A Poética do Corpo: Uma Leitura do Trabalho de Angel Vianna

 

Angel Vianna representada na ilustração da artista Veridiana Scarpelli para a sétima edição da eRevista Performatus

 

A arte da performance, liberando o instante à vertigem de emergência de universos ao mesmo tempo estranhos e familiares, tem o mérito de levar ao extremo as implicações dessa extração de dimensões intensivas, atemporais, aespaciais, assignificantes a partir da teia semiótica da cotidianeidade. (GUATTARI, 2000: 114)

 

Tomando a epígrafe como referência, nos debruçamos, neste texto, sobre o trabalho de Angel Vianna, para discutir os ajustamentos semióticos aos quais estamos submetidos, a fim de que, pela possibilidade de chegar ao limite do pensamento – por meio das desestabilizações produzidas pela prática de si proposta por este trabalho –, possamos desajustar os processos impeditivos de outros olhares para mundos possíveis.

Pensar o pensamento foi a tarefa levada a termo pelas questões trazidas por Michel Foucault em sua genealogia do pensamento ocidental, legando-nos, de uma vez por todas, a herança de não podermos mais nos iludirmos com a noção de verdade, origem e fundamento.

Assim, entendemos a contribuição do ato performático: possibilitar, por meio da experiência cognitiva sensorial, o acesso a campos que ultrapassam a compreensão racional de significados.

O ato performático, ao se utilizar de elementos que ousam desconstruir os conjuntos semiotizados impeditivos de apreensão de uma realidade suprassensível, se desdobra na radicalidade da contramão à lógica racionalista que busca no sentido único, no significado datado das coisas do mundo seu suporte para o pensamento. Assim as estratégias performáticas viabilizam a transformação dos processos de arte em forma de vida.

Segundo alguns pesquisadores e coreógrafos, a manifestação artística está associada em geral ao que se entende, no senso comum relativo, da palavra “estética”: uma experiência ligada ao belo como o transcendente, uma observação distanciada que permite um julgamento racional, um juízo de gosto – como Kant propunha, assentado na razão transcendental. Porém, essa regulação limita a compreensão da dimensão crítica que outros filósofos e críticos nos aportaram.

Desse modo, o entendimento no senso comum do termo “estético” distancia e distorce a experiência estética de seu campo de sustentação ontológico, qual seja: a estesia, como condição sensível do corpo que, no seu encontro com o mundo, possibilita a apreensão de campos diferenciais, permitindo desventramentos de mundos.

Podemos conjugar à ideia de performance o nonsense, o paradoxo, o espaço diferencial e, assim, nos aproximarmos de um campo de fluxos longe do senso comum e do bom senso. Estes, o bom senso e o senso comum, segundo Deleuze (1974), só fazem repetir predicados e caminham sempre na mesma direção, buscando a harmonia e o linear.

A partir desta concepção, propomos que o ato performático realiza agenciamentos de semiotização, impedindo que se prenda ao mesmo sistema interpretativo o mesmo invariante de figura de expressão, o que torna obscura e misteriosa a articulação entre conteúdo e expressão, “o caos, ao invés de ser um fator de dissolução absoluta de complexidade, torna-se o portador virtual de uma complexificação infinita” (GUATTARI, 2000: 78), e ainda, “a complexidade, liberada de suas sujeições discursivas significantes, se encarna então em danças maquínicas abstratas, mudas, imóveis e extraordinárias”. (Ibidem: 105)

O que esses autores, Deleuze e Guattari, ao tecerem tais ideias, inauguram é a possibilidade de sair de um modo molar de funcionamento das coisas do mundo para favorecer a captação do campo intensivo, que diz respeito ao modo molecular de funcionamento da vida. Este campo molecular, sutil ao se congelar em uma forma, faz emergir o mundo molar. O performer seria aquele que é capaz de, atravessando o mundo molar, o mundo das formas, captar as forças moleculares e, assim, produzir um campo de afetação em que a experiência estética se compõe pela sensação, campo de imanência, desajustando os espaços codificados, sendo, portanto, sempre inaugural.

Este é o sentido radical de uma estética da imanência: “ela se deseja gesto e não representação, Darstellung e não Vorstellung, processo e não aspecto, contato e não distância.” (DIDI-HUBERMAN, 2003: 143)

Joseph Beuys [1] nos provoca, com sua proposta de campo alargado da arte, que o artista possibilita, por meio de ações, o acesso ao inconsciente enquanto força, permitindo que autor e espectador se comuniquem ao captar as forças e se colocar em ação: viabilizar que o invisível de algo seja percebido.

