As Máquinas Estão Presentes: Notas sobre a Corporalidade com as Telas

 

O que nossa inteligência apreende de maneira vaga

quando escutamos uma narrativa é registrado de forma duradoura

em nosso corpo se nos tornamos atores.

— Robert Jaulin, La Mort de Sara (1971) [1]

 

A presença é um fenômeno complexo, variável, com explicação pouco palpável, pois é individual e transcorre no tempo. É o estado como nos colocamos no aqui e agora da experiência, a partir de nossa corporalidade. Quando dada ao significado, a presença não pode ser traduzida em uma só forma de experiência do agora. Sua própria raiz, calcada na unicidade das variáveis espaço-tempo, é um princípio de transformação constante, tão frágil e movediço à palavra quanto absoluto e fundacional para a consciência, a partir do corpo que age.

Minha perspectiva sobre geração de presença em experiências do agora, seja em modos das artes da performance, nos ritos ou em performatividades humano-máquina, é voltada para a expressividade e parte de um lugar específico e interdisciplinar em sua composição: a relação entre corporalidade e tecnologia.

Nessa perspectiva, a produção de presença acontece em diferentes modos, que operam a partir de diferentes técnicas e seus aparatos. Ela é singular em cada indivíduo, e depende de sua sensibilidade combinada ao domínio de ferramentas para atingir certos estados de presença.

Agora que estamos em um dilúvio informacional – dado como uma Infocalipse já anteriormente em curso –, destacado por pensadores das ciências cognitivas, vejo um complexo campo de fertilidade de modos de presença [2] que antes tinham lugares somente na expressão artística de vanguarda, experimental ou de experiências imersivas.

Esses modos são de certa forma “impostos” a todos como via de comunicação e sobrevivência, trazendo novos estados de presença com consequências ainda sem medida para a cognição humana. Excesso, velocidade e obsolescência do corpo são visíveis e são consequência de uma revolução industrial, a Revolução 4.0, que significa toda uma troca da malha produtiva, baseada na robótica, na inteligência artificial e na realidade estendida, atingindo a vida de todos.

No dilúvio de virtualidades em que vivemos, a questão que quero responder é: onde está o corpo?

Essa questão é o principal aspecto do paradoxo da presença, que reconheço ao longo da prática reflexiva como performer e diretora no universo das tecnologias de produção de imagens técnicas. Falo da tecnologia não só como materialidade, mas como linguagem e sistema de pensamento, como cultura que molda nossa consciência.

A corporalidade compõe e é composta por toda a substância que dá sentido à nossa experiência. É através do corpo que experienciamos a realidade e também as virtualidades às quais temos acesso. Com tantas virtualidades, concebidas e lançadas de inúmeras frentes narrativas, com tantos imaginários e fatos difíceis de assimilar, estamos de fato vivendo as experiências nas quais colocamos nossa atenção? Nesse fluxo ininterrupto de dados, quais espaços de autonomia e a individuação são dados à sua legitimidade e expressão?

Primeiro é fundamental entender de onde vêm as máquinas, a base material da tecnologia. Desde os tempos do cinematógrafo, a via de criação de máquinas é a indústria, que dita as possibilidades de ação e criação. Raros são os artistas-inventores que conseguem criar as próprias máquinas para expressar as próprias poéticas.

Na indústria, tanto na relação do corpo como instrumento laboral quanto na criação de engines de entretenimento, o que determina a experiência vem muito mais do corpo sendo moldado pelos recursos da máquina do que dá máquina sendo desenhada para a corporalidade.

Tanto é assim que importantes pensadores e criadores de sistemas sobre o corpo e da expressividade do movimento, como Rudolph Laban [3], começam a desenvolver suas técnicas a partir dos impactos do trabalho industrial na corporalidade e na gestualidade.

Nesse contexto, o que ainda é mais radical e que me interessa tratar, considerando o campo da performance para telas, com a presença como fenômeno central, é a relação com o espaço-tempo de intimidade e de individuação de cada um de nós, frente à entrada de alguns, alguns tantos e até milhares de pessoas em nossas casas por vias virtuais.

