Entrevista com Raphael Couto

 

Raphael Couto

Entrevista a Davi Giordano, em 16 de dezembro de 2016

 

Raphael Couto, Hidra. Performance apresentada em São Paulo, Brasil. Setembro de 2016. Fotografia de Marcelo Paixão

 

DAVI GIORDANO: Em 2015, você esteve presente na exposição Novos Talentos: Fotografia Contemporânea no Brasil, que foi realizada na Caixa Cultural durante o mês de outubro, na cidade do Rio de Janeiro. A exposição em que você esteve inserido foi coordenada e idealizada por Afonso Costa, e recebeu a curadoria de Vanda Klabin. Este foi um momento muito importante em sua trajetória, pois sua obra foi exibida junto com outros artistas que também estão recebendo o devido reconhecimento da crítica e do público, como Alexandre Mury, Arthur Scovino, Berna Reale, Gustavo Speridião, Luiza Baldan, Matheus Rocha Pitta, Paulo Nazareth, Rodrigo Braga e Yuri Firmeza. Você recebeu bastante destaque da crítica especializada que apontou que seu trabalho revela uma criação artística com potencial de inovação para o cenário da arte brasileira contemporânea. Como você recebeu essa forma de reconhecimento e em que medida isso projetou o seu trabalho para outros contextos de recepção e produção artística?

 

RAPHAEL COUTO: Essa exposição foi bacana por vários aspectos. Primeiro por reunir um grupo de artistas com um reconhecimento bastante avançado na área. Dentre todos os artistas, eu fui o mais jovem. Embora eu tenha um pouco de discordância com o termo “Novos Talentos”, criado pela curadora para abarcar um panorama da fotografia brasileira contemporânea, o mais interessante desse agrupamento é que não era uma exposição de fotógrafos, mas sim uma mostra de artistas que utilizam a fotografia como mais um elemento de suas poéticas. Há artistas que trabalham diretamente com a performance, outros trabalham com um viés político e geográfico, como é o trabalho do Paulo Nazareth, que faz caminhadas pela América Latina e África, ou então o Gustavo Speridião, que registrou os protestos do Rio de Janeiro de 2013 e também alguns levantes políticos no México. O artista que mais trabalha diretamente com a fotografia é o Alexandre Mury. Algo interessante é que, na premiação de fotografia do PIPA do ano de 2015, dos quatro finalistas da premiação, três deles foram artistas que participaram dessa exposição: Gustavo Speridião, Paulo Nazareth e Luiza Baldan. De certa maneira, isso revela que a curadoria da Vanda Klabin abarcou artistas que estão intensamente produzindo e situados numa consolidação da carreira. Outro ponto importante é que isso gerou uma circulação do meu trabalho para fora dos meios artístico e acadêmico da performance. Embora esses sejam circuitos importantes da performance, eles acabam sendo muito fechados em nossa rede de amigos, colegas e profissionais da área. A exposição da Caixa ampliou o meu trabalho para um público que não está dentro desse alcance e me colocou em diálogo com uma diversidade de espectadores. No tempo em que a exposição ficou quase dois meses no Rio de Janeiro, ela deu uma média de dezenove mil pessoas. E depois foi para Brasília onde alcançou em torno de seis mil pessoas. Foi a exposição com mais público que tive na vida. O último ponto interessante é que houve a publicação de um catálogo bilíngue em que Vanda Klabin escreveu uma reflexão sobre o trabalho de todos os artistas, o que gerou um material de imagem e texto com informações acessíveis para pessoas de outros países.

