Entrevista com Renata Carvalho

 

Renata Carvalho

Entrevista a Davi Giordano em 05 de junho de 2018

 

Espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, de Natália Mallo. Fotografia de Luciane Pires Ferreira

 

DAVI GIORDANO: Você se tornou mais conhecida nos últimos tempos devido à encenação O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que teve enorme repercussão de público e crítica e também polêmica em função de censuras e discussões entre arte e gênero. Primeiramente seria interessante que contasse um pouco sobre a sua história de vida. Como foi a sua relação e trajetória com a arte até se tornar uma atriz profissional?

 

RENATA CARVALHO: Comecei no teatro em 1996 aos quinze anos de idade, em Santos, minha cidade transfóbica querida. É nela que me entendo e me descubro artista. Comecei como ator, mas minha feminilidade fez-me ir perdendo papéis ditos masculinos. Em 2002 fundo a Cia Ohm de Teatro e passo a dirigir. Em 2007, assumi minha identidade travesti, passo então a ser diretora. Só em 2012 retorno aos palcos como atriz no monólogo Dentro de Mim Mora Outra, onde contava minha vida e travestilidade, e desde então pesquiso o corpo trans e outros corpos dissidentes nas artes. O Teatro me salvou e continua salvando. Evoé…

 

DAVI GIORDANO: O espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu teve sua estreia em agosto de 2016, no Festival Internacional de Londrina (FILO). A peça possui direção de Natália Mallo e se trata de uma versão brasileira da dramaturgia escrita pela transexual escocesa Jo Clifford. Desde então a peça já foi apresentada em diversos teatros e festivais do Brasil. O espetáculo gerou polêmica em diversas cidades, como Jundiaí, Porto Alegre, Londrina, Taubaté e Ribeirão Preto. Em todos os casos houve uma resistência de grupos fundamentalistas religiosos, juízes de direito e grupos conservadores. Esta situação de retrocesso vem implicada com um crescimento do fascismo que ocorre tanto na política como também na vida cotidiana do Brasil atual. Em sua visão como artista, ativista e personalidade importante da cultura trans e travesti, de que forma você reflete sobre o poder de provocação da arte diante de episódios de intolerância, censura e opressão?

 

RENATA CARVALHO: O espetáculo já foi censurado cinco vezes. Em Jundiaí, Salvador e Garanhuns por ordens judiciais. Rio de Janeiro e Recife por pressões religiosas. Tivemos tentativas de censura em quase todos os lugares por onde passamos. O que move todo esse ódio/mobilização em torno da peça é que comparamos/personificamos/colocamos Jesus em um corpo travesti. Esse corpo travesti, que é mais velho do que eu, esse corpo que carrega marcas, lendas, estigmas, estereótipos. Esse corpo sexualizado, fetichizado e satírico. Esse corpo endemonizado e sujo para determinadas religiões. Esse corpo doente, falso, deslegitimado e criminalizado culturalmente. Jesus pode e já foi representado por todes, mas por um corpo travesti, não pode, é inapropriado. Todes são a imagem e semelhança dele menos nós pessoas trans. O que todas nós queremos com esse espetáculo é naturalizar e humanizar o corpo trans/travesti, pois acreditamos que a arte tem o poder de abrir mentes e corações. Por isso a Representatividade é tão importante. Porque é através do convívio com nossos corpos que podemos diariamente naturalizar e humanizar nossas identidades e presenças. 

 

Espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, de Natália Mallo. Fotografia de Luciane Pires Ferreira

 

DAVI GIORDANOO corpo trans em cena se torna altamente político. Ao interpretar Jesus, você traz a metáfora de travestis, transexuais e muitas outras minorias que precisam e não podem ser salvas pelo “Jesus histórico”. É preciso a reinvenção da imagem de Jesus através do corpo de uma travesti para daí surgir um novo lugar de aceitação, de amor, de compaixão, de relação. A diferença é que, quando interpretada em seu corpo, vemos de forma mais acentuada os estigmas, a marginalização, a violência e as opressões da nossa sociedade. Porém, tais questões são provocadas por muita potência de vida, de crítica e de empoderamento, o que faz com que o espetáculo, em minha visão, seja prioritariamente sobre o amor. É justamente ao nos questionar sobre as estruturas e os mecanismos de opressão que você nos abençoa com visões possíveis sobre a democracia e a liberdade do palco como espelho das questões mais urgentes e essenciais. A figura de Jesus trouxe uma maior visibilidade para a exposição de artistas trans e travestis. Em sua visão, que outros personagens, figuras e narrativas seriam interessantes de serem interpretados por artistas trans e travestis com o objetivo de acentuar este debate sobre arte e gênero?

 

RENATA CARVALHO: A figura de Jesus não deu visibilidade para exposições de artistas trans, ele trouxe e deu voz a uma de nós para levantar essas questões, mas o cenário da arte trans está crescendo pela resistências desses/dessas artistas: Linn da Quebrada, Liniker, Danna Lisboa, As Bahias e a Cozinha Mineira, Wallace Ruy, Dandara Vital, Mel Campos, Ave Terrena, Leona Jhovs, Gabriel Lodi, Juhlia Santos, João Maria Kaisen, Leo Moreira Sá, entre outres. Isto é a cena trans com representatividade de nossos corpos, para assim levantarmos essas e outras questões em torno de nossas vivências e identidades. Somos artistas e queremos ter o direito de interpretar qualquer personagem. Todes os personagens foram feitos para eu interpretar. Só que o fato de eu ser uma travesti me tira o direito de fazer todes eles. O corpo trans não é neutro, ele já vem marcado. Queremos a liberdade desses corpos. Queremos humanizar e naturalizar nossas identidades, corpos e vivências.

