Corpo Desprovido de Roupa como Indumento de Signo

 

(…) sabemos que, na sociedade contemporânea, é cada vez maior a exposição do corpo nu. Queremos que tudo nos seja mostrado, que nada fique oculto. O corpo do outro nos desperta a libido e nos serve de parâmetro. É por meio dele que percebemos e fortalecemos a nossa identidade. [1]

 

Com a composição visual Meditation on Gender Difference, sob uma abordagem que provém dos estudos feministas, a artista Hayley Newman propõe uma reflexão sobre as diferenças instituídas entre o corpo feminino e o masculino. Nessa composição, Newman expõe a dor de uma grave queimadura solar nas partes tidas como “íntimas” do seu próprio corpo, as quais, sob um ponto de vista religioso castrador, não podem ser expostas, não podem ser “trazidas à luz”. A ação exprime a imposição moral e a relação desta com a nudez (principalmente da mulher). O calor das partes íntimas – que motiva a ausência de vestimenta –, sob uma óptica religiosa castradora, culmina na ardência como punição.

Através de um terno que age como um inverted bikini (biquíni invertido), o corpo da artista é totalmente coberto, exceto na área genital e nos seios. A artista usou esse traje durante o dia todo e só o retirou ao anoitecer. Ela afirma que: “In the work the body itself articulates emotion through a controlled physical reaction expressed in the form of intense sunburn” [2].

 

Hayley Newman, Meditation on Gender Difference, 1996. Fotografia de Casey Orr e Hayley Newman

 

Nota-se que, de acordo com James Laver, o conceito de moda teve início no final da Idade Média, época em que surgem os primeiros trajes concebidos sob a finalidade de realçar as diferenças entre o corpo feminino e o masculino [3], sendo que “o traje marca, desde então, uma diferença radical entre masculino e feminino, sexualiza como nunca a aparência” [4].

O evidente caráter de sedução desses trajes coloca a moda em oposição à religião. Além do desígnio de seduzir, dois outros fatores que ocorrem no período vão propiciar o desenvolvimento desse novo conceito da moda e deixar claro que a moda e sensualidade caminham juntas [5].

É válido ressaltar que o cristianismo estabelece no corpo a responsabilidade pelo espírito. É dentro da lógica cristã que o sujeito deve anular o corpo para dar atenção à alma e cuidar dela como forma de se engrandecer e de se mostrar como um indivíduo incorruptível em relação a Deus. A religião prega o desapego da matéria e o enaltecimento do espírito, portanto afirma o sofrimento, a negação do prazer, a dor física e o sacrifício da carne como forma de valorizar o espírito.

“A nudez, na nossa cultura, é inseparável de uma marca teológica” [6] e Hayley Newman expõe, na sua pele, os elementos que originam a moda ao compor seu traje de banho que provoca o olhar de desejo do homem para o seu corpo feminino ao mesmo tempo que castiga sua matéria e faz retumbar o que, em outros tempos, era visto como um sinal de devoção a Deus. A artista faz dialogar dois tempos no registro feito sobre o seu corpo nu: o passado – que condenava a beleza física e qualquer coisa que evocasse a libido – e o momento presente – em que a beleza é fundamental.

A sociedade contemporânea, menos ascética, é movida pelo prazer e não abre mão de se sacrificar ao cultuar um deus “sem rosto” chamado moda. “Moda é prazer. É por meio dela que o indivíduo visivelmente se faz belo, se modifica conforme seu desejo, se torna único, se sente parte de uma cultura” [7].

 

NOTAS

[1] PIRES, Beatriz Ferreira, O Corpo como Suporte da Arte, p. 21.

[2] “Nesse trabalho, o próprio corpo articula emoções por meio de uma reação física controlada expressa na forma de intensas queimaduras solares”. Cf. NEWMAN, Hayley, apud HEATHFIELD, Adrian, Live: Art and Performance, p. 175.

[3] LAVER, James, A Roupa e a Moda: Uma História Concisa, p. 62.

[4] LIPOVETSKY, Gilles, Império do Efêmero: A Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas, p. 65.

[5] PIRES, Beatriz Ferreira, op. cit., p. 38.

[6] AGAMBEN, Giorgio, Nudez, p. 73.

[7] PIRES, Beatriz Ferreira, op. cit., p. 38.

 

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D`Água, 2009.

BATAILLE, George. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

HEATHFIELD, Adrian. Live: Art and Performance. Nova York: Routledge, 2003.

LAVER, James. A Roupa e a Moda, Uma História Concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LIPOVETSKY, Gilles. Império do Efêmero: A Moda e Seu Destino nas Sociedades Modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte. São Paulo: Editora Senac, 2003.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

FREY, Tales. “Corpo Desprovido de Roupa como Indumento de Signo”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 1, nov. 2012. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2012 eRevista Performatus e o autor

Edição de Hilda de Paulo

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