A corporeidade se compõe de atravessamentos, de informações que se encontram virtualizadas. Antes das formas, retendo a vontade que dirige todo o pensamento, seria possível, por meio das contra-imagens, a produção de diferenciais.

Ao interpelar as forças inconscientes do espectador, não o inconsciente recalcado, mas os vazios – o que se coloca entre ausência de representação de coisa ou imagem e as pulsões –, o artista seria capaz de expressar o caráter imanente das coisas do mundo. Uma ação, portanto, seria o dispositivo capaz de criar imagens inconscientes, indutoras de forças favorecendo a emergência das contra-imagens.

Esses estados se sustentam na atualização de um campo de virtualidades sempre presentes que, como processos subjetivantes, operam através das forças ainda não codificadas, transduzindo-se [2] em formas. Tais forças estão em um campo intensivo como virtualidades atualizadas no processo de construção de mundos a partir da preensão perceptiva. Embora não conscientes ou conscientizáveis, esses virtuais se dão aos sentidos por meio das micropercepções, dos espaços moleculares e vão constituir parte do dialeto de cada um.

Em seu livro A Arte como Linguagem, José Gil (2010) aproxima a experiência estética da produção de mundo e a localiza no despertar do artista e da criança no contato com os existentes. Ele nos diz:

 

Antes da intencionalidade da consciência que pressupõe o objeto dado, existe uma ligação com o mundo, que visa este mundo como mundo animado. Na percepção de uma coisa forma-se sempre um devir-coisa […] [que] está indelevelmente inscrito na percepção que o artista e a criança têm do mundo. Na percepção daquela mesa por Beuys que acha demasiado baixa, como um rafeiro, há um devir-cão da mesa. Não se pode percepcionar sem projetar a vida no mundo. (GIL, 2010: 55)

 

Donald Woods Winnicott, psicanalista inglês (1896-1971) que contribuiu de forma decisiva para uma releitura da psicanálise, enfatiza a importância de se atentar para as experiências primárias do desenvolvimento, onde se localizariam vivências de captação de mundo pelas sensações vividas na corporeidade. Espaço/tempo assignificante em que a comunicação se daria aí, neste vir a ser, na processualidade, neste fluxo intensivo em que o percepcionar está impregnado de uma corporeidade aberta, deiscente.

A potência do corpo se desenvolve sobre um fundo de impotência primeira. Em virtude de sua prematuridade e de sua dependência ao meio exterior, a criança está aberta aos agenciamentos intensivos e é por essa via que nos esforçamos, com os cuidados, para que o corpo do bebê se torne capaz de ter consciência de si e do outro. Podemos constatar, assim, que a fragilidade inicial é uma força de onde o corpo humano retira sua potência, justamente por ser uma forma em formação.

A infância em todos nós preserva seu olhar assignificante sobre o mundo, são campos prediscursivos em que a intensidade que subjaz ao discurso mantém a linguagem viva. A esse intervalo, Foucault (1970) denomina o fora do discurso e nos propõe perceber que é justamente nesse território em que operam as forças – o campo intensivo –, e pela chance de tangenciá-lo, que nos é possível sair de um ajustamento semiótico. Tal ajustamento, que escraviza os sentidos pelo fechamento dos códigos, opera uma redução na capacidade crítica de perceber o mundo.

A performance, ao propor desvio ao sentido antecipatório realizado na desconstrução do gesto e a hibridização com outras formas de arte, gera um desdobramento num campo infinito de movimentos, ritmos e gestualidade que intensificam o espaço de afetação estética.

O gesto é um absoluto efêmero; ele desaparece no momento mesmo em que surge, detendo assim a ideia de infinito, lugar puro, nu, fora do nome, para além do dizível. Abismo: o ilimitado aparecendo na finitude do corpo que é capaz de arte. A substância da arte, como experiência material, transmite o fugidio e, ao mesmo tempo, o familiar da senciência. Na arte a forma é dada imediatamente à percepção, mas vai além de si mesma.

