Entrevista com Zeca Ligiéro

 

Zeca Ligiéro

Entrevista a Davi Giordano, em 03 de dezembro de 2017

 

Reprodução do Facebook de Zeca Ligiéro/ 13 de janeiro de 2018

 

DAVI GIORDANO: Começo dizendo que é um enorme prazer realizar esta entrevista contigo, uma pessoa que tanto admiro e respeito devido a sua bela trajetória profissional e por ser um dos grandes responsáveis por abrir um campo necessário para os Estudos da Performance e das Práticas Performativas no Brasil. Acredito que para este início seria importante que você relatasse como você se aproximou dos Estudos da Performance e a maneira como isso estimulou o seu caminho artístico.

 

ZECA LIGIÉRO: Tem algumas coisas do meu passado que já indicavam essa minha tendência em direção a um teatro não convencional, pois sempre me rebelei contra o teatro do texto. Quando comecei a frequentar a Escola de Teatro no final da década de 1960, o antigo Conservatório (que hoje é a atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO), eu já adaptava as minhas montagens e criava personagens e situações que não estavam no texto, como fiz com As Criadas, de Jean Genet, em que criei um ritual transformando a peça em uma grande missa de imolação. Era uma época de contracultura em que as pessoas usavam o ritual e falavam de Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, embora a gente nunca tivesse visto nada deles. Outro momento foi quando comecei a ensaiar o texto grego Medeia, fui para o Engenho de Dentro e trabalhei com a Nise da Silveira, e virou O Mito de Medeia. Novamente eu estava interessado não na peça clássica e sim na história daquela mulher, no mito da “mãe terrível”. Foi uma experiência sensacional. 

Depois fiz uma adaptação do Auto de Moralidade de Todo-o-Mundo. Montei como um Teatro de Revista. Quando terminei o curso, fiz uma montagem com colegas também egressos do Conservatório que ficou muito conhecida na época: As Loucuras do Doutor Qorpo Santo.

Sempre considerei Qorpo Santo sendo um artista à frente de sua época. Ele tinha seus próprios ideais e acabou sendo preso diante de uma sociedade moralista e autoritária. O espetáculo sofreu cortes impostos pela censura. A gente substituiu partes do texto, que não poderiam ser ditas, por trabalho corporal e pantomima. Inclusive colocamos o hino do Rio Grande do Sul quando se falava a favor da família, da tradição e da sociedade cujas partes do texto haviam sido cortadas pela censura. Todos esses exemplos mostram o meu desejo de trabalhar na linha do teatro experimental, nessa mesma época estava sendo popularizado o termo “performance” mais ligado às artes visuais do que ao teatro.

 

DAVI GIORDANO: E antes da Escola de Teatro, consegue relembrar de experiências de sua infância e adolescência que trazem esse desejo pela experimentação e pelo não convencional?

 

ZECA LIGIÉRO: Antes de entrar no Conservatório, eu fiz algumas experiências teatrais em Laje do Muriaé, uma cidade pequena do norte do Estado do Rio de Janeiro onde fui criado. Com um grupo local montamos Exceção e a Regra, de Bertolt Brecht, e Piquenique no Front, de Fernando Arrabal. E aí comecei a escrever meus primeiros textos.

Eu tinha 17 anos quando comprei uma câmera de oito milímetros (filme mudo), anterior à Super 8 (filme que podia ser sonorizado) que ficou mais popular. Meu amigo Paulo Masini e eu gravamos um filme chamado De Como uma Beata Louca Teve Relações Sexuais com um Galo e Pariu um Pombo. São apenas três minutos de rolo, usamos um único rolo. Já filmei pensando em uma edição final, pois não tinha recursos para editar. Era um filme mudo, que só recentemente eu digitalizei e coloquei uma música da Banda 5 de Novembro da minha cidade como trilha sonora, realçando os momentos dramáticos das peripécias da beata performada pelo meu amigo. Ficou lindo, e foi uma coincidência, porque o Paulo Masini parecia muito o Paulo José, que um ano depois fez Macunaíma, do Joaquim Pedro de Andrade e também, em determinado momento, fazia um personagem feminino. O delegado da cidade soube sobre a nossa filmagem e quase fomos para o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]. Nessa mesma ocasião, estávamos montando um espetáculo, Duelo de Amor, Um Encontro entre São José e Virgem Maria. Tudo acontecia no interior de uma boate chamada Presépio Inn. Os personagens eram bíblicos, mas o texto caiu na mão do pai de uma atriz que entregou para o delegado. A peça foi proibida. Mas nós saímos no carnaval com as roupas dos personagens que estávamos encenando, a escola de samba casualmente tinha o nome alusivo de Unidos do Rosário! Saímos de Virgem Maria, de Anjoleta, que era um mistura de “anjo” com “borboleta”, e de Freirete, que era uma mistura de “freira” com “garçonete”. Não fomos presos durante a folia, só na quarta-feira de cinzas fomos chamados para depor. Depois de uma arguição severa comandada pelo famigerado delegado fomos libertados pelo padre Brandão. O velho pároco nos salvou do envio para a prisão no DOPS no Rio de Janeiro, mesmo com o delegado nos classificando como “iconoclastas”, coisa que eu não sabia o que era! Com medo, eu escondi essa fita por anos e ficou perdida muito tempo se deteriorando. Só recentemente enviei para a Universidade de Nova York [NYU], que a restaurou e pude então finalizar o filme como vídeo e colocar na internet [1] e mostrar finalmente para os meus amigos de Laje do Muriaé quase cinquenta anos depois.

