“Depilação Masculina”: Série de Registros Entre o Autorretrato e a Performance [1]

 

A obra cria o criador.

François Soulages

 

Na arte contemporânea, o corpo tem estado em evidência nas produções performáticas de maneira ressignificada e redimensionada pela exaustiva exploração de seu potencial estético e biológico, associado ao uso das tecnologias: o corpo pós-moderno, fragmentado, esteticamente modificado, virtual, está presente nas expressões da body art, que, segundo Lucia Santaella, é uma arte

 

primariamente pessoal e privada. Seu conteúdo é autobiográfico e o corpo é usado como o próprio corpo de uma pessoa particular e não como uma entidade abstrata ou desempenhando um papel. O conteúdo dessas obras coincide com o ser físico do artista que é, ao mesmo tempo, sujeito e meio da expressão estética. Os artistas, eles mesmos, são objetos de arte. (SANTAELLA, 2003, p. 261)

 

Desde as vanguardas históricas, início do século XX, passando pela action painting (décadas de 1940 e 1950), pelos happenings de Allan Kaprow e Wolf Vostell, entre outras expressões da década de 1960, pelas ações do grupo Fluxus até as performances da década de 1970, é notada a recorrência da imagem do corpo representado como tema e também apresentado como o próprio objeto de arte. A partir daí, a participação do outro passa a ser convocada, sua presença e sentidos valorizados, conduzindo à i(n)teratividade característica da arte tecnológica.

Um exemplo de artista contemporânea que explorou as relações entre corpo, fotografia e performance é o da cubana Ana Mendieta. A performer desenvolveu sua produção entre as décadas de 1970 e 1980, e sua poética foi construída a partir dos seguintes elementos: território, corpo e ritual (dos cultos pré-colombianos às atuais cerimônias sincréticas da santeria, religião afro-cubana caracterizada pelo sincretismo de elementos do cristianismo com cultos nigerianos). Arno Orzessek (1997, p. 72-74) assim descreveu algumas ações da artista Ana Mendieta exibidas numa retrospectiva em uma sala de arte em Düsseldorf, Alemanha, em 1996:

 

Mendieta pressiona placas de vidro sobre seu rosto, seus seios e sua barriga, para assim evidenciar grotescas deformações e redescobrir a formosura do corpo como abuso estético e como lugar de violência. Com isso, ela reage a sua condição de mulher de origem hispânica entre homens que nela encontram motivo para continuar cultivando um fantasioso mito do latino ardente, e que a encaram como um ser maligno, dotado de agressivo erotismo.

 

As ações realizadas e fotografadas por Ana Mendieta, geralmente em ambientes naturais, sem a participação de uma audiência convidada ou acidental, se aproximam da produção do norte-americano Bruce Nauman. Nascido em 1941, o artista explorou os registros de suas ações e movimentos corporais quando apenas posicionava, por horas consecutivas, sua câmera em on, em seu próprio ateliê, para mais tarde divulgar esses mesmos registros como obras. Em contraposição ao valor atribuído a todo e qualquer registro realizado durante as apresentações de performances, Maria Beatriz de Medeiros declara (2005, p.135):

 

fotografias não podem ser jamais consideradas performances, por mais fortes e envolventes que sejam, serão sempre registros, recortes de ações retiradas de seus contextos, arrancadas de seus sons e cheiros, serão registros, fragmentos de instantes desterritorializados. O tempo, elemento estético imprescindível da performance, foi desintegrado.

 

A importância dada ao corpo na sociedade atual, em que as noções de sujeito e objeto, do eu e do outro são mais evidenciadas, remete à imagem de um corpo político e crítico. Na atualidade, tal corpo tem sido explorado como elemento estético, artístico, e até mesmo como instrumento bélico: o corpo arma, o homem bomba. Também é vivenciado como máquina, redimensionado pelo uso de próteses tecnológicas. Esse corpo atual, “transpassado por tecnologias”, é, paradoxalmente, limitado pela intolerância característica de um poder global e hegemônico. Ele expressa a sociedade contemporânea em sua complexidade e fragmentação, em que signos culturais, identitários, políticos coexistem sobre uma pele escamada e com grande potencial de transformação.

