“Carmin – Experimento Água” – Intervenção Urbana como Procedimento de Encenação

 

Foto de Adriano Marinho

 

Este artigo enfoca a intervenção urbana “Carmin – Experimento água”, como procedimento para o processo criativo da encenação “Carmin” que será o resultado cênico do Projeto de Ações Integradas: pesquisa, extensão e ensino, desenvolvido no DEART/UFRN, intitulado “Processos de Criação em Arte Contemporânea: Vivenciando e Apreendendo”, que deu origem a coligação CRUOR Arte Contemporânea. O texto fundamenta teoricamente a intervenção de dança contemporânea, realizada quatro vezes; sendo três na cidade de Natal e uma em Porto Alegre durante o FITE 2012 (Festival Internacional de Teatro Estudantil). Durante os procedimentos metodológicos de criação, escolhemos trabalhar a partir das imagens da água e/ou líquido presentes nas ações dos filmes de Pedro Almodóvar [1] apreciados durante o desenvolvimento do projeto. Ao final de cada sessão, aconteceu uma explanação guiada pelo Prof. Dr. Gilmar Santana, sociólogo e estudioso da obra deste cineasta, em um aprofundamento na estética destas películas e principalmente dos conceitos de desejo, encontrado em seus filmes e que se tornou eixo norteador de diversas discussões e práticas de laboratórios para a criação das partituras, a partir da memória corporal de cada participante. A partir destas temáticas, assistimos também as obras cinematográficas “Um bonde chamado desejo” (1951) do diretor americano Elia Kazan e “A Malvada” (1950) dirigida por Joseph L. Mankiewicz.

Durante os processos criativos, elegemos outros conceitos nas aulas teóricas e nos laboratórios, para somados, formarem os eixos na prática da dança contemporânea proposta para a intervenção; conceitos estes ligados às proposições da arte contemporânea. Compreendemos que o conceito de intervenção propõe uma arte provocativa e catalisadora para novos significados a partir do olhar e da apropriação; neste caso, das imagens dos filmes de Pedro Almodóvar e da obra de Frida Kahlo em interlocução com as memórias do corpo para criação das partituras em suas relações com os cotidianos dos espaços, propondo um estranhamento e questionamentos. As técnicas corpóreo/vocais na intervenção em tela foram pautadas, sobretudo, nos estudos de Antonin Artaud (1987): Teatro da Crueldade; Anne Bogart (2005): Viewpoints; Barros (2011): Dramaturgia Corporal; Toro (2005): Biodança; Salles (2004): processos de criação.

As imagens de Kahlo utilizadas com maior ênfase para a criação das partituras corporais foram “Yo soy la desintegracion” e “Lo que veo en el agua”, gravuras desenhadas por Frida em seu Diário Íntimo. Na primeira imagem, à direita da pintura, aparece uma figura que está em cima de um pedestal, mas de forma a cair, se despedaçando, o que imediatamente nos remete ao próprio corpo da Frida Kahlo, mutilado primeiro aos seis anos de idade quando foi acometida pela poliomielite e, após, os dezoito anos, durante toda sua vida pelas inúmeras cirurgias, as quais precisou se submeter quando sofreu um acidente, envolvendo um bonde elétrico e um ônibus, momento em que uma barra de ferro atravessou seu corpo, afetando-o em toda sua existência e levando finalmente a amputação de sua perna direita, em decorrência das várias sequelas, um ano antes de seu falecimento, em 1954. A desintegração esteve presente na vida da pintora em todos os aspectos sejam físicos ou afetivos; sendo sua própria imagem pintada por ela um exemplo em vida dessa sua desintegração: ela pintou seu corpo morrendo e sendo cremado, desintegrando-se na sua pintura e reinventado uma possibilidade de reintegração para o exercício da vida. Os espelhos eram parte efetiva de sua existência, provavelmente em uma tentativa de firmar-se pela imagem e reconstruir esta sua desintegração. A figura fotografada da bailarina Nathalia Santana, capturada em um laboratório de criação, inspirou-nos a perseguir a investigação sobre a desintegração, a esta imagem juntamos o elemento água que observamos nos filmes de Almodóvar e também porque a água é conhecida mundialmente como um solvente. Outro elemento explorado, em nossos procedimentos criativos, foi a dor por estar sempre presente tanto na vida da pintora quanto nas tramas dos filmes de Almodóvar. A desintegração experimentada por Kahlo era física e extremamente dolorida, mas também psíquica. Nas palavras dela em seu diário: 