 

Zeca Ligiéro, frames do filme De Como uma Beata Louca Teve Relações Sexuais com um Galo e Pariu um Pombo, Laje do Muriaé, RJ, Brasil, 1968

 

Da esquerda para a direita: Zeluco (Zeca Ligiéro), Cartum publicado no Jornal The Rolling Stones, 1972; Cartum publicado no jornal O Pasquim, 1972; Cartum publicado no Jornal The Rolling Stones, 1972

 

Junto com a fita, enviei um pequeno relato sobre a montagem desse filme. A NYU me respondeu declarando que eu sou um dos precursores da Teoria Queer, pois em 1968 eu coloquei um ator gay fazendo um personagem feminino trabalhando questões da sexualidade. Foi uma coisa inesperada para mim porque havia feito sem essa pretensão. Agora escrevi recentemente um artigo que está para sair no meu novo livro, que vai se chamar Outro Teatro: Do Ritual à Performance, que foi a minha tese para professor titular na UNIRIO. Na primeira parte do livro, crio um conceito que chamo de “experiências estelares”. Essas primeiras experiências a que somos expostos às performances culturais e artísticas que marcam nossas memórias permanecendo para a vida toda. Exatamente como uma estrela que já morreu só que o seu brilho perpetua em nossa imaginação. Eu aponto na minha biografia duas grandes experiências: a primeira foi a chegada do circo no interior do estado do Rio de Janeiro. O circo mudou minha vida. As pessoas do circo eram itinerantes e traziam o teatro. Eu me impressionava muito com a apresentação das mulheres cantando músicas em espanhol. Era o Circo dos Irmãos Campagnoli. Outra coisa que me marcou muito foi assistir ao desfile da pequena Escola de samba Unidos do Rosário. Lembro-me de uma passista negra e era uma senhora gorda que vinha para o Rio de Janeiro especialmente para participar do desfile de carnaval. Não pude saber o seu verdadeiro nome, tinha o apelido de Tirolesa (mulher do Tirol), talvez por ter desfilado um dia com esta fantasia. No desfile, ela vinha de baiana com aqueles vestidos brilhosos. Dançava maravilhosamente e ficou em minha imaginação, como algo mágico. Sempre tenho esses impulsos que chamo de “experiências estelares”. Interessante que muito tempo depois, conversando com uma tia, comentei que era o único artista da família, no que ela riu e disse que meu bisavô tinha sido do circo e minha bisavó fugiu para casar com ele. O nome dele era Thomas Coelho. Tenho uma foto de quando o circo faliu e meu tataravô arrumou um emprego para ele na Marinha Mercante. Na foto ele carrega uma farda que eu sempre achava ser falsa. Agora entendo que ele sempre foi um performer, um palhaço travestido de militar. Essa história ficou oculta pela família, pois depois ele ficou rico e bem de vida. É muito interessante essa coisa da nossa sociedade em que arte e vida sempre ficam ocultas em detrimento do trabalho e das conveniências sociais. Meu pai queria também que eu fosse militar, só que fui pego desenhando no curso preparatório para Escola Naval. Tive uma carreira de dez anos como cartunista e ilustrador profissional. Muito jovem, comecei a levar meus desenhos para o Ziraldo, no Jornal dos Sports, onde editava o Cartum JS. Ele me encorajou e me batizou de Zeluco. Publiquei meu primeiro desenho com dezessete anos. Nos anos seguintes publiquei no Correio da Manhã, até que este jornal foi suspenso pela ditadura em 1969. Em seguida comecei a publicar no jornal O Pasquim em 1972 e, depois, no Jornal The Rolling Stones. Eu criava ilustrações para a coluna do Luís Carlos Maciel. Publiquei em inúmeras revistas eróticas como Fairplay e Close.

 

DAVI GIORDANO: Você realizou o seu mestrado (1985-1988) e doutorado (1993-1997) na Universidade de Nova York, no departamento de Performance Studies [Estudos da Performance], tão importante para a difusão dos Estudos da Performance em nível internacional. Você foi orientado por Richard Schechner, que, junto com Victor Turner, foi o grande criador dos Estudos da Performance, esse campo de conhecimento que vem inspirando muitos artistas, pesquisadores e teóricos na área. Como foi toda essa experiência?