Por um lado, estamos olhando para nós mesmos como sujeitos em nossas casas-cavernas, ampliando a expressividade através da conexão coletiva, e temos oportunidade de sair das “bolhas” e de autorrepresentações ilusórias do consumismo e individualismo desenfreados.

Por outro, muitos vivemos a pressão do “Fique em casa” mas se mantenha conectado, ativo e em alta performance. “Fique em casa, vamos até aí.” Vamos nos espelhar em espaços que são telas horizontais e verticais; e vamos nos conectar “em tempo real”, em um novo formato que rapidamente se disseminou como forma de promover nossos pensamentos e iniciativas que podem ter alguma relevância na vida das pessoas. Vamos conversar entre amigos, colegas de trabalho, cada um na sua casa, mas vamos convidar muita gente, divulgar e esperar questões para pensarmos juntos.

Falo da tela que todos temos, agora para todas as tarefas possíveis, e das situações de representada intimidade que temos que nos submeter. Só que agora, nossas ações e pensamentos entram em um fluxo potencialmente ad infinitum entre todos nós e para todos nós.

A força dessa circunstância histórica vem com muita criatividade, principalmente do campo da dança, que há muito já usava as telas para compartilhar pequenos trechos coreográficos ou improvisados. Também o campo das artes imersivas como realidade virtual e aumentada vem trazendo inúmeras soluções para o ao vivo e para a presença de conexão virtual, criando avatares sintéticos para encontros profissionais e grandes espetáculos de música, game ou outras experiências ainda a serem descobertas [4].

Sendo assim, para analisar alguns aspectos da presença no cenário atual, da circunstância de todos juntos pelas telas que nos conectam ao dilúvio informacional, vou partir de um repertório de uso criativo e pessoal das tecnologias de imagens em movimento.

Com esse universo em investigação, lanço a hipótese da alterperformance, lugar do qual também resisto buscando técnicas e poéticas pelo resgate do corpo, da presença e da autonomia através da expressão da subjetividade.

Anoto alguns marcos da produção de presença autorreferencial no audiovisual, onde o hibridismo entre performatividade e narrativas autorreferenciais são um fio condutor histórico-narrativo. É a partir da abordagem do audiovisual autorreferencial, da performance multimídia, intermídia, que vislumbro as possibilidades contemporâneas como estímulos a poéticas potentes. As veias tecnológicas da subjetividade expressiva sempre existiram. Desde a pintura rupestre, é fato o uso de artefatos disponíveis à corporalidade como uma fonte de materialização da expressividade. A pintura, a dança, o rito são expressões de descobertas de Si em um movimento coletivo de criação.

Com o recorte das imagens em movimento, também eis aqui uma forma de dizer que há performatividade para as telas desde o início do cinema; e há artistas performando para as telas em todos os momentos desta História que hoje invade nosso espaço pessoal e nos coloca em ação de indivíduo para a coletividade como um ato cotidiano.

 

Repertório como Evidência da Alterperformance: Modalidades de Presença

Em 1895, entre os primeiros registros do cinematógrafo, está o filme Le Dejeune du bebé, onde Auguste Lumière, sua esposa e sua filha são filmados por seu irmão Louis em um café da manhã. Os primeiros performers do cinematógrafo são os próprios industriais que o criaram.

Esse registro é precursor do gênero do home movie, que nas décadas iniciais do século XX é um privilégio da aristocracia. O uso massivo de filmes, câmeras e projetores familiares só acontece a partir dos anos 1920, quando empresas como Kodak e Bell and Howell promovem os ritos familiares como “motivos” para as famílias filmarem com suas câmeras e películas 8mm e 16mm [5].

O filme familiar tinha funções culturais, pois era uma forma de retenção da história social de uma família, seu modelo moral e de vida. Os filmes retratavam ritos sociais, momentos íntimos e monumentais como nascimento, casamento, festas em família, ritos espirituais (bar mitzvah e primeira comunhão) e inclusive funerais. Os ritos são, então, “embalsamados” na película.

 

Cinema Experimental Pessoal: Comunidades de Experimentação

Com as mesmas câmeras 16mm e 8mm usadas para os home movies, grupos de artistas começam a fundar o cinema experimental. Na década de 1920, os movimentos da primeira vanguarda representam as primeiras provas da expressão subjetiva na composição das imagens em movimento.