 

11 de fevereiro de 1954: Há seis meses amputaram-me a perna. Torturaram-me durante séculos e em alguns momentos quase enlouqueci. Continuo a sentir vontade de me suicidar. Diego é quem me impede despertando em mim a vaidade de pensar que posso fazer falta. Ele disse, e eu creio nele. Mas nunca sofri tanto na vida. Esperarei algum tempo (KAHLO,2005, p. 144). 

 

Estas questões abordadas na vida de Kahlo nos remetem imediatamente ao ponto central da vida do pensador do teatro que nos norteia teoricamente: Antonin Artaud, que se trata da loucura permeada pela desintegração. Fato que nos leva a rememorar um tratamento inventado pelo médico Ugo Cerletti [2], inspirado numa visita a um matadouro de porcos e que postulava a reintegração da desintegração mental. São os eletrochoques, que consistem em dar choques em pessoas com problemas mentais provocando uma convulsão. O choque provocaria, segundo este médico, a regressão fisiológica e psicológica, apagando funções psíquicas superiores; postulava que essa “desintegração” momentânea iria promover uma “reintegração” sadia, pois a perda da memória, com os choques, geraria o esquecimento dos acontecimentos que provocaram a psicose. Assim, na construção da movimentação e das partituras coreográficas destes corpos que iam surgindo através das percepções possíveis, levávamos em consideração que as práticas e linguagens sociais adotadas em relação à loucura constituem códigos que funcionam discriminando comportamentos, atitudes, sentimentos e posições, desdobrando-se em programas de valores, certo/errado, bem/mal, desejável/indesejável, impostos pela cultura. Essas instruções e formatações sociais, que trazemos encarnados na memória corpóreo/vocal e na movimentação espacial e temporal, regulam nossa interioridade e nossa relação com os outros. A loucura foge deste padrão se configurando como algo estranho que esquiva à compreensão de condutas ditas adequadas a um conglomerado social. A loucura como desintegração mental pode ser percebida como se existisse algo que escapa a compreensão, algo que não se consegue identificar como pertencente ao indivíduo. A experiência da loucura pode ser considerada como a perda ou ameaça de perda da própria identidade, sempre relacionada com o meio no qual vive, pois “não é possível dissociar o estudo da identidade do indivíduo e da sociedade. As possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social” (CIAMPA,1996). 

 

Foto de Adriano Marinho

 

