A Dimensão Eletrônica: Da Obsolescência do Corpo às Estratégias da Tecnoperformance

 

Este texto foi publicado pela primeira vez no livro Performance Presente Futuro que também inclui artigos teóricos de Stelarc, Maria Beatriz de Medeiros, Ricardo Dominguez, Orlan e Rosangela Leotte (Edições Contracapa, Rio de Janeiro, 2008).

 

Jaime del Val, Cyborg Pangénero, Madrid, Espanha, 2008. Foto: Agencia EFE

 

Nos anos 1980, Stelarc, o pioneiro indiscutível das inter-relações tecnobiológicas no campo da performance, afirmava que o corpo era algo obsoleto, e atrevia-se a antever um futuro cibernético no qual o homem poderia superar as limitações do seu corpo material. Nos anos 1980 e 1990, o artista aprofundou sua intenção de manipular o corpo para convertê-lo em um sistema biotécnico, e isto o levou a experiências com explorações cirúrgicas, próteses robóticas e programas interativos de computador. Provavelmente, o caminho pesquisado por Stelarc em torno de um “conhecimento PÓS-HISTÓRICO, TRANS-HUMANO e inclusive EXTRA-TERRESTRE” [1], constitutivamente associado a uma mistificação da tecnologia, constituiu um dos elementos fundamentais do contínuo processo de tecnologização das práticas performáticas que se desenvolveu a partir dos anos 1990. Apesar de que, diferentemente de Stelarc, que se dedicou a operações de intromissão ou profanização do corpo por meio da inteligência artificial, a maioria dos artistas que começaram a redefinir os protocolos de produção da performance optou unicamente por uma utilização externa das novas tecnologias.

Os anos 1990 provaram-se essenciais para a compreensão da gênese da cena atual da performance, uma cena que se encontra fortemente impactada e transfigurada pelas matrizes referenciais da tecnocultura global. Nos anos 1990, produz-se a ruptura que lida com o esgotamento da performance tradicional que prevaleceu nos anos 1970 e que procurou sobreviver durante os anos 1980. É nessa década que a obsolescência do corpo, anunciada por Stelarc, parece revelar-se em toda sua dimensão, gerando uma constelação de obras que buscam respostas ou vias de fuga por meio da experimentação com recursos provenientes do campo tecnológico. Tal emerge dentro do contexto de pós-modernidade, que proclama uma “crise da representação”, e converte o sujeito em objeto para que possa ser assimilado pela lógica do consumo e da mercantilização de um neocapitalismo globalizado. Isto acaba de configurar-se quando o advento de novas tecnologias dá vazão definitiva a sociedades da imagem que hipnotizam e aquietam o olhar, mediante a reificação mass-midiática da representação e da estetização de uma realidade carente de textura. O corpo, suporte central e definidor da performance, torna-se então obsoleto, porque perde sua eficácia como instrumento de expressão e simbolização, e é relegado pela onipotência simbolizante e representacional das tecnologias de comunicação que administram e concebem uma “realidade” mais verossímil que a própria experiência cotidiana. O corpo real em tempo real já não logra ser tão atraente e crível quanto a realidade da imagem eletrônica concebida e disseminada para adormecer as “sociedades do espetáculo”. Assim sendo, a performance tecnologizada não será mais do que uma tentativa de fazer eco às transformações geradas pela nova cultura visual, operando uma reconversão da prática a partir da dinâmica da apropriação de seus meios e suas estratégias.

 

Sara Malinarich, Cita a ciegas – Interface for Telesharing Action, Cuenca-Valencia, Equador, 2008. Foto: Intact Project

 