 

ZECA LIGIÉRO: Na minha vida nunca pensei em me tornar acadêmico. Eu caracterizava o meu trabalho como de um “artista prático”. Tudo que eu fazia era em função da criação nas artes visuais e cênicas. Na crise dos trinta fui para Minas Gerais trabalhar na Universidade Federal de Uberlândia. Tinha uma necessidade de escrever um livro sobre uma experiência vivida em São Gonçalo, Rio de Janeiro, com atores amadores, na sua maioria negros. Vivi toda essa fase da ditadura sempre mais voltado para essa coisa da contracultura do que pelo movimento político de esquerda, da luta armada e do comunismo. Sempre achei que o mais importante era a libertação do indivíduo e do seu corpo, da sua mente, percebendo várias funções da arte além do engajamento político. Então muitas vezes eu era criticado, chamado de “alienado” porque pregava que a libertação não passava somente pela luta de classes e sim também pelo autoconhecimento. Nesse sentido, para mim, a criação sempre foi uma forma de libertação. Fui para Uberlândia com essa ideia de fazer teatro comunitário e escrever um livro sobre a minha experiência em São Gonçalo. E me aproximar também de um engajamento político maior. Lá tinha uma carreira estável como professor da Universidade Federal de Uberlândia e, pela editora dessa universidade, publiquei meus dois primeiros livros: Teatro e Comunidade, Uma Experiência (1982) e Teatro Infantil de Zeca Ligiéro (1984). Experimentei várias coisas que queria na arte. Só que depois de cinco anos queria voltar para o Rio de Janeiro. Vi uma propaganda de uma bolsa do programa Fulbright para estudar nos Estados Unidos. Ganhei a bolsa só que, em vez de ir como artista como pensara anteriormente, fui para fazer o mestrado. Dentre as várias opções, achei que na Universidade de Nova York eu poderia desenvolver um trabalho de teatro experimental. Entrei em contato com Richard Schechner que acabou sendo meu orientador. Só que quando cheguei lá, percebi que o curso era totalmente teórico. O Schechner era o único professor que dava uma vivência prática somente como curso de verão. Apesar de difícil no início, foi uma experiência sensacional e de muito crescimento pessoal. Naquele momento, o Departamento de Estudos da Performance era liderado pelas pessoas que o fundaram. Algo que me chamava enorme atenção era a união entre os professores, coisa que eu não via no Brasil. Mesmo o criticismo entre eles era transparente, tudo era assimilado de forma bem humorada. Havia um sentido de colaboração entre a equipe. Tive encontros marcantes, com o professor Michael Kirby, por exemplo. Ele fez uma pesquisa sobre performance futurista na Itália. Ele era também artista visual. Deu cursos sobre vanguardas. Outra influência marcante foi do professor Brooks McNamara. Ele trabalhava com o tópico do “entretenimento popular”: arte de feira, teatro amador, circo, teatro de revista, dentre outros. Outra professora interessante era Barbara Kirshenblatt-Gimblett. Barbara foi para a Índia com Schechner. Brooks publicou artigos e livros com Schechner. Eu peguei um momento importante do departamento, o que me ajudou a entender o que hoje eu chamo de “teatro fora do teatro”. Com Brooks e Schechner entendi a questão do ritual e do teatro ambientalista. O que me chamava atenção era que Schechner era diretor de teatro e, ao mesmo tempo, acadêmico. Antes eu via tudo em separado. Schechner conseguia conciliar as duas coisas e trazia para a aula pessoas importantes do mundo artístico, como Allan Kaprow, Linda Montano, Eugenio Barba. Esses três primeiros anos em Nova York me marcaram muito. Lembro-me também que nesse período fiz um curso: “Nova York, uma Cidade Secreta Africana”, dada por um importante professor da Universidade Yale, que veio dar um curso no departamento de Estudos da Performance. O curso transformou totalmente a minha abordagem. Fiquei fascinado com Robert Farris Thompson, ele apresentava o mapa de Nova York e mostrava as diásporas vindas da América e da África. Aprendi sobre a cultura popular norte-americana com a presença dos ritmos e formas africanas de ser naquele país. A partir daí comecei a pensar que esse seria o meu trabalho quando eu retornasse para o Brasil. Depois do mestrado, eu queria criar um campo de estudos das performances afro-brasileiras. É basicamente a partir daí que faço o concurso na UNIRIO. Foi no mesmo tempo em que comecei a escrever sobre candomblé e umbanda. Publiquei quatro livros importantes pela Editora Record, que é a maior do país. Ela lançou meus livros para todo o Brasil. Eu me torno nessa época um autor importante da religião afro e passo a ser chamado de “macumbeiro” e “performeiro” na Escola de Teatro. Eu ouvia todos os tipos possíveis de críticas, pois, ao invés de trazer autores clássicos norte-americanos como Eugene O’Neill e Tennessee Williams, eu queria trabalhar performance com temas afros. Voltei para fazer o Doutorado na NYU, em 1993, porque no Brasil não havia nenhum programa com algo sobre o que eu buscava. Apenas programas de pós-graduação em Antropologia e História, porém, com uma visão diferente sobre o que eu queria com os Estudos da Performance. Quando retornei ao departamento de Estudos da Performance, quase dez anos depois do mestrado, a ideia inicial era fazer uma pesquisa sobre Candomblé e Artes Cênicas. Contudo, quando cheguei lá, durante um curso com Brooks McNamara, ele me perguntou se eu gostaria de fazer uma tese de doutorado sobre Carmen Miranda, pois eu havia escrito um ensaio super interessante para ele. Ele me disse que ainda não havia nenhuma pesquisa sobre esta artista e que, casualmente, ele era o curador do acervo de Lee Shubert, produtor que havia levado a Carmen Miranda para Nova York. Havia muito material inédito sobre ela que ele conseguiu me disponibilizar do acervo. Lembro-me que tinham umas três ou quatro caixas com documentos sobre a sua vida. Vi que Carmen Miranda estava no meu caminho e fiz uma tese sobre ela que se chamou: Carmen Miranda: An Afro Brazilian Paradox. Refleti sobre como uma portuguesa adotou o samba criando a moda da “baiana” e como ela exportou isso tudo se transformando em “latina”, ou seja, esse paradoxo que está dentro e fora da cultura.

