A Permanência da Forma das Setas: Nove Tentativas a partir de “Deslocamentos”, de Marta Soares

 

I.

Como falar sobre esse embate furioso entre a visão e o visível?

 

Circundo a cabeça pela sala na qual escrevo esse texto e meus olhos percorrem toda a extensão visível do quarto no qual me encontro. Os ângulos e linhas retas das paredes e armários vão se deslocando sutilmente conforme minha visão transita de um lado para outro. Não há mais surpresa nenhuma nas formas, eu já as reconheço como tal, já as nomeio faz tempo com nomes convencionais que me possibilitam falar sobre essas formas mesmo sem a presença delas. Não diferenciarei nas linhas a seguir definições e diferenciações entre forma, imagem, modelo etc. Nesse momento, não me interessa discutir as especificidades de nomeação do que nos rodeia, mas sim pensar em como o processo de apreender algo com o olhar e entendê-lo como externo ao nosso corpo compreende um processo de dominação, que talvez seja próprio da nossa cognição humana.

(Ou talvez seja o único meio de sobrevivência disso que nos circunda, seja sua fonte de energia…)

 

II.

 

 

Até que ponto podemos tensionar uma forma?

 

III.

∆s = s – s0

Na física, o deslocamento de um corpo é medido a partir da relação estabelecida de distância e proximidade que ele exerce sobre um determinado referencial. A variação da posição de um corpo, nesse intervalo de tempo dado, gera uma grandeza vetorial, definida geralmente como Vetor Deslocamento (d), que se configura como uma seta, que se direciona de um ponto a outro.

 

 

(residem aqui setas que se configuram pela dureza, estrutura e espacialidade abstrata. Um corpo que se relaciona com elas opera pela via do domínio: compreendendo-o, enquadrando-o, equalizando o que se idealiza dessa relação e obtendo delas o que necessita. Essas setas resultam).

Cito Rosalind Krauss: Isso porque temos uma tendência a pensar que o ato de descobrir como é determinada coisa significa conferir a ela uma forma, propor para ela um modelo ou imagem capaz de organizar o que, visto superficialmente, parece um arranjo incoerente de fenômenos [1].

Vamos nos propor um exercício: deformemos essa linha reta, presente nas paredes erguidas, nas casas habitadas, nas equações matemáticas, no teclado no qual digito, nas linhas-guias desse texto. Até que ponto podemos tensionar uma forma?

 

IV.

 

 

Pausa para a incessante pergunta sobre a dominação dos corpos. Há metodologias possíveis para a reversibilidade desse processo? Passando lentamente pelos portões da casa modernista, novamente se apodera do meu corpo uma vaga e recorrente expectativa de se deparar com a rara sensação de perder o controle dos corpos, de encontrar possibilidades de deformar as equações decoradas por anos. Penso que tratar de arte pode ser variar sobre esse mesmo tema: destituir dos corpos, nem que seja um pouco, lógicas de dominação, estabelecer territórios livres onde não seja mais possível medir o deslocamento. Não sendo mais possível a medição, resta-nos senti-lo.

Uma vez dentro da casa, sei que devo pensar sobre determinadas coisas. Porém, além do caráter escultórico, além do tempo distendido, além da problemática das infinitas nomeações de linguagem, além de todas as referências e justificativas sobre o trabalho que leio no programa que me é entregue, penso em uma coisa ao olhar para aqueles corpos que vagueiam por imagens sem destino: há um treinamento quase militar do meu olhar em impor formas. Nos exercícios da Gestalt – que, lembremos, define seus princípios como leis –, o olho promove a percepção mental de agrupamentos, distanciamentos, relações, estruturas, o que leva seus pensadores ao conceito de transponibilidade, no qual, independente do material que constitui o objeto, é sua forma que se sobressai.

Perfeito: lidemos agora com formas que surgem e se perdem a todo momento.

 

V.

(Não impor não impor não impor não impor não impor não impor não impor não impor não importar)

Algo se forma. Interrompo o processo. Perdi.

Nota mental: uma vez que se reconhece a forma, ela se impregna. A forma é parasita.

 

 

VI.

 

Cito Gonçalo Tavares: Se olharmos, de fato, atentamente para uma casa, para a sua constituição, poderemos quase ver o corpo para o qual foi construída. Como se em vez de estarmos a olhar para uma casa estivéssemos a olhar para um mapa da anatomia humana. As suas dependências: a cozinha (alimentação), a casa de banho, o quarto com a cama que o sono exige etc. etc. A casa é o retrato das nossas dependências físicas [2].

 

Subo as escadas da casa e vejo os inúmeros círculos de vidro na parede que refletem o Sol. Vou ao jardim e vejo o círculo de observadores que se forma ao redor dos homens que moldam dois corpos femininos. São momentos em que saio do jogo incessante dessas formas que fogem do meu olhar e começo a pensar sobre dominadores e dominados.

Numa proposta cuja forma corporal nos possibilita uma fuga desse controle imagético do corpo, há um problema em ocupar uma casa da forma como essa ocupação foi realizada? Talvez nenhum, porém paira o inevitável e obtuso peso que a própria forma da casa exerce sobre as próprias imagens, como se impusesse àqueles corpos (que performam ou observam) que sua forma também seja dissolvida de algum jeito, que ela também pereça.