Sob este ângulo, nos laboratórios de criação, pudemos experimentar exercícios psicofísicos utilizando as imagens de Frida Kahlo, e as trazidas pelos filmes de Almodóvar, assim como também trechos do diário de Kahlo e dos diálogos dos filmes de Almodóvar. Utilizando diversos procedimentos como a exaustão física, repetição de partituras com alterações de deslocamento, velocidade e intensidade, além da livre relação entre os participante e o desenvolvimento de uma alta percepção corporal e vocal e ainda improvisações propostas pelo Viewpoints. A partir daí, foram criadas interações e relações em nível sinestésico levadas a rua durante a intervenção, trazendo um sentido para o artista e ainda proporcionando sua relação pessoal com as obras dos dois artistas de referência, em relação a arquitetura do espaço e em interação com os transeuntes. Nesse sentido, não se buscou nas personas e imagens criadas uma lógica convencional mas exatamente o que proporciona essa desintegração em diversas ordens, social, biológica e psíquica, numa perspectiva transdisciplinar dentro de uma lógica modal – compreendida como aquela que trata das possibilidades em oposição à simples afirmação ou negação. Explorando formas de ligações e articulações entre o que, a princípio, parece não possuir nenhuma conexão. Tendo a clareza e pertencimento de uma ideia que permeia nossas ações na perspectiva de que existimos enquanto corpo sem órgãos [3], e então podemos ir além do simbólico, ressignificando o mundo e nossa própria vida, na direção de nossos desejos. Essa expectativa possibilita um elo com suas próprias experiências e memórias aos participantes em processo de criação. A arte, em nosso caso, a dança contemporânea e o teatro, possibilitam-nos experimentações com o corpo, onde o eu (self) colocado em cheque possibilita uma ruptura com a ideia de construção de uma identidade, da forma como é feita pela maioria das culturas e sociedades contemporâneas. Com a compreensão de que “identidade é tudo aquilo que se vivencia (sente ou enuncia) como sendo eu, por oposição àquilo que se percebe e enuncia como não eu (aquilo que é meu; aquilo que é outro; aquilo que é do outro) (COSTA:1989), este pensamento nos parece ser tão óbvio que, por vezes, não nos percebemos das contingências culturais e históricas que perpassam sua construção. Com efeito, acreditamos aqui, que as formas pelas quais os indivíduos, representantes da espécie homo sapiens, se subjetivam, são historicamente datadas e espacialmente circunscritas. Assim, a loucura se apresenta como algo que acontece em nossa subjetividade e para a qual não conseguimos encontrar uma linguagem capaz de defini-la ou explicá-la. Dessa forma, pode-se dizer que a loucura pode ser situada também no plano da comunicação. Artaud, por meio de seus escritos conseguia manter uma ligação com o mundo e revelar o que experimentava. Frida Kahlo não tinha o diagnóstico da loucura, mas experimentava a dor lancinante e fazia o mesmo com sua pintura: uma ligação e comunicação com o mundo ao redor. Mas, mesmo hoje, com todos os avanços tecnológicos e com todas as tentativas de se querer situar a loucura no campo das doenças orgânicas e de tentar concebê-la sob o prisma da subjetividade, nenhuma tentativa foi suficiente para quebrar o estigma que acompanha aquele que foi diagnosticado como louco. Estigma que Artaud viveu, e que o fez ser percebido, muitas vezes como insensato. Marca que uma vez atribuído ao louco nos resguarda de confrontarmos com alguma verdade que ele, o louco, pode revelar a nós. Sua insensatez, sua falta de coerência, talvez desvende uma outra realidade escondida no desatino da humanidade, a qual pode nos incomodar profundamente.

Para Artaud, a ênfase da expressão cênica no Teatro da Crueldade deve emergir dessa emoção que não é reprimida por aqueles que são ditos loucos e afirma que o artista cênico deve ser um atleta da afetividade. Os atuantes devem estar penetrados pela ideia de que se pensa elementarmente com e pelos sentidos e que é absurdo, como no teatro psicológico comum, dirigir-se primeiro ao entendimento racional das pessoas (ARTAUD, 1987). A cena apresentada dessa forma poderia tocar o espectador em seu âmago, passando a ser um instrumento revolucionário, possibilitando uma reorganização da existência humana. Como Artaud, “[…] acreditamos existirem, no que se chama poesia, forças vivas, e que a imagem de um crime apresentada nas condições teatrais adequadas funciona para o espírito como algo infinitamente mais temível do que o próprio crime realizado” (p.109).

 

Foto de Adriano Marinho

 