 

Zeca Ligiéro acompanhando a visita de Diana Tayor à UNIRIO para a fundação do Instituto Hemisférico de Performance e Política em 1999. Acervo pessoal de Zeca Ligiéro

 

Zeca Ligiéro com Richard Schechner em Nova York em 2011. Fotografia de Yara Ligiéro

 

DAVI GIORDANO: Depois do mestrado e doutorado na NYU, como seguiram suas parcerias com a tal instituição?

 

ZECA LIGIÉRO: Em 1998, defendi minha tese de doutorado e, em seguida, fiz um evento na NYU sobre performance afro-ameríndia. Levei para Nova York Kaká Werá e Mãe Beata de Iemanjá. Fizemos um seminário afro no departamento de Estudos da Performance. Estiveram presentes vários brasilianistas como Henry John Drewal e Charles Daniel Dawson, além de professores da instituição, dentre eles Barbara Browning e Diana Taylor. Não cheguei a ter aula com ela, só que nos conhecíamos. Esse seminário foi muito bem sucedido e Diana Taylor gostou muito. Em seguida, ela me chamou para ser um dos fundadores do Instituto Hemisférico de Performance e Política. Na época achei esse plano demasiadamente ousado. Mas fiquei fascinado com a ideia que vislumbrava uma rede de computadores integrados entre Peru, México, Estados Unidos e Brasil. Além disso, o plano tinha como objetivo um encontro anual em cada um desses países. A UNIRIO se tornou a representante do Brasil e fizemos lá o primeiro encontro, apesar de não termos uma infraestrutura adequada. Foi uma coisa que eu inventei e resolvi fazer. Pedi apoio da reitoria. Recebemos apoio da fundação Pró-UNIRIO, da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], além da Funarte [Fundação Nacional das Artes], do Centro Cultural do Banco do Brasil, da Secretaria de Cultura do Município, entre outros. A partir daí fui construindo uma relação maior com a NYU e com Diana Taylor.

A NYU e a UNIRIO firmaram parceria para um evento com mais de cem participantes dos Estados Unidos, México e Peru, e com artistas convidados, como Augusto Boal, Denise Stoklos, Richard Schechner e Guillermo Gómez-Peña. A partir daí a UNIRIO se abriu para o NEPAA, Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias criado também no mesmo ano do Instituto Hemisférico, em 1998. Ganhamos um espaço próprio de trabalho na reitoria com a instalação dos computadores e servidores doados pela NYU. Fomos um dos precursores de redes de cursos on-line nas universidades. Entre 1999 e 2001, fizemos muitos cursos com aulas integradas com universidades desses três países. Nesses anos, a NYU enviou apoio financeiro para o Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias que conseguimos transformar em bolsas. Depois a UNIRIO precisou da minha sala que estava na reitoria e, assim, negociei para fazer uma sede onde estamos atualmente. A partir daí o NEPAA se instalou definitivamente e ganhamos uma estrutura física maior de trabalho. No ano de 2018 comemoramos vinte anos.

 

DAVI GIORDANO: Você fundou o Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias (NEPAA) em 1998 e até hoje segue como coordenador em intensas atividades. Como você identifica que tais ações vêm inspirando reformulações ou recriações curriculares de outras universidades e cursos de Artes Cênicas em nosso país?

 

ZECA LIGIÉRO: Eu terminei o mestrado em 1988 e o doutorado em 1997, um ano depois criei o NEPAA. Ele surgiu como um desejo de criar na Universidade um campo sobre as performances culturais afro-ameríndias. No mundo acadêmico brasileiro havia apenas estudos da área nos campos da Antropologia e da História, só que nada específico na área dos Estudos da Performance. Desde as primeiras dissertações e teses foram abertos caminhos para pesquisas sobre danças populares, religiões afro-brasileiras e estudos de outras culturas. Foram inúmeras pesquisas, ao todo mais de cinquenta já concluídas. Outra coisa são as coorientações e os pós-doutorados que eu tenho desenvolvido. Doutores de outros estados costumam vir trabalhar em nossa linha. Já trabalharam comigo, em estágios de pós-doutorado, Oswald Barroso (que é um nome importante do teatro e da cultura popular no Ceará), da Universidade Estadual do Ceará; Miguel Santa Brígida, da Universidade Federal do Pará; Cláudio Alberto Santos, da Universidade Federal de São João del-Rei; Licko Turle, da Universidade Federal da Bahia; Marcos Alexandre, da Universidade Federal de Minas Gerais; entre outros. Tem também uma variedade de ex-orientandos que estão levando essas ideias para diversos lugares. Outra coisa importante de frisar é que no NEPAA eu ainda sou um pesquisador solitário. Não há outros colegas da linha de performances culturais junto comigo. Isso é uma questão que me preocupa, pois não sou imortal e vou me aposentar algum dia. Não tenho ainda herdeiros no corpo docente da UNIRIO. Nas academias, percebo que tem mais gente interessada na Arte da Performance do que nos Estudos das Performances Culturais. A Arte da Performance ganhou uma dimensão que saiu do museu e passou para a rua. Antes era algo mais voltado para as Artes Visuais. Aos poucos se tornou algo de maior impacto social, como a arte relacional. Com isso, os Estudos da Performance ganharam um impacto maior nesse ramo de produção artística que não é exatamente a minha área. Também expandimos caminhos nesse sentido. Tania Alice e eu, por exemplo, abrimos uma colaboração com duas universidades da Bélgica através das quais estão sendo criados intercâmbios acadêmicos. E nos associamos com o professor Charles Feitosa e o seu POP-LAB [Laboratório de Estudos em Filosofia Pop]/UNIRIO, que mistura filosofia e cultura popular. Por outro lado, as atividades do Instituto Hemisférico de Performance e Política, das quais temos participado constantemente, reúne, a cada dois anos, artistas, performers, ativistas e acadêmicos de vários países do continente em encontros bianuais, constituindo também um formidável acervo. Caso queiram visitar a página do NEPAA, acionem: <http://hemisphericinstitute.org/hemi/fr/modules/itemlist/category/572-zeca>.