A performatividade da vanguarda com aparatos de imagens técnicas acontece na fotografia e no cinema experimental pessoal. Entre os artistas que criaram cinematografias estão Marcel Duchamp, Fernand Léger, Hans Richter, Salvador Dalí, Jean Cocteau. Muitas vezes financiados por mecenas e com a participação de amigos, eles filmavam em seus estúdios, criando poéticas de imagens descontínuas e abstratas para simulações do inconsciente e de geometrias moventes.

O filme Le Sang d’un Poète (1930), de Jean Cocteau, é um exemplo. É uma obra autorreferencial em seu ambiente de intimidade e na criação de uma simbologia de seus duplos, como a estátua na qual o próprio poeta transforma-se, em uma cena de seus devaneios.

Man Ray também usava essa forma mais artesanal de cinema para filmar seu atelier, empregando elementos reais, esculturas e objetos em composição com as grafias da luz que neles incide. Os efeitos de trucagem e iluminação como fusões e imagem do negativo criavam e também ampliavam as possibilidades de experimentação sobre a percepção e as camadas do Self criador.

Nos anos 1940, surge Maya Deren para falar do corpo, dos sonhos e dos ritos que os colonizadores da indústria das imagens filmavam somente observando. Ela entra na corporalidade com a câmera e na ritualidade com sua percepção ímpar dos movimentos do transe e do inconsciente. Filha de mãe musicista e pai psiquiatra, Maya Deren tinha profundas relações com o transe e o ritual, o que parece ter se iniciado em 1941, quando era assistente pessoal da coreógrafa de dança afro e antropóloga Katherine Dunham. Em seu filme Malhas da Tarde (1943), mais uma vez os duplos voltam a aparecer. Os duplos, o espelho e outros símbolos fundem-se a um protagonismo da relação corpo-câmera, impactando a cena do cinema experimental. A simbologia é muito presente em sua obra. O espelho, por exemplo, é usado em sua acepção grega, como símbolo da feminilidade e da circunscrição do mundo feminino em volta de si mesmo.

Não menos significativos e fundamentais para entender a história da relação entre corporalidade e tecnologia são suas obras que originam o cinema corporal, precursoras da videodança: The Very Eye of Night (1952-1955) e Ritual in Transfigured Time (1946). Sua obra marca o início da segunda vanguarda, quando as câmeras 16mm ainda eram acessíveis a cineastas como Stan Brakhage e Jonas Mekas. Ambos são autores de obras autorreferenciais que incorporam e reinventam a poesia através do olhar ao cotidiano, ao corpo em cena, e com narrativas visuais baseadas em gêneros da literatura em primeira pessoa.

Mekas é certamente o realizador de filmes pessoais mais relevante da história. Ele começa filmando nos anos 1940, com uma Bolex 16mm. Sua obra contempla o material cotidiano, incluindo registros de happenings e performances de outros artistas como Salvador Dalí e o grupo Fluxus, com os quais teve contato durante sua trajetória de ativismo cultural.

Mekas também fazia performances ao vivo. Em uma delas tive o privilégio de estar presente. Aconteceu no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires [6], em 2006. Na performance, ele estava em cena com uma câmera em punho, captando imagens ao vivo da bailarina de Butoh com quem performava. Entre o corpo de Mekas e sua câmera e o corpo da bailarina, a dança intermídia acontecia. Foi uma das primeiras experiências de um futuro híbrido que hoje vemos em inúmeros espetáculos, como no teatro ao vivo [7]. Como sempre, o que lá começava disparando a potência de uma revolução de linguagem, hoje é uma escolha cênica ou um recurso estilístico. 

Mekas seguiu fiel a um olhar poético da vida cotidiana até falecer, em 2019. Um de seus últimos feitos foi o monumental 365 Day Project [8], a partir do qual monta um curta-metragem por dia, contando sua vida durante um ano: imagens cotidianas de uma mente relevante.

Outro marco em relação à performatividade do cineasta é o impactante e não menos épico Di-Glauber (1977), de Glauber Rocha. As imagens são do cineasta e de Antônio Pitanga em seu apartamento. Com sua voz off e imagens do enterro de Di Cavalcanti, Glauber dança, poetisa, revela e enfrenta a realidade da despedida, no rito do velório.