Espaço deiscente dos devires intensivos, a arte performática se aproxima da experiência de dissipação e se produz na dissipação da imagem, pela impessoalidade e largueza do estado de existência, no sentido dado por Ferenczi ([1912] 1988) ao termo “introjeção”: como extensão realizada pelos movimentos autoeróticos ao incluir o mundo no eu – espaço que se amplia, superfície de contato –, desalojando, transtornando e transformando os polos dominantes.

A experiência estésica, ao operar nas bordas do corpo, realiza um trabalho de desabrochamento de algo que permanecia congelado no corpo, por meio da ativação de sua sensibilidade física e mental. A corporeidade se manifesta, então, na sua qualidade de ser transdutor de signos, pelo fato de devolver à palavra o dom de encantamento, pelo fato de poder reconstituir o dom de magia à palavra, que, ao se transformar em código, se torna oca. Esta propriedade acontecimental da palavra, para além do discurso, se encontra no campo das forças, no corpo, antes da palavra, na concretude, no fora: “é preciso distinguir a exterioridade e o lado de fora. A exterioridade é ainda uma forma […], mas o lado de fora diz respeito à força” (DELEUZE, 2005: 93).

O fora do discurso é modo como a linguagem se apresenta quando ela se enuncia: é momento de fugacidade do discurso; aí surge o ritmo, escapando ao código, a marca singular do artista pode emergir através do silêncio da palavra nos movimentos intensivos.

A partir dessa perspectiva, podemos dizer que a poética do corpo desabrochada pelo trabalho de Angel Vianna se caracteriza como força agenciadora de novas formas, em que seria possível a desestabilização do território conhecido e, como consequência, se tornar capaz de produzir uma dilatação no campo expressivo.

A arte é um dispositivo de captação e de inauguração de mundo e é pelas afecções vividas, pela experimentação poética do corpo, que se manifestam as micropercepções. Assim, nesse intervalo entre a coisa e a força, é que nos instalamos: na quebra sensório-motora resultante das contra-imagens abrem-se devires para que novas ações possam emergir.

Desde 1970, o trabalho de Angel Vianna já se afirmava como confrontador às proposições restritivas dos métodos das danças oficiais e das intervenções no trabalho de corpo. Além disso, aproximando-se da poética de Lygia Clark, buscava no encontro dos corpos, entre os corpos, formular novas possibilidades para a existência. Seus trabalhos, naquela ocasião, caminhavam na direção dos movimentos revolucionários de alguns, que ousavam um enfrentamento aos achatamentos e laminações decorrentes da modernidade, onde a uniformidade e o individualismo fizeram sua morada.

Liberar os movimentos corporais de suas amarras, entender o corpo em comunhão com o coletivo, expandir-se na sua expressão mais singular, buscar espaço para expressar-se como existente – estes eram alguns dos caminhos abertos pela escola de dança de Klaus e Angel Vianna.

Um movimento de deslocamento, realizado por novas e inventivas abordagens para pensar o corpo tão adormecido pela racionalidade, conjugados na resistência ao esvaziamento de si resultante da cultura contemporânea – este movimento desencadeado findou por produzir um espaço polissêmico, transdisciplinar, que, como sua mestra e fundadora Angel Vianna, propõe algo para além dos modelos acadêmicos atuais, tão restritivos ao amplo saber.

Como a própria Angel Vianna diz, a Faculdade de Dança e a Escola Angel Vianna não são formadores de bailarinos, mas de “gente que dança”, entendendo que “gente é como nuvem”.

Há uma radicalidade nessa experiência, vivida por meio da diversidade de técnicas coreográficas, experimentações corporais e novas questões e leituras filosóficas sobre os gestos e a mecânica dos corpos, que visam aos movimentos, aos ritmos, aos deslocamentos no espaço e aos gestos, que concorrem para a construção de uma prática sempre em aberto.

Tais abordagens sobre os movimentos corporais trazem à tona um corpo vivo, pulsátil no qual o aluno passa a permanecer em escuta, em atenção aos movimentos corporais que se desdobram desde o osso vivo em movimento, de modo a realizar uma torção necessária no pensamento.

Nessa perspectiva, podemos dizer que a construção do trabalho de subjetivação desenvolvido nessa instituição se direciona à resistência ao esvaziamento e homogeneização característicos da contemporaneidade e, portanto, em contraposição aos modos normalizadores atuais, na medida em que estes surgem como resultado de processos de subjetivação contemporâneos, em corpos paralisados num espaço sem tempo.