Em “Carmim – Experimento Água”, a crueldade do teatro de Artaud é sentida principalmente na relação direta com o espectador e na transformação que ocorre nas personas criadas para a intervenção. Em busca dessa desintegração e dessa crueldade a relação com o espaço e com a rua se coloca como foco e em cada lugar se estabelece uma relação diferenciada, o que nos coloca o tempo inteiro em prontidão diante do espectador. As leituras das obras de Artaud foram essenciais para que os artistas se propusessem a interagir com os conceitos de corpo sem órgãos e do Teatro da Crueldade. Durante os estudos teóricos, os relatos dos pesquisadores apontam que a experimentação na rua e o contato direto com o espectador, principalmente aquele que não espera a intervenção, que é retirado da zona de conforto onde se encontra em seu dia a dia, pode tornar mais compreensiva a ideia da crueldade apontada por Artaud, experimentando em si mesmo, no seu próprio sentir e no do outro, essa crueldade, pois a noção de crueldade também está ligada ao desconstruir para refazer, religar, no sentido antropológico religare [4], entre mundo espiritual e material (NASCIMENTO:1998). Isto se traduz em colocar o corpo em risco e neste, o perigo é indissociável do cruel, no sentido de ação, agir no mundo real e do espírito. Para o teatro da crueldade são imprescindíveis o rigor, a aplicação e a determinação, compreendidos na acepção radical. Não há uma liberdade de emoções e de fatos, pois estes estão encarnados na memória do corpo e não podemos sob hipótese alguma deles fugir. Assim como em todas as culturas quase tudo é aprendido, as pessoas ao nascerem já encontram um mundo cultural estabelecido, e com valores definidos “mesmo que por trás da ordem desse mundo exista uma outra ordem” (ARTAUD:1987) e que se possa questioná-la a partir da relação intervenção-público, existe uma relação direta e intensa, onde a colocação do espectador dentro da cena é um dos pressupostos da intervenção, já que antes de chegarmos ao espaço que se torna cênico, ele já esta inserido neste espaço enquanto ator social. Essa possibilidade de interação diferente do teatro convencional não apenas pelo local inusitado, mas pela possibilidade de estabelecer com o outro um contato mais direto, proporciona aos performers um contato maior com o que se entende sobre a poética artaudiana, sendo, portanto a intervenção urbana um procedimento eficaz para o objetivo do trabalho. 

Conforme Ana Maria Amaral (1991), citando Margareth Cryden, a encenação proposta por Artaud pode transformar o espectador porque provoca uma desestruturação e mexe com as angústias internas elementares do ser humano. Além disso, a provocação para se perceber o que normalmente não percebe, causando certo incômodo, pode fazer a cena proposta por Artaud funcionar como terapia, porque atitudes e situações externas provocam reações internas semelhantes.

Dessa forma, a encenação pode ser compreendida como um delírio provocado pela desarmonia criada entre forças físicas e espirituais contrárias, fazendo com que o outro venha à tona, o duplo, que vem provocar transformações. Persistimos na ideia de que, desde o nosso nascimento, encontramos uma estrutura cultural pronta a que devemos nos adaptar. Na maioria das vezes, esta adaptação é permeada por questionamentos sobre as estruturas encontradas durante o exercício da vida, causando um sofrimento físico ou espiritual. Como podemos ver, este inquietamento pode ser apaziguado também pela encenação proposta na teoria de Artaud e entendido com eficácia mágica, próxima do ritual religioso ligado, portanto, ao sagrado e ao que as religiões são capazes de operar na vida das pessoas.

Assim, para Artaud, essa crueldade consiste na consciência da dor proporcionada pela vida e sem a qual a existência não poderia ser exercida, propondo que, acima de tudo, se tenha uma lucidez sobre esta questão, como uma mágica rigorosa que utiliza todos os meios técnicos e práticos para alcançar um objetivo; e na criação da encenação encontrar uma antiga eficácia mágica, sua potência enfeitiçante para além da palavra, e que escapa ao significado que um texto, uma palavra dita pode ter, mas que é possível expressar em gestos e movimentos no espaço cênico. Mesmo que a palavra crueldade não possua, para Artaud, o significado convencional que dela temos, que é se comprazer em atormentar para fazer o mal, podemos traçar uma conexão com esse entendimento da palavra cruel: derivada do latim crudele, significando atormentar, ser duro, desumano, severo, rigoroso, tirano, pungente, doloroso. Ao colocar o espectador frente a determinadas imagens e sensações provocadas por dissonâncias, imagens e sonoridades que tocam a paisagem interna do espectador, pode-se levá-los a questionar a fragilidade da vida e, sobretudo, a única certeza que temos: a morte. Perceber a estrutura social, com desigualdades, que encontramos ao nascer, pode provocar, em alguns espectadores, um sentimento de aflição, mortificação, suplício, atordoamento. É exatamente este fato que também pode levar as pessoas a questionamentos sobre as formas e estilos de vidas adotadas, suas e dos outros, e desta forma pensar e repensar sobre suas vidas, suas escolhas e o que estão fazendo com elas, sendo cruelmente despertados e convidados a perceber. Assim sendo, entendemos crueldade como uma proposta de instauração cênica que é capaz de provocar, e a partir do aparelho sensório-perceptivo do espectador, atingir a sua subjetividade, criando sinestesias. Provocação que pode ter o poder de proporcionar às pessoas questionamentos sobre a vida e a morte.