 

O Vídeo como Espelho da Intimidade Narcísica

Depois do filme 16mm, o vídeo e seus formatos de videoarte e videoinstalação são fruto da nova transformação tecnológica que muda a forma de os artistas performarem para as câmeras. Agora o fazem de forma muito mais voltada à própria personalidade, às expressões de identidade e com uma tendência ao narcisismo. Duração prolongada da fita magnética e o fato de o realizador poder ver a própria gravação, em um feedback instantâneo do registro, catalisam essas tendências.

If Every Girl Had a Diary (1989), de Sadie Benning, é um exemplo. Aliás, toda a obra de Benning é marcante nessa relação corpo-espelho-narciso-identidade. Com uma câmera Pixelvision, também fabricada para o mercado doméstico, ela cria uma espécie de confissão da adolescente que realizará uma série de vídeos pessoais sobre suas várias “personas performáticas”, que nos confundem pois não sabemos até que ponto suas imagens são íntimas ou interpretações.

Os cenários são espaços privados, como seu próprio quarto. E sua narrativa é sua forma de definir-se a Si mesma. No espaço confinado de seu mundo privado, falando de conflitos e experiências cotidianas, Benning usa a câmera como uma ferramenta confidente.

Com o vídeo, a autorrepresentação torna-se mais vinculada a territórios da intimidade, à reflexividade e à espacialidade. Realizadores renomados como Bill Viola, Vito Acconci e Pipilotti Rist começam a produzir obras nas quais a câmera volta-se para suas inquietações, em instalações e vídeos de longa duração.

Esses realizadores exploram a mudança de duração do vídeo, que leva a uma possibilidade de utilização de planos sequência, sem cortes. O presente do registro confunde-se com o presente do espectador, gerando uma impressão de ao vivo. Tal atitude desses realizadores tem como antecedentes os happenings, a body art e performances dos anos 1960, com a diferença de que o artista-realizador é o performer confinado a um espaço, portando uma câmera e mantendo o corpo protegido.

 

Filmes de Processo e Confissão – Filmes-Dispositivo

Seguindo o cinema autoral, com técnicas e padrões narrativos, documentaristas passam a fortalecer o cenário da autorreferencialidade e performatividade a partir da década de 1990.

Um filme bastante emblemático dessa geração é o documentário Berlim 10/90 (1990), de Robert Kramer. A utilização do plano sequência entra como uma premissa temporal para o cenário confessional no qual Kramer se autorregistra. Em um quarto de hotel, ele fala durante uma hora. No cenário, uma televisão com imagens de Berlim que ele mesmo registrou. O dispositivo espaço temporal de sua confissão gera a força pessoal e política da performance, que trata de sua memória sobre a cidade. É um filme-processo, confessional e, portanto, performativo. O corpo do cineasta é submetido à pressão da gravação-confissão.

No Brasil, dois documentários destacam-se como precursores no uso confessional e processual dos dispositivos autorreferenciais. Um Passaporte Húngaro (2003), de Sandra Kogut, e 33 (2004), de Kiko Goiffman. Sandra Kogut, cineasta brasileira, neta de imigrantes europeus, faz um filme sobre sua jornada para conseguir seu passaporte húngaro. Ela é ao mesmo tempo personagem do olhar e da ação na história. Kiko Goiffman, ao completar 33 anos, faz uma espécie de videoconfissão sobre seu processo de busca da mãe biológica. À temática da adoção é somada sua atitude de investigador, e o conflito pessoal aflora na forma detetivesca do film noir.

 

Ponto de Virada – A Revolução Digital Está Presente e o Público Está On-line

Agora, depois de entender um pouco de expressividades autorreferenciais com câmeras de cinema e vídeo, rememore você, caro leitor: depois dessa longa trajetória de um pouco mais de um século de mudanças na relação do corpo com as câmeras e com as possibilidades de colocar-se em cena, o que de narrativas semelhantes você tem visto?

O contexto é: em menos de vinte anos, a partir dos anos 2000, inúmeros formatos de câmeras portáteis digitais surgem. E mais, as imagens de alta qualidade vão para o celular de uso pessoal.

