O Treinamento do Ator como “Cuidado de Si” a partir da Obra de Lygia Clark

 

O corpo coletivo se compõe de um grupo de pessoas que vive proposições em conjunto e troca entre si conteúdos psíquicos: ajuda a reestabelecer a confiança no outro, a pacificar, a amenizar as feridas narcisísticas, dar coragem e, através disso, a intensificar a presença de cada um no mundo, a reatar diálogos (CLARK apud ROLNIK, 2006, p.35).

 

Fundamentado nas práticas do cuidado de si investigadas por Michel Foucault (2006/2011), este artigo visa refletir sobre o exercício pedagógico teatral a partir da problematização do trabalho do ator, tendo como principais referências às criações de Lygia Clark (1920-1988).

A artista brasileira, na segunda fase de seu percurso criador, rompe com as fronteiras da escultura para dedicar-se à investigação do corpo. Clark, neste momento já consagrada internacionalmente, passa a denominar-se “não artista”: recusa escolas e suas classificações redutivas, radicaliza as experiências sensoriais do fruidor e desdobra as fronteiras de compreensão da obra de arte, agregando-lhe características terapêuticas.

A partir deste momento, suas práticas criativas passam a fomentar tensões entre arte e vida, aproximando-se da problematização do cuidado de si, ideia investigada na última fase dos estudos de Michel Foucault. Trata-se de um conjunto de práticas e exercícios que, refletidos no contexto da antiguidade ocidental, tornam-se mediadores do encontro do eu com o desconhecido. Ocupar-se de si corresponde, neste sistema de pensamento, a uma técnica ou arte que nos une à noção de sagrado a partir do questionamento estético da existência. Esse sistema parte da inquietude inerente ao sujeito, e estabelece a relação deste com o mundo e com as práticas da filosofia, induzindo-o a buscar o cuidado de si (epimeléia heautôu). Por meio de uma reorganização progressiva do ser, este se torna o princípio fundador da máxima “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), utilizando-se as mais diversas técnicas de subjetivação.

As técnicas de si têm como finalidade fomentar descobertas no sujeito e, para isso, assumem uma função formativa, curativa e terapêutica. Neste contexto, chamamos de espiritualidade o conjunto de práticas para tal que, em um movimento de Eros (amor) e Askésis (exercício, trabalho) fazem do sujeito um objeto de si mesmo, na mediação deste com seu instrumento base de ação: o corpo.

Neste sentido, Gilberto Icle (2007) aproxima a análise de Foucault com as discussões relativas à formação do ator, circunscrevendo este campo a partir da sistematização do trabalho de Constantin Stanislavski. As investigações do mestre russo refletem o teatro em um âmbito além da produção de uma obra, em suas relações com a educação do artista. Inserido no processo de criação, ele se torna “sujeito de seu corpo, de seus afetos e de sua reflexão” [1].

Este elemento da proposta crítica do pensador francês evoca o momento em que a vida se volta contra as relações de poder [2]. O convívio prazeroso consigo mesmo se mistura às vivências amorosas, em uma conexão ética com o outro que estimula a condição criativa do ser, nunca egoísta. As práticas de si são, neste sentido, estratégias de resistência ao anulamento do ser, pois, por meio da disciplina do exercício constante contra o hábito, promovem atos afirmativos de liberdade.

 

O aspecto formador do cuidado de si não descarta o aspecto corretivo, pois a prática de si impõe-se sobre os erros, maus hábitos, deformações, dependências (…) A prática de si serviria para expurgar, dominar, liberar-se do mal. Foucault considera um elemento fundamental do cuidado de si essa possibilidade de nos tornarmos o que poderíamos ter sido e nunca fomos, uma vez que existe a possibilidade de nos corrigimos, de nos transformar-nos. Neste mesmo caminho, Foucault fala do vocabulário crítico do aprender as virtudes é desaprender os vícios, indicando a noção de desaprendizagem (ICLE, 2007, p.9).

 

A artista escolhida para nortear as veredas da discussão emprega o corpo como obra. Esta compreensão se dá por meio de procedimentos que visam à sua constante modificação física – e, portanto intelectual, sensorial, afetiva, mnemônica – a favor de sua desaprendizagem. O processo acarreta, dessa forma, na transformação da vida em realização artística e, por conseguinte, na afirmação de novos valores estéticos.

Em 1966, a artista expõe a série Nostalgia do Corpo [3], cujas proposições impulsionaram seus últimos vinte e três anos de pesquisa, desembocando na elaboração dos Objetos Relacionais. Estes foram criados para estimular os impulsos vitais do corpo a partir do contato, dependendo exclusivamente da experiência do manuseio para tornarem-se arte. Nesta redescoberta do tato, objetos externos a si nos fazem desvendar a internalidade do sujeito através do corpo.