Ao adentrarmos a casa modernista, só o nome do espaço já nos relembra uma certa utopia essencialista própria do período que a adjetiva. O que significa colocar aqueles corpos dentro daquele espaço? Seria o interesse colocar em embate a própria forma impositiva de uma casa sobre a subjetividade de quem a habita? Com a casa, além de uma ambientação que possibilita o trânsito de quem observa e concede um caráter afetivo às imagens propostas, seria possível um diálogo mais imbricado entre as formas corporais e a arquitetura da casa (polarizadas entre a impossibilidade da forma e sua estruturação máxima) do que em uma espécie de encaixe do corpo no espaço, que é o que vemos ocorrer. É curioso notar como, por exemplo, os corpos que habitam a casa possuem um grau de desenvolvimento maior (no que tange à coreografia, colocação espacial, presença cênica etc.) e, em seu entorno, existem propostas mais rascunhadas, como se houvesse uma ênfase poética nesse espaço interno e uma simples necessidade de ocupar a região ao seu redor, para que não haja um vazio. Uma vez que o espaço externo não contém, estrutura e comporta os corpos como o espaço interno arquitetônico moderno, o que são esses corpos rascunhados ao redor da casa?

É possível observar certo grau de domínio nessa relação com o espaço, que pode ser vista repetida na relação que os dois homens na casa têm com uma dupla. Nesses exemplos é possível ver linhas retas, setas, uma objetividade na ação e na relação que – felizmente – não consegue se formar no resto do trabalho. Nesses casos, é possível que haja um elemento ativo e um passivo, que um exerça sua vontade sobre o outro. O que resta saber é como isso está dialogando com tantas outras imagens que compõem o trabalho e parecem apontar para outros caminhos, mais horizontais.

Proporia nesse momento que, ao falar sobre dominadores e dominados, enquanto na relação com a casa há uma (boa) questão a ser pensada, na imagem com os dois homens que mobilizam os corpos femininos há um problema. Já é, de antemão, uma imagem que pode ser lida por um viés de dominação de gênero, objetificação das relações afetivas etc., mas na verdade isso não importa muito. O que parece estranho é a própria possibilidade de se ler e se crer entendendo um “algo a dizer” da imagem, pois lá ocorre um processo de formação de sentido, muito específica e muito delicada, que fornece possibilidades de leitura, ou seja, comunica algo. Isso por si só poderia ser uma escolha estética, mas, em relação ao trabalho como um todo, vai de contramão a esse gesto de resistência ao domínio operado pelas outras imagens.

 

Lembro-me da palestra clássica de Deleuze sobre cinema e a cito: a obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo [3].

 

VII.

 

Cito Lepecki: e aqui voltamos à concretude não metafórica do que a dança pode fazer politicamente: destrambelhar o sensório, rearticular o corpo, suas velocidades e afetos, ocupar o espaço proibido, dançar na contramão num chão rachado, difícil. É assim que ela cumpre a promessa coreo-política a que se propõe, quando ativada para a verdadeira ação [4].

 

A pergunta que nos fica é: que imagens são possíveis captar, se é que captamos algo nesse trânsito infinito de imagens? Em outros termos: algo resiste? Dessas massas que lembram blocos de argila em processo de criação, pouco se pode dizer. Outros índices de permanência e repetição nos corpos não são claros, e por vezes, quando detectados, parecem quase risíveis: seria proposital os três rostos das imagens dentro da casa possuírem cabelos longos e loiros e as duas únicas figuras masculinas serem muito parecidas fisicamente, além de usarem a mesma roupa? Provavelmente não. Mas essas repetições, reforçadas com o fato de percorrermos uma casa inteira e vermos sempre essas mesmas tentativas de constituir outras formas corporais parece uma pulsão para se chegar não somente ao corpo, mas a um indivíduo, que se reconheceria como único. Somos, a cada nova forma, relembrados de que tentamos constituir uma forma reificada e impossível de nós e do outro, e que esse exercício é também uma forma sutil e silenciosa de dominação.

Isso que denominamos corpo é apenas uma forma?

 

VIII.

 

Um microcosmo. O universo numa reta que termina no seu começo. Ampliar as possibilidades da forma e esgarçar suas fronteiras para apenas se ver observando, nomeando e delimitando as arestas dessa outra forma. Pensamos dominá-la, mas a forma se alimenta de nós.

 

 

 

 

 

(a forma é parasita)

 

IX.

 

Não é preciso escrever mais nada, por enquanto. Fracassamos. Mas há movimento no fracasso.

 

 

NOTAS

[1] KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 297.

[2] TAVARES, Gonçalo. Atlas do corpo e da imaginação. Portugal: Editora Caminho, 2013, p. 63.

[3] DELEUZE, Gilles. O que é o ato de criação. Palestra de 1987. Edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999. Disponível em: <http://artes.ucp.pt/artesdigitais/?p=578>. Acesso em: 07 mai 2014 – 3h32.

[4] LEPECKI, André. “Coreo-política e coreo-polícia”. Ilha R. Antr., Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC,  Florianópolis, SC, Brasil, p. 13

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MARCONDES, Renan. “A Permanência da Forma das Setas: Nove Tentativas a partir de ‘Deslocamentos’, de Marta Soares”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

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