Essas narrativas de presença e entrega autorreferenciais e performativas, que antes eram tão trabalhosas e elaboradas, diluem-se entre milhões de imagens pessoais produzidas diariamente.

O público agora é realizador e performer das próprias realidades e das tantas ilusões de virtualidades estimuladas. A adaptação do corpo às várias mudanças tecnológicas é tão abrupta e multiplicada como as reações do público à cultura das personalidades e da intimidade constantemente anunciada.

Os realizadores descobrem as possibilidades de programação e de renderização [9] ao vivo e em tempo real, criando o universo das performances audiovisuais ao vivo. Os realizadores tornam-se performers de códigos e de imagens e sons ao vivo, e em tempo real.

 

Viver a Performance das Telas ao Vivo

Nesse processo, já quando eu investigava a performatividade ao vivo, em performances audiovisuais e intermídia, me coloquei nas redes com um dispositivo semelhante ao dos cineastas documentaristas do início dos anos 2000. Como eles, criei uma autoficção. No meu caso, eu queria explorar a relação de construção de personagem com a reação do público nas redes. Isso começa em 2013, quando crio uma história autoficcional para #LiveLivingPerformanceProject [10], um projeto de performances ao vivo cujas narrativas fui moldando pela interação do público em redes sociais.

O performar para as telas com uma autoficção na qual usava imagens reais para contar a história de díade ficcional alterego (Lícia) e de heterônimo literário (Madame C. B.) era uma forma de pesquisar como o público assimilava a autoexposição performativa nas redes sociais.

A grande surpresa, ainda em 2013, quando as personagens fakes ainda não eram notícia, foi deparar-me com a total crença do público em relação à virtualidade que eu representava. Usei o princípio de identificação do público com a personagem, inerente ao dispositivo técnico cinematográfico, que criou o Star System. O primeiro plano, os detalhes da corporalidade, dos gestos e da ação, levavam a uma impressão de realidade somada ao dispositivo de narratividade instantânea, diária e em episódios próprios do sistema performativo das redes sociais.

O público não só ajudava a criar a personagem, como concebia em si mesmo um subtexto com a nítida impressão de que a representação seria realidade. Lícia, meu alterego, era uma cortesã contemporânea, libertária e misteriosa. Quem contava a sua história era Madame C. Bécamier, uma escritora que buscou mulheres que usavam imagens de seu corpo nas redes para atrair clientes. O tema despertava muita curiosidade e o fato de a narrativa levantar questões do universo feminista para tratar da liberdade da mulher construiu muitos diálogos esclarecedores.

Nas redes e nas performances ao vivo, o dispositivo do projeto era ir criando as histórias com imagens, performando a autoficção e improvisando em cima das reações do público. O projeto mudou muito ao longo de três anos e das mais de quinze apresentações que fiz no Brasil e fora do país.

As descobertas do projeto no que diz respeito à relação corpo-imagem-público em contexto virtual e presencial me levam a seguir pesquisando o tema da presença. Com muitas outras questões sobre virtualidades, obsolescência do corpo e dos movimentos somadas à ilusão do público em relação às imagens, chego a uma forma de nomear esse campo muito particular de realização de performances para a imagem, e de imagens de nossa performatividade que ainda estão em mutações e continuam a gerar novas presenças poéticas.

 

“Não Consigo Tirar os Olhos da Tela”

Para organizar experiências a partir do corpo, em uma realidade de sistemas computacionais em rede que a todos conecta, é preciso entender que a presença assume diferentes e mutáveis papéis de ordem tanto sensível quanto comunicacional. As virtualidades presentes são muitas, e acabam diluindo universos.

O corpo, nosso único intransferível instrumento de vida e sensibilidade, está soterrado em um dilúvio de informações. Estamos cercados e viciados em dispositivos pessoais que imobilizam o corpo à condição de reação por gestos de pinça e de olhos bem abertos que só percorrem fluxos de dígitos e imagem. O que deveria ser uma fonte utilitária e de conhecimento, hoje sequestra e manipula o tempo, divide a atenção e fragmenta a presença até torná-la uma utopia dos momentos de prazer. Os efeitos são o distanciamento da subjetividade, a alienação da autonomia e da individuação frente às enxurradas de impressões sobre a realidade.