 

Foto de Adriano Marinho

 

Com o pensamento pautado na teoria artaudiana, começamos a realizar laboratórios e perceber que corpo seria este na construção das ações para a cena, também de acordo com os conceitos postulados por Barros (2011) de dramaturgia corporal, chegou-se a conclusão de que trabalharíamos na construção de um corpo dolorido e atravessado pela angústia. Assim, iniciamos uma série de pesquisas de movimentações corpóreo/vocais, com cada participante criando suas próprias ações no tempo e no espaço da rua, da cidade, do trânsito. Um corpo dolorido que se relacionava com líquidos. E, neste sentido, começamos a explorar os Viewpoints propostos por Bogart (2005). Este método permite problematizar perspectivas psicofísicas das ações. Os Viewpoints são conceituados teoricamente por Bogart e Landau (2005) como princípios que podem levar as pessoas a ter uma alta percepção de seu corpo no espaço e no tempo, explorando a improvisação e composição corporal e vocal através de nove Viewpoints Físicos assim organizados: Viewpoints de Tempo: Andamento; duração; resposta cinestésica, repetição; Viewpoints de Espaço: Forma, gesto, arquitetura, relação espacial, topografia. E ainda seis Viewpoints Vocais: Altura, Dinâmica, Andamento, Aceleração/Desaceleração, Timbre e Pausa (Silêncio).

As construções foram individuais e pautadas na memória de cada corpo, no entanto, o fio norteador de cada composição, além do já exposto, foi o Processo Colaborativo, termo que começou a ser utilizado nos anos 90, e que, segundo Antônio Araújo [5], diretor do Teatro da Vertigem da USP, é o compartilhamento da criação pelo dramaturgo, diretor, ator, e os outros criadores, sem uma hierarquia nessa criação. Assim, no final de cada sessão de laboratório proposto, cada um mostrava seu trabalho e seu processo de criação e todos os participantes colaboravam a partir de seus olhares e, neste diálogo, as cenas iam se transformando e sendo refeitas. Chegando ao resultado mostrado nas intervenções urbanas, não só em “Carmin”, discutida neste texto, mas nas intituladas: “Corpo Livre”, “Unissex”, “Segredo” e “Tai” [6]. As interações resultantes da intervenção serão pontuadas e trabalhadas na encenação final denominada “Carmin”; como, por exemplo, a topografia usada pela bailarina Nathalia Santana, que tem toda sua movimentação em linhas, quadrados e diagonais e ainda a do bailarino Sandro Souza Silva que, com Nathalia Santana, trabalham em movimentação oposta a dos atores/bailarinos Moisés Ferreira e Wallace Freitas, a ocupação dos espaços pelas duplas acontece em diagonais e, enquanto Nathalia mira seu próprio rosto em um espelho imaginário, Wallace tem os olhos vendados.

Cada intervenção de “Carmin – Experimento Água” vem se configurando como laboratório de criação. No momento da intervenção, além de ser aberto para a experimentação de movimentos, ficamos livres também para experimentarmos a relação com o espaço e com os espectadores, além de experimentarmos novas composições de figurino e maquiagem. Da mesma forma que os laboratórios em sala possibilitam a criação de partituras corporais que são levadas para a rua, as experimentações na rua também são levadas a sala para a composição da cena. Nesse sentido, podemos perceber um ampliação da utilização do corpo para a cena. Não se trata apenas daquele corpo trabalhado em uma determinada técnica e que pode muitas vezes se aprisionar em um registro ou em um molde, mas um corpo aberto as experimentações, que interage em sua multiplicidade de sentidos e sensações, que atua em diversos espaços em uma mesma movimentação e agrega a ela sensações únicas daqueles momentos em uma relação específica com ele apreendendo em sua memória. Isso significa que o trabalho dos artistas tem um ponto de vista transdisciplinar, perpassando por diversas áreas como sociologia, antropologia, cinema, artes visuais, teatro, dança e arquitetura.