Por normalizados, entendemos o que Wilhelm Reich (1897-1957) denominou Homo normalis, como expressão do que esse autor definia como caráter neurótico: um ajustamento ao meio opressor, de tal modo que esta opressão se expressaria no esvaziamento da capacidade crítica e inventiva, na repetição não diferencial, numa adaptação assintomática ao meio.

A recuperação de um corpo que dança, apropriado de si, irá incidir sobre a recuperação do tempo e do espaço na produção de corporeidade. Por meio das técnicas desenvolvidas, os alunos passam a dispor de elementos que propiciam o cuidado de si [3], experimentando a noção de corpo movente nos estratos mais íntimos de sua constituição e, além, nos espaços não estratificados, onde o processo do pensamento começa sempre por uma transformação operada por um desvio, uma quebra na sensomotricidade.

Partidária do múltiplo e, por conseguinte, das manifestações singulares, a dança era vista pelos Vianna (e permanece com Angel) como uma manifestação da vida em sua totalidade. Movimento, ritmo, pulsação convocando o corpo como campo de afetação que se compõe e decompõe nos encontros com a vida, que se manifesta em sua temporalidade e expressividade.

Para sustentar um corpo vivo e apropriado de si, o trabalho de Angel se desenvolve pelo cultivo das experimentações, visando a abrir os espaços do corpo em consonância com os ritmos próprios de cada um. Marcamos, ainda, que o trabalho realizado permite resgatar um corpo na sua capacidade de ser afetado, como experiência estética, em que o invisível de algo se manifestará no sensível e, portanto, imagens podem desabrochar produzindo movimento no pensamento.

Assim, é na desconstrução dos automatismos, na abertura do corpo, na experimentação da pele como extensão, que se inscreve a pesquisa de consciência do movimento. Essa pesquisa corporal elaborada por Angel carrega em seu bojo a força de ruptura com um certo modo de ver o mundo, dispondo seu método como um operador cognitivo que permite perguntar ao corpo algo semelhante ao que Hijikata lança como questões para pesquisa em seu trabalho ankukobutoh:

 

1) O que aconteceria se fosse possível colocar uma escada dentro do corpo para descer até o fundo?

2) Há um ponto, na profundidade sem medida, em que o visível se deteriora. A dança poderia existir para rejeitar este estado interno do corpo?

3) E caso fosse possível fazer isso, seria, finalmente identificável que o olho não serve só para ver, a mão não foi feita exclusivamente para tocar e todos os órgãos não podem ser restritos às suas funções e organizações?

4) Como se começa o que não tem filiação e apenas se alimenta dos abjetos do mundo?

5) Como nasce o sofrimento, a vontade e a expressão?

(GREINER, 2005: 3-4)

 

Sem origem nem finalidade é o trânsito que mantém o olhar e o pensamento. A metamorfose e o infinito se apresentam, realizando a quebra com o universo das representações, implicando a experiência, o conflito, a ilusão, como ato de criação, em que mundos impossíveis se tornam materiais. Na direção dessas questões se insere o trabalho com o movimento, a pesquisa do corpo em seus deslocamentos e ritmos.

É uma prática que se desconstrói e se constrói no próprio fazer. Assim o como, o modo é privilegiado pelos dinamismos espaçotemporais em detrimento do sentido. O corpo passa a ter como referência não mais uma origem, mas um fazer-se, é processual e, portanto, impermanente, o que significa sair da via expressiva ou mimética, característica de certa leitura da dança, para um fazer estético pautado na sensação, no estiramento da sensação. O caminho utilizado é o movimento, estar atento aos micromovimentos dos corpos nas dobras, nas contraturas, nas tensões, nos intervalos, alongando através do espaço e do tempo, através do ritmo vivido nos deslocamentos do corpo, na expansão e no recolhimento.

Este trabalho se coloca na direção do resgate e reapropriação do corpo em seus dispositivos afetivos e perceptuais por meio dos movimentos desencadeados por injunções desde a investigação do corpo próprio até o corpo coletivo, ampliando os atributos para a interação com o outro. Realiza-se, portanto, por meio das relações estabelecidas nas ações comunitárias grupalizadas, pelo compartilhamento de experiências, considerando-se e respeitando-se a heterogeneidade em que se estabelecem as dinâmicas não só pelo reconhecimento das diferenças, mas utilizando-as como matéria de expressão.