Com a pandemia de COVID-19, a indústria acelera, mercados novos surgem, corpos são moldados em altíssima velocidade e em fluxo imparável. O marketing da alta performance chega até a intimidade. Não somos criativos como eram os cineastas das vanguardas, que queriam recuperar o estatuto de documento da imagem e para isso usaram seus corpos como motivo do registro. Agora somos forçados a entrar em um fluxo de autorrepresentação para inúmeros formatos digitais que circulam como um marketing pessoal e de produção.

A situação é também um cenário promissor para a arte e para novas formas de aproximar o corpo do público à cena. Cito Mãe Coragem, de Bertold Brecht, performada ao vivo por Beth Coelho, no portal #fiquemcasacomosesc [11]. A intimidade com a atriz em cena, a pulsão de estar dentro da cena, em um plano sequência ao vivo, me lembra de Berlim 10/90, de Kramer. Só que agora temos uma atuação extraordinária, tensa, densa, dentro da casa da atriz e em tempo real. A câmera se aproxima, fica com ela; assim como se afasta e observa seu silêncio. E o público ali, milhares de pessoas, em tempo real, escrevendo suas reações, em um chat. Em uma das declarações do público, alguém descreve: não consigo tirar os olhos da tela.

Eis a questão: estamos há um tempo sem conseguir tirar os olhos da tela. Nessa metáfora, todo o resto do corpo e os sentidos de nossa percepção ficam obsoletos. O acontecimento em tempo real é pulsante, é novidade, é uma sucessão de surpresas. Mas não estamos lá, inteiramente lá. Temos nossa atenção dividida com o espaço onde estamos: nossa casa e a própria tela que suporta inúmeras outras janelas.

A intimidade performada agora torna-se ainda mais ampla e movediça. Está em todas as cavernas, e a única caverna que a todos conecta é a mesma onde os “amos” da informação e da ilusão atuam. Volto a perguntar: e onde está o corpo? E talvez seja mais adequado agregar outra questão: como a presença é experienciada? Ou ainda, com mais direção: onde está o corpo no momento em que reconheço que as tecnologias moldam nossa corporalidade e produzem modos de presença?

 

Alterperformance: Tecnologias do Eu e a Corporalidade do Digital Self

A resposta vem como uma hipótese em transcurso a partir do fio condutor deste texto, que é a corporalidade como realidade de onde a ação criativa dispara. A corporalidade que é movimento e materialização da expressão ao mesmo tempo. Essa corporalidade manipula e é moldada por seus artefatos como objetos de produção de presença.

Eis aí uma particularidade distintiva da corporalidade com os artefatos técnicos, especificamente com tecnologias das imagens, como forma de produção de presença. Produz-se uma performatividade e movimentos que são para as telas e moldados pelas telas, e não para a presença do público, em sensorialidade espaço-temporal compartilhada.

Ao reconhecer esse universo, a ele dei um nome: alterperformance. Trata-se de um outro campo (alter) de práticas performativas, nas quais o corpo e tecnologia formam um único dispositivo de sistemas indissociáveis. Nesse campo, o corpo precisa assimilar e agir para operar a tecnologia que determina o seu comportamento e expressividade na ação.

Por ser autorreferencial, íntima e uma ferramenta de sobrevivência e expressão social, a tela, em seus diferentes momentos históricos e aparatos de ação e reconhecimento de Si, é pensada como Tecnologia do Eu, em sua dimensão dependente de aspectos da presença como autocuidado ou Cuidado de Si.

Falo da Tecnologia do Eu, conceito formulado por Michel Foucault, na última etapa de seu pensamento, voltado à subjetividade. O autor trata de aparatos e práticas subjetivas de Cuidado de Si como a confissão, o diário pessoal, e o espelho. São formas históricas da relação entre sujeito e verdade, pela noção de Inquietude ou Cuidado de Si. O “Conhece-te a ti mesmo e encontra a cura de Si”, preceito da vida filosófica e moral antigas que fundou conjuntos de práticas de relação do ser humano consigo mesmo, agora é a única saída. Trago seu pensamento para o contexto do uso pessoal e cotidiano, logo experimental (nas artes), das tecnologias de imagens em movimento como Tecnologias do Eu, pois reconheço a relação com a performatividade conduzindo o uso criativo dos dispositivos técnicos.

