O Eu Pulverizado na Arte Performática de Cindy Sherman

 

A Questão da Identidade Feminina em Untitled Film Stills

À volta do corpo, um dos temas mais privilegiados na década de 1990, gravita todo o trabalho de Cindy Sherman, que o usa – o seu próprio corpo – como matéria-prima principal da sua obra. Cynthia Morris Sherman nasceu em 1954, Nova Jersey, EUA e, em 1972, ingressou no State University College, em Buffalo, com o intuito de desenvolver as suas capacidades no campo da pintura. Contudo, o contato com a arte conceitual, a performance art, a body art e os meios para documentar essas artes performativas, como a fotografia, o vídeo e o cinema, foram fundamentais para Sherman reorientar o seu trabalho no sentido dos seus autorretratos que se tornaram o eixo de sua produção artística. Em 1975, ainda na universidade, Cindy produziu uma série de cinco fotografias, que mostram o seu próprio rosto, alterado por meio de maquilagem e de chapéus, em cinco versões diferentes. Estava aqui, nessa precoce experiência, enunciado o seu programa de intenções.

Na série Untitled Film Stills, Cindy Sherman produziu 69 fotografias nas quais personifica estereótipos de mulheres advindas do imaginário cinematográfico. A artista utiliza aqui o princípio dos stills cinematográficos, ou seja, fotografias publicitárias cujo objetivo é criar interesse nas pessoas para que vejam os filmes, de maneira que tais fotografias têm de ser interessantes o suficiente para despertar o desejo em descobrir uma história por detrás de cada uma delas. No caso de Sherman, ela apenas cria esse desejo, deixando ao espectador a função de imaginar e contextualizar a fotografia num determinado enredo. As fotografias apresentam cenas e estereótipos de mulher que são reconhecíveis e familiares ao observador, mas que, por outro lado, não reportam a nenhuma cena ou personagem em específico. Assim, nesse conjunto de fotografias, podemos identificar “a atriz, a namorada, a rapariga do interior, a desportista, a sedutora, a sofredora, a louca”, entre outras [1]. A personagem que Cindy Sherman interpreta em cada uma das fotografias é construída, assim, em torno de uma figura feminina ficcionalizada e do respectivo reconhecimento da sua construção cinematográfica que, por sua vez, personifica uma mulher, partindo de um imaginário formulado por uma cinematografia de autor, com referências explícitas a Alfred Hitchcock (1899-1980), Roberto Rossellini (1906-1977), Michelangelo Antonioni (1912-2007) ou Jean-Luc Godard (n. 1930), em paralelo com a imagem das atrizes dos seus filmes, como Anna Magnani (1908-1973), Mónica Vitti (n. 1931), Sophia Loren (n. 1934), Brigitte Bardot (n. 1934) ou Jeanne Moreau (n. 1928) [2].

Sherman assume este conjunto de papéis de modo a sublinhar a ligação inextricável na cultura contemporânea entre imagem e identidade [3]. Ao inserir essa linguagem cinematográfica em museus e galerias, a artista obriga o observador a traçar um olhar diferente sobre as imagens femininas que o cinema projeta, de modo que, no seu novo contexto, os tipos de mulheres representados questionam o impacto do cinema na própria identidade feminina [4]. Para além disso, como Barry J. Mauer observa, é de um modo muitas vezes desajeitado, incômodo e incoerente, que a artista incorpora o visual que assume, num duplo movimento de identificação e estranhamento, através de estratégias de simulação e desfamiliarização [5].

 

Cindy Sherman, Untitled Film Still #3, 1977

 

Pensemos em Untitled #3, uma fotografia em preto e branco de 1977, impressa em gelatina de prata, de 18 x 24 cm. Nela, podemos observar, à direita, uma figura feminina, loira, que se apoia numa pia de cozinha, onde vemos elementos como um escorredor de louça, um frasco de detergente, um saleiro, um frasco transparente vazio, um cabo daquilo que nos parece ser uma panela, talvez ao fogão. A mulher, por sua vez, não encara o espectador, olha antes para o exterior da fotografia. Podemos dizer que esse olhar para o exterior é acentuado pelos olhos firmemente maquilados. A personagem veste, por um lado, um avental e, por outro, uma camisola sem mangas, justa, que lhe salienta as formas do corpo. Enquanto o braço esquerdo se apoia na pia, a mão direita aparece-nos pousada sobre o estômago, o que confere uma certa tensão à cena. À sua frente encontra-se uma estante que equilibra a composição. Sobre Untitled # 3, Mauer afirma: “Aqui, a mulher oferece-se para ser fotografada, denotando sexualidade, mas os objetos mundanos próximos a ela contradizem a sua autodefinição, que a proclama, em vez disso, como uma dona de casa.” [6] O que Sherman faz é sobrepor elementos de feminilidade incorporados pelo imaginário quotidiano e reordená-los, por vezes juntando elementos contraditórios. Através desse processo, a artista propõe-se a problematizar um conjunto de convenções comumente aceitas relativamente à identidade feminina, bem como evidenciar códigos que constroem as feminilidades sociais.