 

DAVI GIORDANO: A partir da suas experiências nacionais e internacionais, você poderia falar como as pessoas vêm compreendendo e desenvolvendo diferentes percepções sobre os Estudos da Performance em cada região, como no Brasil, Estados Unidos e França? Quais seriam as diferenças e singularidades da forma como cada cultura se apropria desse novo campo de produção de conhecimento?

 

ZECA LIGIÉRO: Eu não colocaria em termos de regiões geográficas e sim agrupamentos por questões. Você tem questões de representação e do feminismo, por exemplo, que são mais debatidas em algumas universidades. Já a questão da Teoria Queer ganha um forte movimento em outras universidades. Assim como a questão da performance da mídia, que possui diversos departamentos interessados. Eu penso que é difícil mapear isso tudo porque os programas estão sendo criados recentemente, de seis anos para cá. Não tenho esse alcance de análise ainda. Agora, por exemplo, estou fazendo uma colaboração com um grupo de professores e pesquisadores do Canadá que estão interessados em tradição oral com questões ameríndias da América do Norte. Não é exatamente um departamento e sim um grupo de professores de várias universidades que levantam fundos para movimentar esses debates. Estamos nos encontrando já em nosso terceiro ano e ainda não publicamos nada especificamente. Não sabemos definir o que acontecerá. Há muita coisa acontecendo que a gente ainda não consegue mapear. A minha sensação é de que estamos diante de um campo grande, que está em constante expansão. Eu não conheço nada de Estudos da Performance na Ásia. Já estive lá três vezes e me pareceu ainda tudo muito tradicional. Assim como na Índia, na China e na Coreia do Sul. Pode ser também que eu ainda não tenha entrado em contato com alguma produção mais consistente de lá. Percebo que há muitos núcleos e iniciativas que ainda estão embrionários. Algumas coisas do Japão me parecem muito interessantes, mas não tenho contato específico.

 

DAVI GIORDANO: De que forma você identifica o crescimento dessa área em nosso país?

 

ZECA LIGIÉRO: Eu acho que tem uma experiência anterior aos Estudos da Performance no Brasil que é a Etnocenologia. Ela foi implantada na Bahia por Armindo Bião, que tinha um contato direto com Jean-Marie Pradier na França. Eu diria que é uma visão francesa dos Estudos da Performance, embora tenha uma conceituação mais específica. Talvez pela própria reformulação francesa, ela seja um pouco menos antropológica e mais sociológica, e também voltada para os estudos da linguagem. Na Bahia tem uma série de pesquisadores trabalhando com a Etnocenologia. A Universidade de São Paulo (USP) é outra universidade que trabalha bastante com os Estudos da Performance, principalmente com o viés da Antropologia de Victor Turner. Tem o Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA) da USP, liderado pelo John Cowart Dawsey. Há dez anos entrei em contato com eles e percebi como estão muito organizados e produtivos. Eles têm um número de pesquisadores mais atuantes. Também dos últimos cinco anos para cá teve a Universidade de Goiás que criou o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos das Performances Culturais liderado pelo professor Robson Camargo, reunindo pesquisadores do Brasil central com grande relevância para a área. Sei também de algumas pessoas que estão buscando levar pesquisas afins no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Isso é o que sei dos polos de atuação aqui no Brasil. Leda Martins, Sara Rojo e Marcos Alexandre são nomes importantes do Departamento de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e estudam com profundidade um vasto repertório de performances.

 

DAVI GIORDANO: Como você enxerga o futuro para aqueles que dedicam suas pesquisas e artes para essa área?

 

ZECA LIGIÉRO: Eu acredito que os Estudos da Performance têm um futuro grande pela frente. Hoje podemos considerar que quase tudo é performance. Só não é performance aquilo que você faz inconscientemente para si mesmo. Embora, mesmo assim, muitas vezes, em nossos sonhos, atuamos para nós mesmos! Tudo o que você faz consciente de alguma maneira é performance, pois é um comportamento em relação ao outro, para o outro. Os Estudos da Performance são importantes porque vivemos uma sociedade em que tudo é representado. Existe performance enquanto representação, existe performance enquanto ressignificação, existe performance enquanto disfarce, existe performance enquanto ritualização. Com isso acho que temos um campo inesgotável de possibilidades. Quando você observa um antropólogo fazer um estudo de campo, você enxerga ele recorrendo aos Estudos da Performance porque em muitos casos a antropologia sozinha já não dá conta. Assim é também com o historiador, com o jornalista, e até com o político que contrata uma equipe de marketing para estabelecer a sua performance para a próxima eleição.

