“Uma Ilha de Edições” com Tania Alice

 

ID/ RG/ Passaporte: Tania Alice; professora de Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio); doutora em Letras e Artes pela Universidade de Aix-Marseille I; Pós-Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ, tendo como linha de pesquisa: estudos da performance e discursos do corpo e da imagem. Performer, encenadora, escritorapesquisadora. Identidade secreta: heroína do cotidiano. Gigantesca força meditativa, capacidade de amar em proporção máxima, poderes inigualáveis. Beleza de Afrodite e velocidade de Hermes. 

Encontro com Tania e aguardo a revelação bombástica de sua dupla personalidade, furo jornalístico, especial para a revista Performatus. Não me surpreendo: são múltiplas as representações de sua identidade. É meu o desafio documentá-las, as representações, sem aparatos tecnológicos, completamente desarmada, banal, caderneta encapada e lápis-borracha em mãos. Seja bem-vinda, Experiência Artística da Memória.

Estamos no centro do Rio de Janeiro. A cidade está arreganhada, dando cor à alguns poucos prédios antigos, tombando vários prédios tombados, enfarinhando sua zona portuária com o glúten – o qual massacra o digestivo carioca, tal qual o cimento dos novos empreendimentos – e acentuando a miséria humana com o crack. Tal droga mapea a miséria flutuante da cidade. O Jacaré, a entrada da Ilha do Governador e a Gamboa, como podemos observar nesse início de 2013, são pontos da cidade que atraem mais de 500 moradores de rua ou sem-teto. Estes invadem sobrados antigos que perpetuam o ambiente do cortiço já descrito por Aluísio de Azevedo no início da história do desenvolvimento carioca. Todo o resto da cidade é ocupado por turistas: o bonde da Zona Sul, o teleférico do Complexo do Alemão e o bonde-fantasma de Santa Teresa. Entre usuários de craque/ moradores-de-rua/ invasores identificamos crianças, jovens, adultos e idosos – e não é preciso visão de raio x. A Rua do Livramento é uma dessas ruas invadidas por cidadãos que não conseguem participar da sociedade que se estabelece, acentuando drásticos contrastes.

 

Heróis do Cotidiano se infiltrando na Parada Militar no Rio de Janeiro. Foto de Cris Isidoro.

 

Estamos ali no centro da demolição. Dali da praça Tiradentes, renovada, Tania aponta um prédio de esquina, na Avenida Passos, muito antigo em contraste com a luz moderna de um hotel. É deste modo que o Rio foi e segue sendo construído. Entre duas catedrais, protestante quase gótica e católica moderna, assistimos o prédio influenciado pela estética francesa, infiltrado, ruindo em memórias coloniais. Ali, ao seu lado, um prédio de concreto, decorado com o ‘cimento queimado’: moda importada, contemporânea.

Caminhamos em direção à um café-sebo que ocupa a antiga sede da Cia. de Mistérios e Novidades, transferida para a Gamboa. Passamos pelo Teatro João Caetano, pelo Real Gabinete Português de Leitura e pela praça atrás do Instituto de Ciências Sociais e Filosofia da UFRJ, espaço já ativado por Tania e seu coletivo de performance Heróis do Cotidiano. Seguimos trocando ideias e percebo seu mais imbatível superpoder: o ouvir.

 

NATHÁLIA MELLO: Tania, gostaria de iniciar a conversa sobre o ‘coletivo Heróis do Cotidiano’. Vocês estabelecem algum contato com o ‘Teatro de Operações’ que também está associado à Unirio? Percebo uma identidade visual comum aos dois coletivos que circulam no espaço comum da Unirio.

 

TANIA ALICE: Conheço e gosto muito do trabalho deste grupo mas nunca trabalhei com eles, fora uma pequena contribuição em um seminário que organizaram; talvez exista uma afinidade por proximidade, por conta da questão do A(r)tivismo. Os Heróis do Cotidiano estabelecem-se neste lugar liminar entre projeto social e arte, podendo estar relacionados ao conceito de ‘arte socialmente engajada’ (Socially Engaged Art) de Pablo Helguera. Tanto que o Coletivo teve como momento de reflexão o questionamento se era importante estabelecermos se o que fazíamos era arte, porque não buscamos virtuosismo corporal ou estético. Buscamos o cuidado poético de si, do outro e da cidade. O herói do cotidiano direciona o foco para o invisível, o esquecido, o pequeno. Das várias pessoas que existem na rua, de todos os tipos, das mais variadas profissões, algumas realmente são mais invisíveis que outras. Uma vez, os heróis do cotidiano estavam em ação e deitaram-se ao lado de moradores de rua, quando uma pessoa comentou em voz alta sobre a ação do coletivo: isso é que é arte! A resposta veio do transeunte em momento inesperado. Voltando a questão dos Coletivos, há Coletivos com os quais estabelecemos relações de parceria, como o Desvio Coletivo e o Coletivo Pi de São Paulo, o Movimento Cidades Invisíveis ou os Filhotes de Leão, por exemplo. Acreditamos muito na força da parceria e nas redes visíveis e invisíveis.