A série de registros intitulada Depilação Masculina (body art in progress), 2010, (Fig. 1 a 6), se aproxima de algumas expressões da linguagem artística da performance, e também da produção do artista carioca Marcos Chaves [fotografia 1/1 (díptico), 1997. Ver em: <http://www.marcoschaves.net/fotografias/1-1>], quanto à forma, porém, quando se trata do conteúdo, as distâncias são evidentes como, por exemplo, ao se constatar os brancos sobre a superfície de um corpo beirando a maturidade. Enquanto Marcos Chaves, através da linguagem fotográfica, registra seu torso depilado em forma de círculo, à altura do tórax, em negativo e positivo – o que faz lembrar o próprio processo de revelação na fotografia –, trato de explorar a depilação corporal como uma ação contínua, em processo, uma produção que se desdobra ora em autorretratos ora em performances frente ao outro (seja um fotógrafo ou o público em geral). Logo, o que resta de tudo isso também é o registro fotográfico em sua função de fazer “deter o tempo, tornar presente para sempre o passado, transformar um instante em eternidade, um mundo em imagem” (SOULAGES, 2010, p.209), já que os pelos crescem e caem a cada instante e a cada instante já não são os mesmos, já não sou o mesmo…

 

Figura 1. ZMário. Depilação Masculina: Bigode DM (Body art in progress), 2010

 

Figura 2. ZMário. Depilação Masculina: Tórax DM (Body art in progress), 2010

 

Figura 3. ZMário. Depilação Masculina: Costas DM, 2010-, (Body art in progress). Fotografia de Leandro Max

 

Figura 4. ZMário. Depilação Masculina: Barriga DM (Body art in progress), 2010

 

Figura 5. ZMário. Depilação Masculina: Joelhos DM (Body art in progress), 2011

 

Figura 6. ZMário. Depilação Masculina: Tórax DM, 2010. Performance. Praça Dois de Julho, Campo Grande, Salvador, BA, Brasil. Fotografia de João Cappello

 

Essa produção, em essência, trata do corpo do homem contemporâneo: limpo, asséptico, sem suor e sem pelos! Refiro-me também ao “metrossexual”, o dito “homem que se cuida”, que vai ao centro de estética e às clínicas para pedicure, manicure, máscara facial, massagem relaxante, implante capilar, maquiagem masculina, lipoaspiração e depilação masculina!

O homem deve ser belo!? Claro! Mas que corpo é este (da mulher e também do homem) excessivamente e artificialmente belo, plastificado, “bombado”, antitranspirante, limpíssimo, cheirosíssimo, depiladíssimo? Ainda assim é corpo sem seus humores e cheiros tão próprios (feromônios); sem as marcas indeléveis do tempo; sem gordurinhas localizadas?! Ainda assim é corpo com as mais diversas próteses e tantos outros meios de suplência anátomo-fisiológicas!?

 

Eu e meu corpo somos qualquer um e todo mundo, eu e meu corpo e nós e nós todos não servimos para vender nada, não somos nada de tudo aquilo que vemos na televisão, no cinema, nas revistas, nos cartazes publicitários. Estas imagens pululam, invadem, esbanjam saúde e imortalidade, estão por toda parte e tornam-se parte do que creio existir e que o espelho arranca, deixando a ferida exposta. Nós, nós somos reais. (GPCI, Site Oficial).

 

Gosto de ver as gotículas do suor sobre minha pele durante uma caminhada pelas ruas, durante as pedaladas na bicicleta. Gosto de meus pelos compridos, cumprindo o dever de crescer e aparecer (desconfio que seja peludo por dentro também). E por falar em corpos seminus, perfumadamente transpirantes em caminhadas, denuncio o estranhamento dos homens musculosos que, com seus tórax trabalhados e barrigas totalmente depilados, olhavam e “re-olhavam” meu “toraxzinho” e minha barriguinha (“sem” tanquinho), parcialmente depilados, desfilarem pela avenida à beira mar. Os homens e o artista devem ser belos!? (até mesmo no fim de semana, na orla da Baía de Todos os Santos!?).

Como destacado, na série Depilação Masculina existem dois elementos que se “(con)fundem”. São eles: sujeito e objeto / criador e obra / fotógrafo e motivo fotografado (no caso dos autorretratos). Já o público poderá ser aquele que presencia a ação na rua no momento em que está sendo apresentada ou, de maneira diversa, aquele público virtual que acessa a imagem na rede mundial de computadores. A obra é caracterizada pelo processo e trânsito do espaço urbano para a galeria virtual (fotoblog do artista, ver em: <www.zmarioperformer.blogspot.com.br>, e redes sociais). Ainda assim, em meio virtual, em imagem digital, o artista deve ser belo!? “A estética digital é uma estética de hibridação com potencialidades infinitas; ela opera numa cultura da hibridação, numa nova ordem visual e numa nova maneira de produzir, de comunicar e de receber imagens” (SOULAGES, 2010, p. 134).