 

Amir Haddad, Zeca Ligiéro e Augusto Boal em memorável encontro na UNIRIO em 2008. Acervo pessoal do artista

 

DAVI GIORDANO: Você é um dos grandes parceiros na difusão do Teatro do Oprimido em âmbitos de arte e pedagogia no Brasil e no mundo. Você poderia falar sobre a sua relação com Augusto Boal e seu acervo?

 

ZECA LIGIÉRO: Primeiramente eu tive relação com a obra de Augusto Boal, não com a pessoa, assim como todo estudioso de teatro, ou seja, o contato com as suas ideias, sendo ele um dos integrantes do Teatro de Arena e fundador do Teatro do Oprimido. Na década de 1980, eu trabalhava com pobres e operários de um grupo de base da Igreja da Libertação em Uberlândia. Era uma igreja que tinha uma relação direta com os movimentos sociais. Eu lia os livros do Boal e empregava os seus jogos. Contudo eu achava que era uma coisa muito centrada na luta de classes. Eu estava mais interessado na libertação do artista, do criador. Eu era mais reichiano e queria tirar as amarras do corpo, libertando a emoção do indivíduo, em uma perspectiva do contato que tive com Angel Vianna e a uruguaia Graciela Figueroa e Amir Haddad.

Só comecei a mudar a visão sobre Boal quando fui para Nova York. Chegando lá, vi na estante da livraria da NYU vários de seus livros. Percebi o quanto ele era importante como teórico do teatro. Boal já tinha uma relação com a NYU e ia lá todo ano oferecer cursos. Schechner me perguntou se eu o conhecia, eles eram amigos. Na minha dissertação de mestrado, Theater Beginning with the Community, falo do Boal. Porém, naquela época, eu ainda discordava um pouco de suas teorias, principalmente da sua célebre frase: “Teatro como arma.” Achava que o teatro era mais do que arma. Eu via o teatro como ritual, como festa, como encontro.

Somente alguns anos depois, durante o primeiro evento do Instituto Hemisférico na UNIRIO (em 2000), eu conheci pessoalmente o Boal que veio dar uma palestra. Vi que ele era um senhor super amável e fiquei fascinado com as suas palavras. Vi que ele não tinha nada a ver com esta ideia de uma pessoa dura e sectária. Um tempo depois, em 2004, eu estava dando um curso no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO sobre “Teatro e Comunidade”, quando o Licko Turle sugeriu convidar o Boal para dar uma palestra. Ele veio e eu filmei tudo. Na época ele estava trabalhando com a “Estética do Oprimido”. A meu ver, o Boal sai da coisa restrita do teatro didático, panfletário, comunista e vai para algo próximo do anarquismo. E aí, mostra-se um humanista sensacional e, a meu ver, aproxima-se das ideias da Nise da Silveira, de Herbert Read, e de tantos outros libertários. Nisso, ao invés da costumeira e renitente frase “Teatro como arma”, ele passou a afirmar: “Todo mundo nasce artista. A sociedade assassina a arte que o indivíduo traz.” Isso me cativou mais, pois ali eu via uma nova pedagogia ainda mais radical. Após a participação no meu curso no PPGAC, trocamos vários e-mails. Achei muito bacana, pois ele foi o único entrevistado que teve o cuidado de editar a própria fala. O livro foi publicado em 2009 [2]

Lembro-me também que, no começo de 2007, eu sou procurado pelo filho do Boal que estava interessado em fazer um vídeo sobre o trabalho do pai e queria que eu o ajudasse de alguma maneira. Esse trabalho de vídeo nunca aconteceu, só que nessa oportunidade começamos a conversar sobre a preocupação do acervo do Boal. Ele morava em frente à praia (do Arpoador) e o material estava se deteriorando. Nisso perguntei se o Boal não gostaria de trazer o acervo dele para a UNIRIO. Ele adorou a ideia. Fiz o projeto para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) para trazer o acervo dele para a UNIRIO e foi aprovado.

Em 2008, tivemos também o célebre encontro entre Boal e Amir Haddad, uma conversa de quase duas horas que ocorreu nos jardins da UNIRIO. 

Boal morreu alguns meses depois. Antes de sua morte, ele já havia enviado uma primeira parte de tudo que ele havia produzido e queria que estivesse conosco. A segunda parte veio somente após o seu falecimento. Só as coisas mais recentes nunca chegaram. Geralmente isso acontece. Quando a pessoa morre, a família retém os últimos arquivos e as coisas mais inéditas, como os computadores e HDs aos quais não tivemos nenhum acesso. 