Agir para a câmera, que é um aparato também de escuta de suas próprias verdades, amplia a interpretação do comportamento humano, especificamente do Self e de sua presença expressiva a partir da auto-observação e da cognição próprias aos usos de ferramentas tecnológicas.

A corporalidade compõe, então, o artefato como próprio objeto de imaginação, como o Duplo [12] que dilata o corpo e dispara sua ação. Essa dimensão do artefato para a corporalidade gera um biofeedback [13], metáfora que uso para entendermos a ação-reação inerente às relações de presença entre corpo e suas máquinas de agir e pensar, tanto como performatividade quanto como representação.

Na dimensão da máquina como espelho e mecanismo de produção de presença de outra corporalidade e de outra performatividade, e ainda de virtualidades, as telas são como Duplos. A virtualidade simboliza um mundo de informação e imagens onde estão todos conectados e nutrindo uns aos outros com informações pessoais. Duplo como elemento que dilata o corpo em direção aos imaginários (virtualidades) que buscamos “encarnar” nas cenas da arte e agora da vida.

Acrescentar aqui o pensamento sobre o Duplo Digital, pensado por Steve Dixon [14] a partir da performance digital, amplia essa interpretação para pensar como o corpo carrega a mensagem da máquina que chega para dilatar a percepção de nossas tensões imaginárias em relação à tecnologia. A virtualidade encarnada na máquina vai além do valor utilitário por nós criado.

No universo da alterperformance, as “Tecnologias do Eu” assumem papel de Duplos. E o performer, assim como o público, formam um só Digital Self [15], que tem as realidades da linguagem digital como um aspecto inseparável de sua individuação, como uma camada simbólica de sua ação no mundo. 

Quando reconheço as virtualidades inerentes ao Digital Self como resultados da alterperformance, estou relacionando ambos conceitos de Duplo Digital e Tecnologia do Eu com a performatividade do corpo contemporâneo em diversos modos de presença da expressão de Si. Esse corpo navega em um fluxo ininterrupto de comunicação, lugar a partir do qual deve criar sua virtualidade. Seus fluxos de ação são parte de redes de conexão onde somos indivíduos, sujeitos, personas ou simplesmente alvos vulneráveis a manipulações próprias à economia das redes.

Primitivista na noção de Artaud, ainda criativa no Duplo Digital de Steve Dixon, a dimensão mágica do Self hoje tem o lado do risco, pois o Digital Self da maioria dos indivíduos-usuários das redes digitais é jogado sem consciência em um jogo de narrativas bastante distante da realidade.

O que me interessa aqui é pensar que artistas-performers têm o potencial de corporificar o Digital Self como um sujeito autônomo, criativo e consciente das ações na sua própria rede de virtualidades. A Tecnologia do Eu, para ele vai além do mecanismo com funcionamento e linguagem massificados, pois é a raiz da potência.

A boa notícia é que a alterperformance existe e acontece nos campos do audiovisual ao vivo, da performance intermídia, da performance multimídia e de muitos eventos ao vivo na internet [16]. É um universo de artistas-artífices que experimentam e preparam novos modos de presença nos quais nossa espécie age para e junto às máquinas que estão presentes. E estando presentes com corpo e nas virtualidades de artistas-inventores que as usam como Tecnologias do Eu, elas podem ser artifícios para poéticas de expressão de Si, transformação e questionamento de seus usos.

 

NOTAS

[1] Antropólogo citado por Jérôme Souty (2011). A frase faz referência à sua iniciação ritual.

[2] Em minha tese, O Princípio das Modalidades de Presença Poética, trabalho o conceito de modalidades de presença, relacionando períodos de mudança na presença expressiva com transformações técnicas e na linguagem de diferentes tecnologias das imagens. A partir das tecnologias, avalio a corporalidade e a subjetividade. Ver em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-22092016-144544/pt-br.php>.