Um dos fatores que deu início às relações entre performance e tecnologia foi o costume cada vez mais generalizado de se fazer um registro documental das ações. A utilização do vídeo revelou-se a forma mais simples de documentar a obra da performance, e logo deu origem a entrecruzamentos produtivos e inéditos, que se distanciavam do mero afã documental. Isto pode ser rastreado pela imensa presença do performático no campo da videoarte, mas se traduziu mais diretamente no aparecimento de um surpreendente gênero, ou subgênero, chamado videoperformance. A concepção e produção de uma obra de performance para o suporte vídeo não apenas demonstra um entusiasmado interesse pelas possibilidades da manipulação eletrônica da imagem, como também provoca profundas reformulações em torno do corpo e sua presença real. Os registros documentais e a videoperformance revelam-nos a presença de um corpo encurralado e midiatizado pela tecnologia do vídeo, ou indicam a “não-presença” de um corpo que se tornou virtual e eletrônico. É possível falar de uma nova “desmaterialização”, na qual a carne é substituída por sua projeção, e a presença por um sinal virtual.

Em meados dos anos 1990, e mais decididamente a partir do ano 2000, a tecnoperformance torna-se uma das tendências mais inovadoras e consolidadas dentro da performance mundial. A tecnoperformance constitui uma linha de pesquisa que desloca a atenção, historicamente enfocada no corpo, para a ferramenta midiática, explorando múltiplas hibridizações sonoras e visuais antes inimagináveis. Pode-se definir a nova performance como “um conjunto virtual midiatizado” [2]. Porque o que importa cada vez mais é transladar para o campo das ações a mesma lógica de produção hipertecnologizada e midiatizada da “realidade” mass-midiática. Falamos então de um corpo midiático que já não se oferece diretamente ao nosso olhar, e sim se apresenta desvalorizado em sua corporeidade e metamorfoseado em reflexo ou reverberação eletrônica, finalmente deixando de ser um “objeto-meio” para se converter em um “objeto-midiatizado”. Nem ao menos importa que se manipule o corpo do próprio artista ou de qualquer um que possa estar presente. É frequente ver ações que tenham como elemento principal um vídeo de pessoas que foram filmadas na rua ou naquela mesma sala ou galeria um pouco antes de a ação começar. Também é possível ver o corpo do performer em diálogo com seu próprio corpo ou com outros corpos projetados por monitores. Há performances que se iniciam com a apresentação de um vídeo anterior à ação, em uma espécie de reflexo do bastidor televisivo. Algumas performances são eminentemente multimídias e espetaculares, e apenas contemplam o corpo do artista como um elemento compositivo a mais dentro de sua parafernália tecnológica. Mais além dessas experiências, no entanto, encontra-se o que alguns chamam de cyberperformance ou performance na rede. Neste tipo de propostas, o corpo já não está presente, nem mesmo subordinado a dispositivos tecnológicos ou “con-gelado” em suporte vídeo, mas transformado em um corpo evanescente, extremamente “desmaterializado”, um corpo transmissível e fantasmático. A tendência expande-se e já existem festivais que acontecem unicamente na internet com transmissões via webcam de ações simultâneas, permitindo unir virtualmente os pontos mais distantes do planeta. Com tudo isso, de forma acelerada, acaba-se por desnaturalizar a performance tal como nós a conhecemos; eliminam-se completamente os elementos que nos permitem defini-la: o corpo material do artista, o espaço físico real, o contato direto com o público em um contraponto de interação emocional. Esta ruptura de todos os parâmetros referenciais da performance nos leva a supor que nós não apenas enfrentamos uma nova expansão formal do gênero, mas principalmente uma inquietante e absoluta reformulação da linguagem.

 

Silvio De Gracia, Tensión/Distensión, Bienal PerfoArtNet, Bogotá, Colômbia, 2010. Foto: Clemente Padín

 