Ao contrário de seus trabalhos anteriores, os objetos eram compostos por materiais precários, tais como: plásticos, elásticos, bolas de ping-pong, conchas, redes de cebola, água e ar. Aos poucos, eles vão sendo utilizados em vivências de grupo e, a partir de 1972, são sistematizados na trajetória da artista que, nesta época, fora convidada a ministrar aulas na Sorbonne.

Segundo Suely Rolnik (2006), esta foi a primeira vez em que Lygia Clark encontra condições necessárias para aprofundar sua investigação. É nesta prática, similar ao treinamento teatral, que dispunha de um grupo relativamente estável de pessoas que, por meio de sessões [4] constantes e elaboradas adquiriam confiança para diluírem-se no coletivo. Fica claro, neste momento, para ela, que o fruidor não deve mais se projetar em um processo de identificação com a arte. Ao contrário, deve vivenciá-la intensamente por meio das potencialidades de descoberta dos Objetos Relacionais, que provocavam sensações que chamam para fora as memórias do corpo.

 

Neste cenário, o processo se amplia e se desdobra ao longo do tempo e ao ritmo da regularidade das sessões. Além disso, a presença de Lygia torna-se indispensável para a experiência daqueles que se dispõem a viver estas propostas. A artista participa do processo: um ritual que ela oficia, manipulando ela mesma os objetos no corpo dos participantes, ou indicando a maneira como eles devem ser experimentados (…) Alunos da artista na Sorbonne, entrevistados para o referido projeto, reconhecem em sua maioria a importância seminal desta experiência em sua vida e, no caso de seus estudantes artistas, sua forte influência também em seu trabalho (ROLNIK, 2006, p.20).

 

Compreendemos que esta prática desencadeia processos psicológicos nem sempre verbalizados. Clark foi mestre do cuidado de si por fazer de sua arte um processo ativo de descoberta de si e do outro. Em a Estruturação do Self, a artista transforma sua prática em um exercício contínuo e personalizado de uma experiência com fronteiras terapêuticas. A aproximação entre o termo estudado por Foucault e a medicina se deu com a therapeúein heautón [5], prática na qual um grupo de filósofos cuidava da alma de seus discípulos da maneira em que os médicos cuidam do corpo.

Fica evidente, então, que os desassossegos da alma são também inquietudes físicas. Na prática de sua pesquisa na Sorbonne, eles foram reivindicados pelo corpo vibrátil [6] dos estudantes envolvidos, dissolvendo seus territórios, repertórios e hábitos. Deste modo, o exorcismo afetivo [7] da artista brasileira conecta-se com a via negativa de Jerzy Grotowski: parte de seu treinamento que erradica os bloqueios do ator, a partir de um rígido processo de reinvenção do sujeito, rompendo com sua máscara cotidiana.

Interessante notar que, ao mesmo tempo em que Grotowski propõe a confrontação com o mito, relativizando nossas raízes à luz da experiência teatral, Clark pensa o artista como indutor e canalizador de experiências, e a arte como um “ritual sem mito que permite ao participante descobrir e recompor sua própria realidade, física e psíquica” [8]. Em ambos, as ações estão absolutamente ligadas às memórias pessoais, sendo o processo artístico uma redescoberta de si mesmo a partir de uma corporeidade ancestral que nos aproxima do rito.

Suas técnicas experimentais de si têm mais relação com a inquietude do ser do que com alguma “verdade divina”. Ambos artistas pensaram o desassossego a partir de um caminho sólido e sistemático de exercícios de treinamento. A luta para sair dos caminhos coletivos, envolve o “encontro com divindades” a partir do transe psicofísico.

Distante de uma experiência narcisista de si, a investigação de Foucault consiste em uma prática social para o melhor viver. A urgência da pedagogia teatral encontra-se como ética de aprendizagem e de transformação do ser na sociedade e as propostas de Lygia Clark podem ser de grande valia para esta linha de pensamento. Denis Guénoun (2007), ao refletir sobre a necessidade do teatro, recorda que ao mesmo tempo em que as salas estão vazias, brotam pelas ruas inúmeros grupos interessados na prática cênica. Isso acontece devido à necessária tomada de consciência de si na qual o processo de formação do ator é protagonista.

Armando Sérgio da Silva (2002), recorda que as provocações são, para o artista, uma espécie de dado incompleto, um quebra-cabeça, um jogo que exige dele o uso da imaginação transformadora. Incitado por sensações, este usa-o para tornar concreto o estímulo, sempre de forma pessoal e, consequentemente, única. A partir deste pensamento, as vivências de Clark devem tomar parte da procura pedagógica de estímulos para o ator que desenvolvam sua criatividade, ativem suas fantasias por meio da abertura do corpo e promovam o encontro de sua linguagem.

É sabido que os seres assumem identidades e valores que lhe couberam apenas pela moral, ou ainda pelo mercado e pela grande mídia. O arcabouço teórico aqui refletido vai de encontro a este assujeitamento, pensando à prática artística em suas últimas consequências, a partir de processos criativos catalisadores de experiências e desmistificações. Em sua trajetória, Lygia Clark, desobjetificou a obra de arte, garantindo-lhe o caráter de ato de reinvenção de si e do mundo.

