proposto como forma-conteúdo da obra e o modo como a civilização se encontrava no século XX (a ainda se encontra em alguns sentidos), precisamos voltar à importância da figura de Hamlet na Alemanha no final do século XIX e início do XX, que o transformou em uma espécie de imagem-síntese de um “vingador resoluto que ultrapassa seu niilismo em nome de ideais mais altos e eventualmente abraça suas obrigações patrióticas e masculinas de matar e morrer por seu Pai/terra” (ROMANSKA, 2007, p. 62). Ao passo que a figura de Hamlet sintetiza esse ideal alemão, que mais tarde se traduziria no nazismo, a figura antagônica de Ofélia se reforçava no imaginário alemão como um Outro soterrado, melancólico, ingênuo e autodestrutivo. Já em Hamlet-máquina, Ofélia reaparece como alter ego feminino de Hamlet, espécie de “duplo monstruoso”. A crise da masculinidade de Hamlet no texto de Müller (seu Hamlet diz, na cena 3: “Eu quero ser uma mulher”) reporta não somente à crise de identidade nacional ocorrida na Alemanha com o fim da guerra e a divisão entre leste e oeste, mas também a um retorno da figura passiva e feminina como a vingadora, que é sujeito ativo e não objeto passivo da história. O fantasma do cadáver passivo e afogado da Ofélia de Shakespeare retorna como figura assombrosa para Hamlet, uma “máquina mítico-explosiva das guerras de gênero” (ibid., p. 65), que sintetiza a figura da feminista radical que se coloca contra um homem-máquina.

Aqui podemos voltar ao título e à sua relação direta com Andy Warhol para nos lembrarmos do episódio no qual Valerie Solanas, atriz e feminista radical, tentou matar o artista a tiros por detectar nele a imagem símbolo de um artista homem e dominador que objetifica ao máximo qualquer grau de humanidade na produção artística. Hamlet-máquina é publicado em 1977, mesmo ano da publicação de S.C.U.M. Manifesto, obra de Valerie Solanas na qual lemos: “Chamar um homem de animal é bajulá-lo […] ele é uma máquina” (SOLANAS apud WEBER, 2007, p. 18). Importante também lembrar que o texto é escrito logo após uma viagem de Müller para a América, da qual retorna falando que uma montagem norte-americana do texto original deveria se focar em Ofélia, pois se direcionaria mais ao contexto social dos Estados Unidos no período. (WEBER, 2007, p. 18).

Voltando ao texto, é importante detectar que essa figura feminina e revolucionária termina o texto amarrada dos pés à cabeça por dois homens de branco (em uma imagem que remete diretamente à um contexto hospitalar), sob um mar profundo (do qual ela havia emergido no início do texto), sugerindo que sua rebelião foi interrompida, ou mesmo que seu discurso nunca foi são. Nas palavras do autor “[…] a revolução, representada por Ofélia/Electra, é finalmente silenciada” (MÜLLER apud ROMANSKA, 2007, p. 73). Porém, não é somente Ofélia que falha; Hamlet, por sua vez, rasteja para dentro da armadura do seu pai/pátria no fim de seu monólogo. O texto acaba então denunciando um fracasso duplo: a do homem pensador marxista (artista/filósofo), que se envolveu politicamente, e a da mulher-símbolo da revolução de gênero, que acaba encurralada no paradoxo ético de seu próprio gênero.

Poderíamos então detectar, em Hamlet-máquina, um pessimismo ou uma descrença nas tentativas de transformação social. Porém, mesmo com Ofélia amarrada e Hamlet preso na armadura de seu Pai-pátria, há a voz de Electra, que ressoa como a voz de Heiner Müller para um homem contemporâneo completamente destituído de noção histórica. Esse esquecimento histórico, como Müller nos lembra, é “antirrevolucionário” (MÜLLER apud WEBER, 2007, p. 22), e é ao homem seu contemporâneo que Müller faz questão de, nas figuras de Ofélia e de Hamlet e nos fracassos que ambos apresentam, lembrar a crise que foi o século XX enquanto sintoma de um projeto moderno de humanidade. No meio do “coração das trevas”, Müller-Electra nos grita: “Abaixo a felicidade da submissão” (MÜLLER, 1987, p. 32), e nos recorda que há um campo tenso operado na obra de arte que deixa em aberto as imagens de um futuro possível.

 

 

NOTAS

[1] A peça só foi encenada pelo autor em 1990, após a queda do muro de Berlim.

[2] Cf. JAMESON, Fredric. “Pós-Modernidade e Sociedade de Consumo”. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, número 12, junho de 1985.

[3] Enquanto no texto de Shakespeare há cinco atos com várias cenas, o texto de Müller apresenta cinco cenas de caráter fortemente tendo como base monólogos.

[4] O que inclusive reage às concepções históricas de Hamlet, como a de Brecht, que o entende como um “idealista que se torna um cínico”, ou a de Nietzsche, de uma “recusa à ação pelo excesso de entendimento” (KALB, 2001, p. 109).

 

BIBLIOGRAFIA

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: Ed. 34, 2010

JAMESON, Fredric. “Pós-Modernidade e Sociedade de Consumo”. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, número 12, junho de 1985.

KALB, Jonathan. The theater of Heiner Muller. Estados Unidos: Limelight Editions, 2001.

MÜLLER, Heiner. Quatro textos para teatro. São Paulo: Hucitec, 1987.

PEIXOTO, Fernando. “Quando a crítica se transforma em grito”. In: MÜLLER, Heiner. Quatro textos para teatro. São Paulo: Hucitec, 1987.

RÖLH, Ruth. O teatro de Heiner Müller. São Paulo: Perspectiva, 1997.

ROMANSKA, Magda. “Opheliamachine: Gender, ethics and representation in Heiner Muller’s Hamletmachine”. In: FRIEDMAN, Dan. The Cultural Politics of Heiner Muller. Reino Unido: Cambridge, 2007.

WEBER, Carl. “From determination to detachment – Heiner Muller’s Assessment of Culture and Politics in a lifetime of profound historical change”. In: FRIEDMAN, Dan. The Cultural Politics of Heiner Muller. Reino Unido: Cambridge, 2007.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MARCONDES, Renan. “Breve Apontamento sobre Hamlet-Ofélia em ‘Hamlet-Máquina’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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