 

Espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, de Natália Mallo. Fotografias de Luciane Pires Ferreira

 

DAVI GIORDANO: O seu corpo de travesti em cena traz um debate muito importante que é o lugar de fala, a visibilidade, a defesa de um direito das trans e travestis de estarem em cena. Esta questão do Movimento de Representatividade Trans ganhou muita polêmica com o espetáculo Gisberta, interpretado por Luis Lobianco, o que trouxe também críticas aos movimentos de transfake, como é o caso do ator Silvero Pereira. Muitas personalidades da cena trans, como é o caso de Dandara Vital, se colocaram publicamente em grandes mídias para defender seus discursos e posicionamentos em torno do tema. Que colocações você gostaria de expressar com o objetivo de contribuir para este debate tão polêmico e atual?

 

RENATA CARVALHO: Acho importante que esta questão esteja sendo discutida/debatida dentro da arte. Pois a arte também é um lugar de poder. Dandara é um nome forte e importante do movimento e tem se colocado em momentos fundamentais. É difícil ir contra um discurso hegemônico, e temos artistas trans no Brasil todo nesta luta. Estamos todes juntes buscando Representatividade Trans nas artes. Queremos questionar esse CIStema estrutural que exclui corpos trans dos coletivos, grupos, elencos, peças, novelas, filmes, porque a nossa identidade não é válida, é falsa. Os transfakes fortalecem esse discurso, deslegitimando e muitas vezes estereotipando e tornando nossos corpos satíricos. Precisamos fazer parte do conceito de Humanidade, precisamos conviver com esses corpos, precisamos ter esses corpos presentes, só assim traremos humanidade e naturalização de nossos corpos e identidades. Isto só alcançaremos com REPRESENTATIVIDADE.

 

DAVI GIORDANOVocê é fundadora do Coletivo T, formado por artistas trans (travestis, mulheres e homens trans e pessoas trans não binárias), e também é umas das participantes que criou o Movimento Nacional de Artistas Trans (MONART), o qual possui o Manifesto Representatividade Trans com o objetivo justamente de legitimar o reconhecimento de pessoas trans nas produções artísticas da contemporaneidade. Seria importante que comentasse um pouco sobre o surgimento e desenvolvimento do Coletivo T e também falasse sobre as repercussões do MONART e das ações promovidas atualmente por artistas trans e travestis.

 

RENATA CARVALHO: O MONART têm sua fundação no dia 11 de março de 2017, quando lançamos o Manifesto Representatividade Trans, ou seja, existimos há um ano e pouco. A internet foi um grande facilitador desses encontros. Estamos nos juntando, nos conhecendo, nos afetando e nos empoderando de nossos corpos e vivências. Estamos querendo levar o debate da Representatividade Trans nas Artes para todos os lugares, palcos, sets e afins. Temos artistas Trans do Brasil todo dentro do MONART e, com isso, estamos levando e debatendo essas e outras questões onde nossos braços, pernas e vozes alcançarem. O Coletivo T nasce na urgência para quebrar o discurso hegemônico de que não temos artistas Trans, e mais, que não estamos preparadas ou aptas. É só olharmos para o lado ou estarmos mais antenados, que temos condições de ver váries artistas trans se destacando. O MONART, assim como o Coletivo T, vem contra-argumentar os artistas cisgêneros, mas também a gramática, a literatura, a medicina e o judiciário. Queremos quebrar essas décadas de apagamento, silenciamento, exclusão e genocídio trans.

 

Espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, de Natália Mallo. Fotografia de Luciane Pires Ferreira

 

DAVI GIORDANOVocê participou do Festival de Curitiba de 2018 dentro do espetáculo Domínio Público, que buscou justamente reunir no mesmo palco quatro artistas (você, Maikon K, Wagner Schwartz e Elisabete Finger) [1], que foram alvos de polêmica e atenção sobre censura e liberdade de expressão artística. Como foi essa experiência? Como se deu o processo de criação e relação entre vocês? Quais descobertas mais significativas surgiram desse encontro? De que forma o público do Festival reagiu a esse experimento?

 

RENATA CARVALHO: Domínio Público foi uma grande cura para todes nós envolvidos, depois de tantos ataques. Esse encontro fortaleceu a todes, pois estávamos vindo de um processo doloroso e muito solitário. Esse encontro foi muito potente e me colocou ao lado de artistas realmente incríveis. Primeiro conversamos via Skype e e-mails. Maikon e Wagner vieram para São Paulo e ficamos submersos um mês na Casa Líquida da atriz Júlia Feldens. Esse espetáculo nasce do convite de Márcio Abreu e de Guilherme Weber, curadores do Festival de Curitiba, com produção da Núcleo Corpo Rastreado, com a Gabi Gonçalves. Domínio Público foi construído, debatido, discutido de maneira coletiva com todas as subjetividades e vivências de cada um. Fui muito afetada por esses artistas, aprendi e cresci muito nessa construção. Não falamos mais dos ataques e sim a partir deles, o texto é nosso grande instrumento. Fomos recebidos com bastante surpresa e carinho pelo público e crítica do Festival.

 

NOTA

[1] Maikon Kenpinski é o artista que foi preso em Brasília por performar nu dentro de uma bolha ao se apresentar em frente ao Museu Nacional da República; o artista Wagner fez a performance La Bête no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em que ficou nu e foi tocado por uma criança, gerando grande repercussão nas redes sociais; e, por último, Elisabete Finger, bailarina e coreógrafa, é a mãe que permitiu que sua filha tocasse o corpo de Wagner em sua performance no MAM-SP.

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

GIORDANO, Davi. “Entrevista com Renata Carvalho”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 7, n. 20, abr. 2019. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2019 eRevista Performatus e o autor

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