Essas condutas propiciam, na construção da vivência participativa, a emergência de um sujeito ético.

Assim, trazendo de volta as questões de Hijikata, encontramos tal sintonia que podemos fazer de suas questões uma direção para pensar as pesquisas realizadas pelo trabalho de Angel Vianna. Não estamos só colocando em evidência uma desconstrução objetivada na materialidade do corpo; porém, mais, estamos sublinhando o caráter inaugural e de contraposição a um modo de subjetivação em que as qualidades sensoriais vão se tornando emudecidas.

Um corpo é um campo de possibilidades e isto é o que se torna visível pelo trabalho realizado – recuperar um campo de possibilidades que se atrofia pelas repetições não diferenciais de um gesto mecanizado.

O trabalho se desenvolve a partir da percepção como campo fundamental na apreensão de mundos; a percepção é o território por meio do qual as construções poderão ser rearticuladas pelas experimentações. Assim, outros modos de sentir, outras qualidades sensíveis podem produzir novas imagens mentais, novos horizontes, criando conceitos.

Deleuze e Guattari (2001), no livro O Que É a Filosofia, contemplam a arte como um processo de conhecimento que se viabiliza por blocos de sensação: perceptos e afectos. Criam-se conceitos partindo da experiência sensível: ser afetado e, por meio da afetação, constituir-se uma percepção inaugural torna possível, por fim, conceber um entendimento do vivido, elaborando-se, criando-se a partir daí conceitos sobre o mundo.

A arte, assim, afirma a vida, inventando novas possibilidades de existência, sendo sua finalidade última, se é que existe, uma subjetivação sempre a conquistar. Pelo processo de captação do real, se reinventa a vida de modo a combater a rigidificação codificada de que o poder necessita para se constituir em sua tirania.

A singularização, a individuação consiste, justamente, em um processo de transdução em que o pré-individual se torna acessível para produzir o deslocamento necessário, viabilizando novos territórios existenciais, resistindo à uniformização do pensamento e das condutas.

Trabalhando na potência desse campo pré-individual, Giorgio Agamben nos fala, em seu livro Profanações, sobre a força disruptiva da existência e seu poder criador:

 

Todo o impessoal em nós é genial; genial é, sobretudo, a força que move o sangue em nossas veias ou nos faz cair em sono profundo, a desconhecida potência que, em nosso corpo, regula e distribui tão suavemente a tibieza e dissolve ou contrai as fibras dos nossos músculos. É Genius que, obscuramente, apresentamos na intimidade de nossa vida fisiológica, lá onde o mais próprio é o mais estranho e impessoal, o mais próximo é o mais remoto e indomável. Se não nos abandonássemos a Genius, se fôssemos apenas Eu e consciência, nunca poderíamos nem sequer urinar. Viver com Genius significa, nessa perspectiva, viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de não conhecimento. (AGAMBEN, 2007: 17)

 

Para esse autor, liberar Genius é o que permite o acesso à estranheza, ao devir outro, ao fora da linguagem, ao pré-individual. Na mesma sintonia de Foucault, continuando sua análise, Agamben, ainda nesse livro, problematiza o modo de funcionar do mundo contemporâneo, por sua constatação de que o capitalismo hoje transforma tudo em sagrado, retirando do uso comum as coisas do mundo. Propõe, como ação crítica aos poderes, a profanação como o “restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado”. (Ibidem: 71)

Tomando como referência o modo ritualizado da religião – que, para tornar sagrado, retira as coisas do uso comum –, Agamben nos mostra como o capitalismo, do mesmo modo que a religião, trabalha em certas coisas de modo que faça com que elas pareçam não pertencer mais aos homens, mas aos deuses – aos homens do poder. Trazer ao uso comum o que estava segregado, neutralizando seus dispositivos de poder, é tarefa da profanação. Assim, o autor tece uma crítica ao capitalismo que, visto como religião, produz um horizonte onde tudo fica dividido de si e jogado na esfera do espetáculo, da comunicação e do consumo, tentando fundar-se num Improfanável. Profanar o Improfanável passa a ser um fazer em que se misturam a política e a arte, na medida em que estas cuidam da manutenção de uma pura potência, em que nada se fixa.