Nesse tempo, li todo o material que ele disponibilizou, pois eu era o curador do acervo. Conheci toda a sua obra. Fizemos um levantamento de tudo o que tinha no acervo. Depois a família pediu o acervo de volta. Eu fiquei apenas com o acervo ideológico e pedagógico, pois as pessoas continuam pesquisando o Boal, o Teatro do Oprimido, e eu mesmo já orientei sete pesquisadores nessa linha, dentre eles, mestrandos, doutorandos e pós-doutores. Cheguei a publicar vários artigos em português, espanhol e inglês inspirados em suas preocupações e práticas.

O grupo GESTO, fundado no Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias, já realizou anualmente cinco jornadas internacionais do Teatro do Oprimido nas universidades.

Cheguei a montar também um espetáculo na Colômbia, em 2009, em que eu tive como base a obra de Boal. Eu estava emocionado com a sua morte e pleno de sua ideologia. A Colômbia estava em intensa ditadura e em guerra com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Havia a questão da denúncia, da tortura, da repressão. Montei esse espetáculo que contava a história da América Latina a partir de uma óptica afro-ameríndia e dos pueblos latinos a partir da resistência em relação ao colonialismo. Utilizei a figura do Boal em cena comentando algumas coisas contrapondo com as suas próprias peças. Como eu estava pesquisando sobre a obra dele, eu tinha muitas entrevistas disponíveis. O espetáculo se chamava Noticias de las Cosas Pasadas. Nunca pensei que Boal seria tão atual, tudo se assemelhava à época em que ele tinha escrito suas histórias. O espetáculo ficou duas semanas em cartaz no Teatro Camarín del Carmen, com um elenco de treze estudantes da ASAB, a Escola de Teatro da Universidade Distrital Francisco José de Caldas de Bogotá, em 2009.

 

Zeca Ligiéro, frames do vídeo Performance Afro – Amostração, 2017

 

DAVI GIORDANO: Assim como você, eu também desempenho muitas atividades profissionais, embora eu compreenda que todas elas estão relacionadas essencialmente pela arte, pela escrita, pela pedagogia, e assim por todas as questões que me tocam e que acredito me envolver seriamente com compromissos éticos e de propósitos pessoais. Penso que hoje vivemos em um mundo em que: se você não sabe fazer nada, a sociedade te apoia a encontrar um ofício. Se você sabe fazer bem uma coisa, todos vão te parabenizar. E se você sabe fazer muitas outras coisas e bem, a sociedade buscará lhe oprimir e julgar. Como você encara esse desafio de se assumir enquanto um profissional múltiplo e com muitos interesses? Em que medida a performance colabora para lidar com esses diferentes papéis sociais em sua vida e profissão?

 

ZECA LIGIÉRO: Eu acho que a grande dificuldade é você com você mesmo. Porque o ambiente em que a gente vive sempre nos empurra para a especialização de um único ofício. Na especialização, você acaba abandonando as outras habilidades que você tem para se concentrar em desenvolver uma que vai lhe dar o lucro, ou a sobrevivência. Às vezes a especialização pede que você fixe elementos de sua arte para que você não passe fome. Ou seja, você fica escravo das suas escolhas que deram certo. No meu caso, eu não optei por sobreviver com apenas uma das minhas artes. Fui forçado pelo meu próprio ser que é inconformado e com grande dificuldade de me vender. Eu sou vítima de mim mesmo porque sou acometido por ideias e sonhos. Já tive fases de ficar deprimido por isso. Acabei me fixando no trabalho acadêmico como meio de subsistência, mas sem abandonar as minhas criações, que ao longo do tempo se tornaram menos conhecidas que o meu trabalho acadêmico.

Até conto isso no meu novo livro. Já me senti menor porque vários amigos que começaram comigo no teatro foram para a televisão e deslancharam na carreira. Outros ficaram no teatro e se afirmaram como atores. Eu nunca fui só ator. Sempre fui ator, diretor, autor, e depois ainda me tornei acadêmico. Também tive minha carreira como cartunista e ilustrador. Às vezes me cobrava: afinal, sou reconhecido pelo quê? Então acho que a maturidade me ensinou que o importante é ser feliz dentro do que aparece no seu processo de autoconhecimento, da individuação como quer Carl Gustav Jung. É uma frase do Qorpo Santo: “Hoje sou um, amanhã serei outro.” A gente vai mudando fisicamente ao longo da nossa vida, ao mesmo tempo que a gente muda dentro de si. Acho que as necessidades vão levando a gente a complementar a nossa vida ora com uma arte ora com outra. Eu sou assaltado por ideias, elas ficam germinando dentro de mim até transformá-las em algo concreto. Tem um mestre que eu conheci da tradição popular, Mestre Carnaúba, um velhinho de noventa anos. Ele era repentista, compositor, poeta de cordel, curandeiro, pai de santo e músico. Eu o entrevistei e perguntei: “Como é possível ser isso tudo?” Ele me disse: “Amigo, os encantos estão aí. É preciso abraçar os encantos.” É essa a sensibilidade que a gente tem. Se a gente percebe os encantos que nos tocam, a vida fica mais alegre e bonita. Acho que é por aí que vou vivendo a minha vida, aprendendo com a arte de viver e ensinando e praticando a arte com quem me acompanha.