 

Heróis do Cotidiano na Praça São Francisco Xavier do Rio de Janeiro. Foto de Gilson Motta.

 

NATHÁLIA MELLO: Seu texto O re-enactment como prática artística e pedagógica no Brasil, publicado na E-misférica, traz uma reflexão sobre seu processo pedagógico com os alunos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), da disciplina Análise de Temas e Autores Teatrais. Como foi trabalhar com o conceito de re-enactment nesse contexto? Qual seria a tradução possível da expressão re-enactment para a língua portuguesa?

 

TANIA ALICE: Talvez ‘reconstituição’ seja uma tradução possível. Foi muito interessante pensar o re-enactment de uma performance através da própria feitura. O aluno foi convidado a buscar um artista da história da performance e, através do processo de identificação com este artista, pensar qual seriam os elementos presentes na reconstituição de um trabalho desse mesmo artista realizado por ele mesmo, a partir de suas inquietações e vivências. Pessoas que a princípio não se identificaram com a prática acabaram se surpreendendo com os possíveis desdobramentos da linguagem performática. A performance abre espaços para a resistência e para a liberdade. Tudo é possível, inclusive o não querer! O ‘não querer’ já é uma energia, uma qualidade organicamente articulada como linguagem. O estado de presença é o elemento fundamental do trabalho com a performance. O estado de presença potencializado pela prática da meditação, seja sentada, em pé ou em movimento – que trabalho dentro da sala de aula – torna-se material, pesquisa e produto artístico. A performance é gerada pelo próprio estado de presença. Re-enactment ocorre como a ‘repetição com diferença’ e afetações diversas são geradas nesse novo relacionamento entre o roteiro do trabalho original e o novo corpo que o vive. A previsibilidade contida no processo de reconstituição sofre também interferência desses novos estados, espaços diferentes e pessoas compartilhando essa experiência. Os trabalhos realizados foram interessantíssimos, muitos são citados no artigo da E-misférica que publiquei sobre esta pesquisa coletiva.

 

Francis Alÿs, Paradox of Praxis RE-ENACTMENT. Foto de Laura Sämy

 

NATHÁLIA MELLO: O que move sua prática?

 

TANIA ALICE: O amor! Gostaria muito de falar sobre a penúltima experiência do nosso Coletivo, que foi um recente trabalho de ‘teatro performático’ impulsionado pela insatisfação generalizada dos membros do coletivo pela política de correria atrás de editais e o produtivismo artístico. Estávamos pesquisando a temática da pobreza material, afetiva, relacional, energética, de saúde e fomos para a rua perguntar às pessoas “Por que você é pobre?”. Essa investigação deu nome ao trabalho realizado no Castelinho do Flamengo, o Centro Cultural Municipal Oduvaldo Vianna, através de um esquema de escambos profissionais. Nenhuma das etapas da montagem – produção, ensaio, construção de cenário, iluminação, figurino, divulgação – foi atravessada pelo dinheiro. A troca do que sabíamos fazer ou que tínhamos para oferecer tornou-se moeda. Éramos 15 profissionais trabalhando durante seis meses e em cartaz durante um mês com um espetáculo performático que durava duas horas e meia. Foi uma experiência inesquecível, com uma equipe movida pelo cuidado de si e do outro, longe de preocupações de ego, nome e dinheiro. O espetáculo era dividido em setores: o pobre, o médio e o rico. Cada setor com sua estética, atitudes próprias e público específico. Via-se a pobre mocinha que vendia sua fazenda para investir na Monsanto e casar do Ariano Suassuna, o viewpoint e ativismo hipócrita da classe média, o artista com recital beneficente em sala climatizada com champanhe dos ricos… Organizamos também exposições. Na exposição do pobre, os pobres eram convidados a compartilhar um espaço com objetos relacionados a pobreza com legendas, funk e churrasco onde os performers diziam que estavam ocupando o Castelinho do Flamengo em troca de ter colocado ali alguns objetos comuns, “o que é assim na arte contemporânea”. O ‘médio’ com sua obra justificada por um discurso deleuziano, colocando-se à venda para editais, apresentava o culto do ego. A exposição do rico apresentava seu texto pomposo com tom fictício que transformava crânios de mendigo em obra de arte e onde se via a foto e depoimentos das pessoas que teriam originado os crânios. Além disso, havia uma palestra com um professor convidado sobre o comércio da carne infantil como novo comércio possível e evangélicos com apelo dionisíaco pregando a falsa religiosidade da arte mercadológica com lemas tais quais: “chama a arte que ela vem, por que quem não paga não tem!”. No final, havia uma performance muito comovente de Renata Sampaio: a performer atuou como garçonete circulando e servindo os ricos durante toda o tempo de apresentação. Ao final do espetáculo ela pendurava, em um mural, cartazes de trabalhos do seu portfólio de trabalho com teatro. Na grande maioria das peças, ela tinha participado como representante do clichê da invisibilidade, com personagens como ‘a empregada’, ‘a negra’, ‘a pobre’ ou ‘a sambista’. Neste momento, ela ia tirando a roupa e perguntando se assim (nua) ela era então vista pela plateia, afirmando seu desejo de se tornar visível. Aos poucos, ia se aproximando do grupo de pobres e assumindo suas posturas corporais, questionando os ricos: “Assim você me vê?”. Por que, de fato, quando o rico vê o pobre? O carinho que tivemos com o tema, as pessoas envolvidas e dentro da equipe foi retribuído pela plateia: foi realmente uma experiência de amor.