Antonin Artaud, em seus textos poéticos, profana o humano instaurado por uma lógica que retira a animalidade do homem, produzindo-o esvaziado de suas forças constituídas. Devolve, portanto, ao uso o que ficou sacralizado. A arte, na dança contemporânea, na performance, em expressões esvaziadas de significados imediatos, se ocupa de devolver ao homem sua animalidade, de modo que sugere nos reaproximamos do encantamento com um mundo onde heterogêneos o habitam.

Desconstruir a lógica do consumo é poder estar na existência profanando a sacralização operada pelas máquinas capitalísticas, que, no contemporâneo, transforma o homem num espectro de si mesmo, atingido que se encontra na potência do poder dizer ou do não poder dizer.

Atingir o impessoal é estar no que nos ultrapassa, implicados em nossa estranheza, no que da vida não é nossa posse, poder falar do resto, do lixo, do banal, do vergonhoso, retirando a rede de sentidos que torna esses fluxos codificados como negatividade, entendendo a política como aquilo que pode restaurar o livre uso do mundo. O corpo, no seu excesso, grita o que fica excluído do que se designa humano e, na reapropriação da corporeidade, se estabelece o combate às forças de captura disseminadas pelos poderes no processo de subjetivação.

O que se coloca, então, no horizonte das experimentações que propiciam a valorização das condições sensíveis do corpo, como o trabalho desenvolvido por Angel Vianna, é que, pelo desenvolvimento de um estado de presença, em que a atenção esteja ativada para os micromovimentos do corpo em sua ritimicidade vivida nos encontros, no coletivo, viabiliza-se a construção de uma perspectiva crítica que aciona o movimento ao pensamento.

Pois é justamente pela condição sensível do corpo em sua excitabilidade que, como campo receptivo, se realiza a transdução necessária entre sistemas de signos, caracterizando-se, assim, como campo de operação do simbólico, ao efetuar a passagem da sensação para a simbolização, ativando o imaginário.

A arte tem como privilégio a condição de acordar o corpo de seu adormecimento resultante dos processos de codificação e fazer emergir novos campos de pensabilidade. Pela possibilidade de quebra do mecanismo sensório-motor, se torna viável instaurar linhas de fuga, propícias à captação de novos horizontes, para que possamos vislumbrar o vazio, o deserto que o pensamento terá que atravessar para poder pensar o impensável.

Na experimentação realizada, a cognição se faz por meio do esquema sensório-motor, e é justamente através desse esquema, no ato de perceber e no agir, que o homem apreende o mundo. No corpo capturado, o homem só repete, somente crê e não inventa, nada com esse corpo se cria, pois o esquema sensório-motor é automático: percepção levando ao imediatismo da ação. Porém, entre percepção e ação existe um intervalo de tempo que, pelas afecções sofridas, pelo acesso ao campo pré-individual, pelo estranhamento, pode se estender, pode se alargar esse intervalo, de modo a romper com o automatismo dos gestos. Para se estender o entre, o intervalo de tempo, é preciso uma força de deslocamento, algo que force o pensamento a pensar.

Um pensamento poético, feito de corpo, sem desejo de lugar nenhum, instiga o pensamento. Esta sim, creio, é a tarefa fundamental do pensar. Um pensamento encarnado que possa se produzir para além da representação e restaurar a possibilidade do dizer verdadeiro, que, segundo Foucault (2001), se perdeu na modernidade. Perdeu-se a importante noção da Antiguidade grega de que o sujeito da ação tinha que adequar o que ele diz ao que ele é. E se perdeu porque, entre o agir e o fazer, o agir e o pensar, o agir e o falar, passou a existir o representar.

Podemos dizer, assim, que a partir dessas problematizações, pensamos que a arte, e aqui em especial a performance, o movimento dançado, por poder atingir o pré-individual, o impensado, o intempestivo, o impessoal, permite restaurar o sujeito da ação: ou seja, sustentar o combate cotidiano em adequar o que se diz ao que se é, entendendo junto a Nietzsche que o que se é é aquilo que nos tornarmos. Paradoxo que coloca em ato a experiência de que o que se é é o puro deslocamento, em que o encontro com as coisas do mundo inaugura o mundo.

A arte da dança assim como os trabalhos que levam em conta o corpo em seus ritmos manifestam em seu fazer-se, pelos movimentos, modos de subjetivar-se oblíquos, flutuantes, híbridos. Oferecem, dessa forma, um território em que se torna possível resistir às políticas homogeneizantes, sendo asilo aos desviantes, aos que não encontram acolhida. Tais modos de resistência viabilizam devires.