 

Há muito a obra para mim é cada vez menos importante e o recriar-se através dela é que é o essencial (CLARK apud CARNEIRO, 2004, p.21).

 

O suporte agora é o corpo, e o artista um propositor de percepções transformadoras. Este corpo encontra-se erotizado [9], em permanente processo, e objeto de sua própria sensação, unindo-se com a consciência em um ato total [10]. Portanto, a experiência psicofísica do atuante não se separa de sua história em momento algum, pois nesta linha de investigação, não existe fronteiras entre vida e arte – pelo contrário, as vivências do ator potencializam sua obra.

O treinamento, portanto, visto como ato total, envolve a pesquisa das possibilidades do próprio organismo para liberar a resistência do corpo e mente do artista. Em suma, a obra de Lygia Clark pode ser vista como proposta performática que dialoga com a cena e colabora para a dissolução do mercado das artes como entendemos hoje: abalando tanto o museu e sua imobilidade contemplativa, quanto o teatro e sua forma de apresentação restrita a um produto final. Contra as hierarquias cristalizadas no mundo da arte, Clark encontra o caminho do exercício experimental da vida.

 

Notas

[1] ICLE, op. cit., pág. 2.

[2] Michel Foucault é conhecido por seu pensamento crítico das relações de poder. O filósofo analisa os efeitos de dominação destas relações sobre nossos corpos, perpassando pelas formas de força e disciplina. Para resistir à domestificação do corpo mente, a fase final de sua investigação propõe o exercício e o governo de si como prática experimental da liberdade, ultrapassando as convenções estabelecidas por meio de uma estética da existência.

[3] Podemos considerar a série Nostalgia do Corpo inaugural de sua fase sensorial. A partir dela, não houve regresso às propostas anteriores. Interessava agora a consciência de si através do corpo, por meio da redescoberta dos sentidos na interação com objetos sensoriais. O termo nostalgia fora utilizado por indicar saudade, e este conjunto de obras fomentaria um possível retorno ao corpo perdido.

[4] Forma de Lygia Clark nomear suas aulas, relacionadas às sessões terapêuticas.

[5] O pensador francês cita Epicuro: “todo homem, noite e dia, e ao longo de toda a sua vida, deve ocupar-se (therapeúein) com a própria alma(…) para ninguém é demasiado cedo nem demasiado tarde para assegurar a saúde da alma (FOUCAULT, 2006, págs.12-13)”. Ou seja, therapeúein refere-se aos cuidados médicos e filosóficos da alma.

[6] Termo empregado por Suely Rolnik que sugere a apropriação, pelo corpo, das forças que o afetam a partir de suas micropercepções. Este corpo mobiliza a potência vibrátil do sensível em sua direção, abarcando a tanto a memória e suas experiências fecundas, como também seus traumas e fantasmas.

[7] O exorcismo afetivo de Lygia visava à emancipação da imaginação criadora: “O corpo vibrátil é habitado por fantasmas que o assombram. Como sob o efeito de uma possessão, estes tendem a dominar a relação com o mundo, interceptando a autonomia da potência poética. Para liberar esta potência é preciso portanto exorcizá-los (ROLNIK, 2006, pág.16)”.

[8] CARNEIRO, 2004, passim.

[9] Esta afirmação evoca o prazer do contato com o próprio corpo a partir do cuidado de si. 

[10] MOTTA LIMA, 2010, passim.

 

Bibliografia

CARNEIRO, Beatriz Scigliano. Relâmpagos com Claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo: Imaginário – Fapesp, 2004.

FLASZEN, Ludwik. GROTOWSKI, Jerzy. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva, 2007

FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. São Paulo: WMF, 2011.

_______. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

GUÉNOUN, Denis. O Teatro é Necessário? São Paulo: Perspectiva, 2007.

ICLE, Gilberto. Pedagogia Teatral como cuidado de si: problematizações na companhia de Foucault e Stanislavski. Rio de Janeiro: ANPED, 2007.

MOTTA LIMA, Tatiana. Experimentar a memória, ou experimentar-se na memória: apontamentos sobre a noção de memória no percurso artístico de Jerzy Grotowski a partir de reflexões sobre O Príncipe constante, espetáculo de 1965, e The Letter, Action do Workcenter iniciada em 2005. Sala Preta (USP), v. 9, p. 159, 2010.

POTY, Vanja. O Processo Criativo de Eugênio Barba; condutas ritualizadas de comunicação na obra “O Sonho de Andersen” do Odin Teatret. Dissertação. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica. PUC/SP, São Paulo, 2010.

ROLNIK, Suely. (Org.). Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006.

SILVA, Armando Sérgio. Os Estímulos do Ator. Revista Sala Preta, SP, v. 1, .no. 2, 2002.

 

 

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