Diante da complexidade e da multiplicidade de elementos, os laboratórios em sala se tornam estímulos para que cada artista pesquise individualmente as relações que vão construindo entre as obras de Almodóvar e Kahlo e com as intervenções realizadas. A relação com os líquidos presentes nos filmes de Almodóvar, por exemplo, é utilizada em “Carmin – Experimento Água” de diversas formas ressaltando, por exemplo, a cor vermelha, largamente utilizada pelo diretor espanhol em suas obras e que pode ser relacionada ao sangue, que pode ser visto nas imagens apresentadas nos filmes como o sangue que escorre das vítimas dos crimes passionais, dos vestidos, telefones e carros vermelhos utilizados na trama em momentos específicos do roteiro que possibilitam a transição nas estórias das personagens, ou mesmo na bebida espanhola gaspacho, feita a base de tomate, e que em “Carmin – Experimento Água” se desloca para a tinta vermelha que pinta corpos e o espaço, o sangue decorrente de um aborto, já em uma relação direta com a obra de Frida Kahlo, e no vinho tinto compartilhado com os espectadores. A água também é utilizada na intervenção como aquela que possibilita um banho e dissolve o que está posto na cena, também presente nas obras de Almodóvar, que refresca o ardor das paixões e do desejo que pulsa, e também lavando o corpo pintado e o deixando-o novamente nu para ser repintado por outra poética.

 

Foto de Adriano Marinho

 

Das quatro intervenções de “Carmin – Experimento Água” até agora realizadas, experimentamos arquiteturas diversas:

1- uma praça aberta em frente ao Teatro Alberto Maranhão em uma rua movimentada da cidade de Natal;

2- um gramado pequeno em frente ao Departamento de Artes da UFRN;

3- um grande gramado no Centro de Ciências Humanas da mesma Universidade;

4- o hall externo do Teatro Renascença em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

A cada apresentação pode-se perceber uma alteração nas personas apresentadas, uma utilização maior de textos e referências e uma apropriação maior da relação com o espaço e o público, além de uma ampliação da relação entre os bailarinos durante a intervenção. A ideia é que essas relações tragam subsídios para a construção da cena e que possam ampliar as sensações vividas nos laboratórios, trazendo para/e no corpo uma vivência e memória mais profunda das obras dos artistas estudados.

Participam deste trabalho os seguintes alunos e alunas dos cursos de Dança e Teatro da UFRN: Fernanda de Moura Estevão Peroba, Heloisa Helena Pacheco de Sousa, Josie Pontes e Silva Pessoa, Keila Campanelli, Nathalia Santana Cordeiro, Sandro Souza Silva, Surama Sulamita Rodrigues de Lemos, Yasmin Rodrigues Cabral e Wallace José de Oliveira Freitas.

 

Notas

[1] “Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão” (1980); “Labirinto de Paixões” (1982); “Maus Hábitos” (1983); Que Fiz eu Para Merecer Isto (1884); Matador (1986); “A Lei do desejo” (1987); “Mulheres a Beira de um Ataque de Nervos” (1988); “Ata-me” (1990); “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1993); “A Flor do Meu Segredo” (1995).

[2] Ugo Cerletti nasceu em Conegliano, na região do Veneto, Itália, em 26 de setembro de 1877. Estudou medicina em Roma e Turim, posteriormente, especializando-se em neurologia e neuropsiquiatria e inventou o método da eletroconvulsoterapia como tratamento psiquiátrico, conhecido popularmente como eletrochoques.

[3] Termo utilizado por Antonin Artaud em um poema escrito em 1948 intitulado Para Acabar de Vez Com o Julgamento de Deus e que depois foi desenvolvido por Gilles Deleuze e Felix Guattari em suas obras o Anti Édipo e Mil Platôs e que faz referência a um plano de imanência do desejo. O corpo sem órgãos seria no âmbito do teatro e da dança um corpo dilatado, aberto a possibilidades múltiplas de criação.

[4] Religião deriva do latim Religare: tornar a ligar, atar ou ligar bem.

[5] Disponível em: <http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF06/SP06_015.pdf>. Acesso em: 30 de março de 2012.

[6] Intervenções urbanas do CRUOR Arte Contemporânea, realizadas dentro do mesmo projeto de pesquisa. Para mais detalhes destas intervenções acessar <www.artecruor.com.br>.

 

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