 

A Questão do Autorretrato em Untitled Film Stills

Alguns críticos de arte, como Arthur Danto, consideram o trabalho de Sherman mais performático do que fotográfico, sendo a fotografia, nesse caso, apenas um registo que captura as encenações da artista. Para Danto, as fotografias de Sherman não podem ser consideradas autorretratos porque caminham numa lógica inversa; se o autorretrato supõe o desdobramento da vida interior e da profundidade psicológica do eu, Sherman, ao contrário, mostra retratos que ela “divide com qualquer mulher desconhecida” [7]. Partindo da hipótese de que as concepções contemporâneas de retrato fotográfico continuam permeadas pelas modalidades do século XIX de representação do indivíduo, Annateresa Fabris reconhece no retrato fotográfico uma “atitude teatral”, na qual quem é retratado está inserido em uma encenação, com o intuito de se obter uma “ideia completa da pessoa” [8]. Segundo Fabris, uma das principais funções do retrato fotográfico no século XIX era representar o eu burguês em ascensão, um privilégio, até então, restrito apenas à aristocracia, por meio do retrato pictórico. O que um retrato visava na altura era “transformar em imagem a estabilidade e a legitimidade da burguesia graças a uma composição ordenada e unitária, que se inspira na pintura em voga”, de modo que, não importava “representar a individualidade de cada cliente, mas, antes, confirmar o arquétipo de uma classe ou de um grupo (…)” [9].

Mas o que dizer dos autorretratos de Cindy Sherman? Se no século XIX o retrato fotográfico procurava captar uma “ideia completa da pessoa”, as fotografias de Sherman, ao invés disso, captam “várias ideias incompletas de si mesma”, salienta Fabris. Uma após a outra, cada imagem apresenta Sherman assumindo não uma, mas muitas identidades. Esse conjunto de imagens de mulher, no qual Sherman é a mulher, é todas as mulheres, chama a atenção pela capacidade da artista de mudar a própria aparência, não sendo assim difícil comparar o trabalho de Sherman ao trabalho ficcional da atriz.

Também para Alexandre Melo, aqui a lógica é completamente diferente da do autorretrato: a autora não procura uma representação real, verdadeira, do seu próprio eu, da sua identidade, mas o que nos propõe, pelo contrário, é uma proliferação de imagens de figuras que ela representa e que não convergem em direção a qualquer unidade identitária. Esta unidade identitária, um verdadeiro eu, resultaria, por fim, na soma de todas as imagens, todavia, o trabalho de Sherman apresenta antes uma “dinâmica de divisão, de fracionamento e pulverização do eu” [10]. Alexandre Melo continua afirmando que:

 

Da multiplicação das imagens não resulta um afinamento dos detalhes e facetas de uma pessoa, um eu, na ocorrência, o da autora, mas sim uma cada vez mais categórica recusa de qualquer noção estável de identidade e uma demonstração da impossibilidade de, no âmbito da representação contemporânea, se continuar a alimentar a ideia de uma representação unitária de uma identidade pessoal [11].

 

Como Vladimir Safatle salienta, uma leitura pós-moderna dos autorretratos de Sherman indica uma variação nas maneiras de a artista se apresentar como “a afirmação de uma subjetividade enfim libertada do Eu unificador e capaz de gozar da plasticidade de seus mascaramentos” [12]. A identidade, na contemporaneidade, deixa de ser um lugar estável de afirmação contínua e duradoura, para passar a significar um lugar de sucessivas rupturas e reconfigurações constantes na construção performativa de identidade(s), agora pensada no plural [13].

 

NOTAS

[1] Monica Siedler, Autorretratos de Cindy Sherman e Teatralidade: Um Estudo para a Composição do Movimento e Montagem da Performance “1A” (UMA). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Florianópolis, 2007, p. 44.

[2] Susana Lourenço Marques, Cópia e Apropriação da Obra de Arte na Modernidade. Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação, Variante Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, apresentada à Faculdade de 
Ciências Sociais Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2007, p. 233.

[3] Annateresa Fabris, Identidades Virtuais: Uma Leitura do Retrato Fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 63.

[4] Monica Siedler, op. cit., p. 44.

[5] Barry Mauer, “The Epistemology of Cindy Sherman: A Research Method for Media and Cultural Studies”. Mosaic: A Journal for the Interdisciplinary Study of Literature, março de 2005, p. 12.

[6] Ibidem.

[7] Sofia Porto Naves, Armadilhas do Olhar nas Imagens de Cindy Sherman. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica, p. 24.

[8]  Annateresa Fabris, op. cit., p. 36.

[9] Ibidem, p. 31.

[10] Alexandre Melo, Velocidades Contemporâneas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 255.

[11]  Ibidem.

[12] Vladimir Safatle, “O Que Vem após a Imagem de Si?”. Trópico: Ideias de Norte e Sul, São Paulo, s/d. Ver em: <http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2793,1.shl>. Acesso em: 24 de novembro de 2014.

[13] Monica Siedler, op. cit., p. 30.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

RAMOS, Angélica da Costa. “O Eu Pulverizado na Arte Performática de Cindy Sherman”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e a autora

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