Neste momento, terminei meu vídeo Performance Afro – Amostração [3] e, esta semana, inaugurei meu canal no Youtube [4]. Estou revisando o livro Iniciação à Umbanda, que vai ser lançado em Nova York na versão inglesa, enquanto aguardo o seu relançamento pela Editora Pallas após o carnaval. O livro Malandro Divino: A Vida e A Lenda de Zé Pelintra vai ser relançado ainda este ano pela Editora Prismas. Terminei meu livro de poesia Folhas de Levante e estou procurando editora, e ainda quero publicar o livro para crianças de todas as idades chamado: Histórias de Coisas que a gente Não Conhece. Enquanto isso, preparo um novo espetáculo, Sociedade Secreta dos Palhaços Afro-Ameríndios, com estudantes da UNIRIO. E la nave va

 

DAVI GIORDANO: Performers são ativistas culturais, ou melhor, agentes de provocação social. Diante dos últimos acontecimentos recentes em nosso país em relação à censura, com manifestações de ódio, sobre eventos e produções artísticas, como a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira em Porto Alegre; o artista Wagner Schwartz na performance La Bête no Museu de Arte Moderna (MAM) em São Paulo, que sofreu denúncia de pedofilia; a suspensão dos eventos com temáticas LGBTQIA+ relacionados ao “Outubro – Mês da Diversidade”, que ocorreria no Espaço Municipal do Castelinho do Flamengo no Rio de Janeiro; o bailarino Igor Cavalcanti, que teve sua obra confundida com surto psicótico e foi detido à força e levado para ser analisado por um psiquiatra em Caxias do Sul (Rio Grande do Sul); entre outros casos, como você analisa essa situação dos artistas de performance diante desse estado de retrocesso cultural? Em que medida essas ações políticas de opressão podem extinguir um campo possível de produção cultural, ou, por um sentido oposto, podem ser apenas estímulos criativos para que possamos nos reinventar? Como nós artistas de performance podemos lidar criativamente com tais situações de forma a manter um posicionamento crítico e social ao preservar a natureza transgressora da arte em sua livre forma de expressão?

 

ZECA LIGIÉRO: Acho que você de alguma maneira responde à própria pergunta. Acho que há duas situações. Uma situação internacional, em que a direita está no governo. Isso de alguma maneira estimula uma postura de militarização, de mobilização nacionalista, um discurso geral de uma ordem progressista da família, da preservação de direitos, da moral. Essa coisa toda é no fundo bastante econômica, de puro domínio neocolonialista. 

No Brasil estamos vivendo essa ditadura do Congresso, da bancada ruralista, da igreja evangélica. Um Congresso do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) que mantém o fascismo brasileiro. Eu acho que esse fascismo sempre esteve presente no Brasil no nível da família e da classe média. A burguesia vive o fascismo com mais liberdade, pois tem o poder econômico. O povo assimila o fascismo por várias questões como a ignorância, além da maneira como várias igrejas têm encarado a religião como fascismo. Cristo não foi um fascista, Cristo foi um libertário. Acho que tudo isso influencia uma moral e qualquer pessoa que levanta alguma questão tem vários argumentos nesse sentido. 

Por outro lado, eu percebo que muitas coisas que há quarenta anos aconteciam não vinham à tona. Hoje temos a internet. Por exemplo, você falando a respeito desse incidente no Rio Grande do Sul me lembra o incidente do Qorpo Santo, que foi preso à camisa de força e sofreu vários tipos de repressão. Na época ninguém soube. Isso foi descoberto muitos anos depois por Guilhermino César. Ele foi julgado como louco. Qorpo Santo era vanguarda. Ele seria comparado a Alfred Jarry se fosse publicado em francês. Então acho que o que acontece hoje em dia é que tudo é publicado e postado na internet. Então sabemos das coisas em um tempo real, quase simultaneamente aos fatos. Acredito que este é o momento mais estimulante para fazer performance. Se você pensar, os grandes períodos da música popular brasileira aconteceram durante a ditadura. Agora estamos em um momento para gerar muita coisa criativa. Ainda está uma situação geral acomodada com essas firulas, esse governo, a Suprema Corte, o Congresso, em que qualquer piada fica sem graça diante disso. Precisamos muito do humor. Tem muita desculpa, muita coisa falsa, muita performance da mídia. Neste momento o fascismo está se sentindo à vontade para impor as suas regras, a sua maneira de pensar, em nome de uma falsa melhora econômica. Até nossos sonhos correm dentro de uma raia determinada do que devemos comprar e de como devemos ser felizes. Está na hora de a gente fazer muita performance para questionar, para provocar estranhamento, para mudar esta realidade. 

 

NOTAS

[1] Ver o filme De Como uma Beata Louca Teve Relações Sexuais com um Galo e Pariu um Pombo em: <https://vimeo.com/141465660>.

[2] LIGIÉRO, Zeca; PEREIRA, Victor Adler; TELLES, Narciso (Orgs.). Teatro e Dança como Experiência Comunitária. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.

[3] Ver o vídeo Performance Afro – Amostração em: <https://youtu.be/Px0wxKEZ8BA>.

[4] Ver o canal do Youtube de Zeca Ligiéro em: <https://www.youtube.com/channel/UC9oWPnRUxRQlJcUYrieCgYA>.

 

 

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

GIORDANO, Davi. “Entrevista com Zeca Ligiéro”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2018 eRevista Performatus e o autor

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