A América Latina, muito embora seja considerada uma cena periférica, não está isenta destas coordenadas de transformação que abalam o mundo da performance. Embora de modo menos consciente e traumático, a performance latino-americana também parece tentar desvincular-se de seus estereótipos e das categorias e finalidades preconcebidas, nas quais se supõe que suas manifestações devam se encerrar. A “clássica” performance latino-americana, que enfatizava seu “compromisso com a realidade” a partir de um conteúdo crítico e contestatório, provavelmente é uma instância esgotada e carregada de opacidade que obriga a reinvenção e a busca de novas matrizes produtivas. Desde o fim da década de 1990, e com uma acelerada intensificação a partir do ano 2000, muitos artistas têm abandonado definitivamente as ações “contextualizadas” ou “conteudistas” para se concentrar em pesquisas centradas na autorreflexibilidade da forma. Esses artistas procuram inscrever as práticas do corpo em uma experimentação mais ligada ao olhar estético ou à poética significante do que às urgências do significado; seus procedimentos apontam para a desmontagem dos repertórios cristalizados e para a criação de obras inovadoras e descontaminantes. Essas mudanças estão diretamente vinculadas a um progressivo acesso às tecnologias que intensificam os deslocamentos e as hibridizações das poéticas dos diferentes gêneros; mas também à órbita das novas circunstâncias históricas, com o marco referencial hegemônico da globalização que obriga todas as práticas a se inserirem nos códigos da contemporaneidade. Com toda certeza, a atual performance latino-americana está se reelaborando, e nesse processo encontra na tecnologia uma linha de ruptura com seu passado e uma abertura no sentido de uma maior experimentação de cunho estetizante. Ainda que com recursos inferiores que aqueles de outras partes do mundo, a performance latino-americana também incorpora, cada vez mais, a mediação de múltiplas instâncias tecnológicas. A aposta no tecnoperformático não se evidencia apenas no auge da videoperformance, mas também na crescente quantidade de obras que incluem projeções de vídeo, utilização de câmeras e sensores, animações multimídia e outros dispositivos eletrônicos. Tem havido, inclusive, experiências de festivais de teleperformance ou performances em rede, que supõem uma oportunidade de encontro virtual para artistas que de outra forma não poderiam se conhecer ou entrar em contato.

 

Corpos Informáticos, Performance em telepresença: Compra-se senador usado. Performer: Cedric Aveline. Parque Lage, Rio de Janeiro, Agosto de 2009. Fotografia: Corpos Informáticos

 

O que o tecnoperformático pode oferecer ao futuro que já chegou é tão inesgotável quanto seu próprio repertório de aparatos e dispositivos. Assistimos a uma tecnologização da performance na qual os limites são superados de forma constante, a cada passo revelando horizontes impensados. O discurso do corpo perdeu sua ênfase, e as fronteiras entre a carne e a máquina tornam-se cada vez mais exíguas. O único perigo é que o excesso de tecnologia acabe transformando a performance em um simples espetáculo multimídia, acrítico e superficial. Entre o “tradicional” e o hipertecnológico, cabe esperar que exista uma via intermediária que subverta as categorizações monolíticas, e que defina uma performance ainda capaz de vincular a reflexão estética e a vocação crítica.

 

Notas

[1] STELARC. Gesto Mejorado/Deseo Obsoleto: Estrategias Post Evolucionarias. In: STELARC remoto. Ballart, 1990. [Catálogo da exposição].

[2] RICHARD, Alain-Martin. El Arte Acción en Québec: Cuerpo Privado y Cuerpo Público. In: MARTEL, Richard (Ed.). Arte Acción 2 –1978-1998. Espanha: IVAM Documentos 10, 2004. Pág. 207.

 

Silvio De Gracia

(Junín, Buenos Aires, 1973) Artista visual, performer e coordenador. Teórico e investigador sobre arte da performance, em especial, sobre a cena latino-americana. Entre 2002 e 2010, foi editor da revista Hotel Dada, dedicada a arte postal e poesia experimental; atualmente, ele dirige o projeto Videoplay – uma plataforma internacional para a distribuição e criação de vídeos. Também, publicou os livros: Internet y Performance: Negociaciones Entre Cuerpo, Virtualidad y Telepresencia e La Estética de la Perturbación. Seus textos foram incluídos em várias páginas da web e de revistas especializadas, assim como nos livros La Creación Escénica en Iberoamérica [Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha, 2010] e Integración y Resistencia en la Era de la Globalización (Centro Wifredo Lam, Cuba, 2009). Apresentou suas performances e intervenções no Canadá, Itália, Grécia, Reino Unido, Portugal, Uruguai, Cuba, Colômbia, Chile e Brasil.

 

 

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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