 

NATHÁLIA MELLO: Quais são os planos para o futuro próximo?

 

TANIA ALICE: Estou, com a mestre de Shintaido Clélie Dudon, dando um curso na Unirio sobre artes marciais e intervenção urbana e rural. Juntamos a pesquisa do Shintaido com a pesquisa performática, deslocando movimentos do universo das artes marciais com seus impactos energéticos para a rua. Estamos compartilhando a pesquisa com 10 alunos da Unirio e vem sendo uma experiência muito interessante. Continuo com as aulas de interpretação IV (na Unirio) onde trabalhamos presença e atenção. Futuro próximo, semana que vem? No dia 6 de Dezembro vou mediar uma Mesa Redonda Itinerante sobre “Criação e Pedagogia da Performance” com Prof. Dr. Marcos Bulhões, Prof. Dr. Marcelo Denny e Profa. Dra. Silvia Heller. A própria mesa é uma performance em si em movimento constante pelos arredores da Urca e termina com um debate na praia. Há também uma ação performativa dos coletivos Desvio Coletivo, Coletivo Pi e Heróis do Cotidiano aqui no Rio de Janeiro, dia 7 de Dezembro: Cegos, inspirada pelo A Parábola dos Cegos (1580), Pieter Bruegel e que questiona a cegueira dos executivos diante do mundo atual. E uma iniciativa dos Coletivos paulistas que estamos produzindo e organizando aqui. Depois embarco para a Amazônia, para oferecer o workshop “A performance como medit-ação” junto com a palestra de mesmo nome em Belém: um sonho…

 

Desvio Coletivo, Coletivo Pi e Coletivo Heróis do Cotidiano na performance Cegos no Rio de Janeiro. Foto de Regina Vasconcellos

 

Tania Alice me convida para participar da ação Cegos no Rio. Com café perfurando o estômago, atual cotidiano, saí para participar da ação Cegos no dia 7 de Dezembro de 2012. 40 graus, 40 performers vestidos de costumes business que foram então cobertos com argila por uma equipe de apoio. A minha procissão dependeu de um controle iniciado no osso sacro e emanado para as pernas. A vibração da caminhada meditativa atingiu o meu ombro esquerdo como se uma flecha inimiga atravessasse osso e músculo. Caminhávamos e uma senhora segurou meu ombro com força perguntando “porque a senhora morreu?”. A impressão que eu tinha é que estávamos caminhando dentro do forno que nos maturava, homens/ mulheres de barro, prestes a nascer, obrigados a refletir o limbo por todo percurso. A orientação de seguir insensível, como homens e mulheres de negócios, conduziu um certo tremor interno, uma respiração também vigorosa. Ouvi pedaços picotados de frases: ‘que porra é essa?’, ‘isso é protesto?’, ‘educação, saúde, corrupção’, ‘a justiça é cega’, ‘Naldo, pega a bazooca (rs)’, ‘isso tá representando a morte’, ‘vocês são muito corajosos’, ‘que lindo, uhúuuu’, ‘isso é contra a violência’, ‘o pessoal tá empoeirado de tanta obra’. Sabedoria instantânea. O BNDES trancou seus portões à mercê de nossa vulnerabilidade. A Petrobrás tentou fechar seus portões, mas os Cegos conseguiram entrar no saguão do prédio e saudar a Alah, meu bom. O trabalho dos coletivos Desvio Coletivo, Coletivo Pi e Heróis do Cotidiano foi um carnaval carioca quente, sem música, sem água, sem fantasia e muita comoção.

 

A entrevista termina quando recebo ainda outro convite da Profa. Dra. Tania Alice para assistir ao espetáculo Atlas de Ana Borralho e João Galante no Festival Panorama 2012. A performance reuniu no palco pessoas de diversas profissões, desempregos e subempregos cariocas. A ação foi apresentada por indivíduos de origens diversas que mesmo assim são, claramente, uma só comunidade. A comunidade carioca vive o momento agudo brasileiro de calor ultravioleta, preços elevados, terror autoritário e corrupção generalizada. O trabalho Atlas refletiu o incômodo atual da comunidade carioca, pasteurizada somente em sua superfície, com muita leveza. Subi Santa Teresa, em uma noite pouco menos embaçada, vislumbrando um futuro de conexões possíveis. Das várias perguntas ainda por serem feitas: como você conseguiu identificar seu superpoder, Tania Alice?

 

© 2013 eRevista Performatus e o autor

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