Alguns amigos virtuais que acessaram as imagens do tórax e barriga depilados, numa das páginas da WEB, assim reagiram:

 

Me dá ginge [2], que agonia!

Isto é arte?

Uó!

Uó rapado deve ser legal!

Body art radical!

Que sacrilégio! Por que ele odeia tanto o seu corpo?

 

Desde Marcel Duchamp com a obra Tonsure, 1919 (ver em: <http://www.andrebreton.fr/work/56600100228110>), em que seu couro cabeludo raspado em forma de estrela é fotografado por Man Ray, passando pela performance para vídeo Art must be beautiful, artist must be beautiful, 1975, de Marina Abramović, até os desdobramentos contemporâneos da body art, o artista contemporâneo tem reivindicado a presença do corpo do homem comum no universo da arte, que a cada dia perde em espontaneidade e liberdade. É apresentado um corpo humano essencialmente animal, com odor e suor na pele em ações cotidianas diversas.

Dessa maneira, a arte da performance e os body artists colocam em evidência o corpo natural frente ao corpo artificial. Em sua fragilidade, o corpo sempre apresenta a condição animal ainda que adaptada aos signos civilizatórios. Este é o corpo presente na série de registros e nos desdobramentos da produção Depilação Masculina (body art in progress), 2010.

 

NOTAS

[1] Texto originalmente inscrito para Comunicação Oral no VIII Colóquio Internacional Franco-Brasileiro de Estética: A Estética da Fotografia, de 21 a 25 de novembro de 2011, na UFBA – Universidade Federal da Bahia. Ver em: <http://coloquioesteticadafotografia.blogspot.com>. Esta versão foi revisada e ampliada, recebendo um novo título para a publicação na eRevista Performatus.

[2] Arrepio ou desconforto neurológico provocado por um ruído ou sensação táctil.

 

BIBLIOGRAFIA

CHAVES, Marcos. Site oficial. Acesso em 27 maio 2015. Ver em: <http://www.marcoschaves.net/fotografias/1-1>.

DUCHAMP, Marcel. Tonsure. Acesso em 27 maio 2015. Ver em: <http://www.andrebreton.fr/work/56600100228110>.

GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: from futurism to the present. London: Thames & Hudson, 2001.

GPCI – Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos. Site oficial. “Que corpo é este?” Acesso em 21 jun. 2011. Ver em: <http://goo.gl/kv7Zkd>.

MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis: estética, comunicação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005.

MELLO, Luiza. Marcos Chaves. ARTE BRA. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

ORZESSEK, Arno. “Ferida e feridor. Vestígios da artista cubana de performance Ana Mendieta ganham nova vida em Dusseldorf”. Humboldt. Alemanha, n. 75, p. 72-74, 1997.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

SANTOS, José Mário Peixoto. Os artistas plásticos e a performance na cidade de Salvador: um percurso histórico-performático. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes-UFBA. Acesso em 21 jun. 2011. Ver em: <http://goo.gl/3b7d3u>.

______. “Breve histórico da ‘Performance Art’ no Brasil e no mundo”. Revista de Arte Ohun. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes-UFBA. n. 4. Salvador, 2008. Acesso em 27 mai. 2015. Ver em: <http://www.revistaohun.ufba.br/pdf/ze_mario.pdf>.

SESC Pompéia. Terra Comunal. Site oficial. Acesso em 27 mai. 2015. Disponível em: <http://sescsp.org.br/terracomunal>.

SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.

VERGINE, Lea. Body art: the body as a language. USA: Skira, 2000.

ZMÁRIO. Fotoblog. Acesso em 27 mai. 2015. Ver em: <http://zmarioperformer.blogspot.com>.

 

 

José Mário Peixoto Santos – ZMário: é artista performático, professor e pesquisador da linguagem artística da performance. Mestre em Artes Visuais pelo PPGAV – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA, onde pesquisou a produção de Performance Art na cidade de Salvador, Bahia, na linha de Teoria e História da Arte. Doutorando em Poéticas Contemporâneas pelo IDA-PPG-Arte Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB – Universidade de Brasília, onde pesquisa a arte da performance sob a orientação da Profa. Dra. Maria Beatriz de Medeiros. Contato: artezmario@hotmail.com

 

PARA CITAR ESTE ARTIGO

SANTOS, José Mário Peixoto (ZMário). “‘Depilação Masculina’: Série de Registros Entre o Autorretrato e a Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e o autor

Texto completo: PDF