[3] O sistema Laban é baseado na observação das fases e fatores do movimento. Uma das suas motivações iniciais foi perceber o esforço repetitivo e a exaustão corporal de mulheres trabalhadoras em fábricas no período da Segunda Guerra Mundial.

[4] Esclareço: em minha metodologia de trabalho prático-teórica parto de experiências de performatividade em audiovisual que se aproximam das pesquisas práticas e realizações nas quais sou criadora, performer e pesquisadora. Já fiz vários trabalhos nesse campo, a partir de pesquisa de pós-doutorado em andamento: videodança (Talante, Maska e CorpoCornoCopia), dança intermídia (Aural Genesis Live Machina) e performance em realidade aumentada (Corpo ARtifício), mas ainda considero um universo com muitas potencialidades e tópicos à parte.

[5] Em 1923, surge o primeiro formato de cinema para consumo não profissional e massivo: o Cine-Kodak 16mm, com câmera e projetor inclusos. Cf. em Patricia Zimmerman, Reel Families: A Social History of Amateur Film.

[6] Ver em: <https://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/5-2277-2006-04-12.html>. Acessado em 03 de junho de 2020.

[7] Comento ao final do texto sobre as obras de teatro exibidas no circuito @sescaovivo, particularmente sobre Mãe Coragem, dirigida por Daniela Thomas, com a atuação de Beth Coelho.

[8] Ver em: <http://jonasmekas.com/365/month.php?month=1>. Acessado em 03 de junho de 2020.

[9] Processamento de informações das imagens em tempo real. A edição de imagens ao vivo é possível com softwares modulares e generativos, e inúmeros outros tipos de programação para imagens e sons ao vivo.

[10] Ver informações em: <http://carolinaberger.com.br/live-living-performance-project/>; e em minha tese, onde explico o processo de realização.

[11] Ver o espetáculo em: <https://www.youtube.com/watch?v=5pvo2EBysDM&has_verified=1>. O evento ao vivo foi no dia 4 de junho de 2020, às 21 horas, e faz parte de uma programação de obras de teatro ao vivo.

[12] Refiro-me ao conceito de Antonin Artaud trabalhado em seu livro O Teatro e o seu Duplo.

[13] Como é nomeado mecanismo de resposta da máquina com informações sobre o corpo e vice-versa, nas interfaces de presença ou sistemas de biofeedback.

[14] Cf. Steve Dixon, Digital Performance: a History of New Media in Theater, Dance, Performance Art, and Instalation.

[15] Visualizo o Digital Self na prática e, para criar antídotos ao seu excesso de virtualidades e à obsolescência do corpo criativo, crio uma plataforma de criação e ensino em http://carolinaberger.com.br/medialab/ e #DigitalSelfPresenceLab, que hoje amplio com o projeto de canal de divulgação científica no YouTube e mentorias @labpresenca.

[16] Para falar sobre alterperformance, precisaria de um artigo específico. Mas cito aqui alguns artistas e grupos que navegam com potência por esse universo cujas ramificações são muitas e abarca performance audiovisual, performance intermídia, teatro e performance multimídia, encenação dramatúrgica ao vivo e dramaturgia digital. Destaco o Grupo Cena 11; o performer solo Gustavo Sol; o artista audiovisual Caio Fazolin, com quem concebi a performance intermídia Aural Genesis Live Machina; o grupo Corpo-máquina; a precursora Lali Krotoszynski; Samira Borovik; a dupla Mirela-Muep, em seus trabalhos com performers e dançarinas; o grupo multinacional Stratofyzica; a companhia VanGrimde Corps Secrets; Daniel Belton, da Good Company Arts; entre muitos outros que pesquiso e com quem mantenho diálogo de pesquisa e criação. 

 

BIBLIOGRAFIA

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Carolina Dias de Almeida Berger é performer, artista intermídia e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP, onde é pesquisadora associada no LabArteMídia. Também é idealizadora e apresentadora do @labpresenca – Laboratório de Experiências do Agora. Mestra em Documentário Cinematográfico pela Universidade del Cine, na Argentina. Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: carolinadiasberger@usp.br

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

BERGER, Carolina Dias de Almeida. “As Máquinas Estão Presentes: Notas sobre a Corporalidade com as Telas”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

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