Essa condição se encontra no fato de que a corporeidade, recuperada em sua condição de afetabilidade, contempla sua capacidade transdutora de signos, pelo enfrentamento com as limitações impostas, decorrentes dos modos de subjetivação. Retomando Foucault (2008), pode-se dizer que constituem, assim, um corpo corajoso em que a coragem só pode ser compreendida como corpo que desconstrói o atrelamento ao codificado, afirmando-se.

É sobre o aspecto relativo ao mecanismo de recusa como resistência às condições normalizadoras impostas pelo ambiente, e como afirmação de forças a um existir singular, que nos debruçamos problematizando questões relativas à corporeidade como manifestações contra as proposições homogeneizantes, contra um corpo que, constituído nos atuais jogos de poder e de verdade, se torna capturado, esvaziado de sua dimensão alteritária. E que, ao se tornar impermeável às afetações constitutivas, passa a ter como constituintes não mais seus singulares modos de se organizar no mundo, mas naquilo que se enuncia a partir de um horizonte já significado, tornando-se, assim, constrangido em sua capacidade inventiva.

Pelo fato de o movimento decorrer do excesso, nada é excessivo. A corporeidade se manifesta em um corpo apropriado de sua capacidade receptiva aos excessos presentes nos campos intensivos, corpo pleno em sua condição de transformação e transdução de signos, operação implicada na produção das múltiplas possibilidades de existir.

Entendendo que é pelo excesso que se deslocam mundos, a ideia de acontecimento vem nos aproximar da experiência de mutualidade instaurada pelo contato via a estesia característica do corpo. O acontecimento é algo que se passa na superfície de um corpo, a partir dos acasos, e que faz com que haja possibilidade de transformação de um corpo no contato com outro. É pelo encontro dos corpos, nas suas singulares diferenças, que a vida se manifesta como potência expansiva.

Um acontecimento é um crivo que sai do caos [4], entendido aqui como conjunto de possíveis, de todas as essências individuais, de todas as percepções possíveis, extrai dele diferenciais capazes de integrarem percepções; o acontecimento é uma vibração. É uma preensão, o olho é uma preensão da luz, o acontecimento é a objetivação de uma preensão e uma subjetivação, ele é público e privado, potencial e atual, entra no devir de outro acontecimento. O acontecimento atualiza o potencial objetivo, em virtude da sua espontaneidade; assim, a percepção é a expressão ativa. É uma forma perceptiva assimbólica, única, singular, puro fluxo, atravessada por todos os devires intensivos, pelo passado, no presente implicado num futuro.

Assim, entendemos o ato performático como justamente aquele que permite uma abertura irrestrita aos acontecimentos, favorecendo, deste modo, os deslocamentos necessários a fim de permitir que seja possível fazer a vida valer a pena ser vivida. O trabalho de Angel é comprometido com a desconstrução de um corpo codificado e, pelo favorecimento à emergência de movimentos moleculares, instaura força e fluxo, abrindo o campo das experimentações artísticas necessárias às multiplicidades ilimitadas que constituem a vida.

 

NOTAS

[1] Esta é uma discussão realizada por José Gil em seu livro Imagem Nua e Pequenas Percepções.

[2] O termo transdução, aqui utilizado, se refere à capacidade do corpo de realizar uma transformação no ato de conhecimento, ao receber uma informação sensível e transformá-la em percepção, operação realizada pelo campo intensivo do corpo.

[3] Refiro-me aqui ao processo de dar forma à existência, em uma perspectiva estética dentro da leitura foucaultiana do cuidado de si, da governabilidade de si, temas desenvolvidos nos seus últimos escritos. (FOUCAULT, 1984; 2004)

[4] Deleuze, 2000.

 

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Hélia Borges é psicanalista, doutora IMS/Universidade Estadual do Rio de Janeiro, professora da Graduação e da Pós-Graduação da Faculdade Angel Vianna. Coordena linha de pesquisa Corpo/arte/clínica, vinculada à UFRRJ. Pesquisadora de temas ligados à corporeidade, filosofia da estética: arte – em especial a dança, movimento e processos de subjetivação.

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

BORGES, Hélia. “A Poética do Corpo: Uma Leitura do Trabalho de Angel Vianna”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 7, nov. 2013. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2013 eRevista Performatus e a autora

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