 

Raphael Couto, Patchwork 13, 2012. Fotografia de Tahian Bhering

 

Raphael Couto, Parábola 03, 2013. Fotografia de Tahian Bhering

 

Raphael Couto, Buquê 01, 2014

 

DAVI GIORDANO: A última fase dos seus trabalhos está fortemente marcada pela questão dos cortes e costuras de objetos do cotidiano em sua pele. Isso está presente nas quatro séries mais conhecidas do seu trabalho: Patchwork, Parábola, Buquê e Retrato. A primeira é composta pela costura, sobre a pele, de materiais efêmeros com fragmentos de cores primárias. A segunda trabalha com a costura de pérolas sobre o corpo, o que realça uma atmosfera mais lírica, delicada e poética em relação ao corpo como suporte. Na terceira, você cria uma série de fotos em que engole pincéis formando a imagem de um buquê de flores. A última série pensa o corpo como suporte para diversos autorretratos. Em sua primeira exposição individual, intitulada Atravessamentos, que ocorreu na Galeria Mercedes Viegas Arte Contemporânea, com curadoria de Elisa Byington, em julho de 2014, já é possível identificar esse ritual de estetização sobre o próprio corpo como criação plástica. Seria interessante que você comentasse como começou a trabalhar com intervenções sobre o seu próprio corpo. Como se deu essa passagem da sua atuação das Artes Visuais para a ampliação do seu trabalho com a Performance?

 

RAPHAEL COUTO: Eu venho de uma formação mais tradicional por conta da Escola de Belas Artes [EBA]. Fiz licenciatura em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ], num curso que é voltado para a formação do professor e não do artista. O que acho que foi até algo interessante para a minha formação, pois o curso de licenciatura da EBA possui em seu currículo todas as disciplinas complementares, que são as cadeiras de aquarela, escultura, modelagem, gravura etc. Isso permitiu que eu tivesse uma formação ampla de técnicas e modos de fazer arte. Havia também uma carga teórica maior do que todos os outros cursos de bacharelado. Por ter aprendido uma série de técnicas artísticas e uma formação teórica e crítica mais aprofundada, tudo isso obviamente influenciou duas coisas fortes em minha vida: a continuidade da minha trajetória no mundo acadêmico e a mistura do meu fazer artístico por um trânsito grande de linguagens. Toda essa influência mais heterogênea acabou se desdobrando no meu corpo. O meu trabalho sempre se deu na construção de imagens com o corpo. O meu primeiro trabalho nessa linha, pensado na mistura entre performance e pintura, foi o Patchwork. Tive como exercício costurar um pedaço de tecido vermelho no corpo, pensando o corpo como espaço de pintura. Na época, eu estava numa pesquisa de construção de imagens como suportes que não fossem aqueles mais tradicionais da pintura e da história da arte. Eu não queria fazer pintura sobre tela. Estava preocupado em produzir uma pintura que fosse da ordem desse desencontro de coisas. O efêmero apareceu na inadequação das coisas, como pintar tinta acrílica numa lona plástica, ou usar fogo nesse suporte. Daí começou a resultar a destruição, a desconstrução, as cinzas, tudo que gerava a imagem de uma plasticidade efêmera. Com isso surgiu o corpo que se tornou um elemento integrante dessa pesquisa. Lembro que algo que me ajudou muito foi conhecer o trabalho da Priscilla Davanzo. Ela costuma usar a sutura em algumas de suas experimentações. Depois descobri outros artistas que também fazem uso desse material. Comecei a experimentar como isso poderia aparecer no corpo. A intervenção da sutura no corpo provoca como reação um pequeno sangramento e vermelhidão. O mais interessante era ver como esse suporte ganhava presença nessa criação das imagens. Por tudo isso, não acho que teve esse pulo das Artes Visuais para a Performance. Eu continuo produzindo intensamente gravuras, assim como não paro de fazer minhas ações de performances. E, na maioria das vezes, elas se misturam ou se influenciam direta e mutuamente. O que é possível afirmar é que o meu trabalho de performance é diretamente marcado pela questão visual.

 

DAVI GIORDANO: Em todos esses trabalhos me atrevo a dizer que o seu corpo encena a performance da tela de um quadro ou a moldura viva de uma obra de arte. Na medida em que você amplia o seu trabalho de artes visuais com performance, fotografia, vídeo, instalação, imagens, objetos, desenhos, colagens, escrita, documentação e outras variações, o seu trabalho provoca pensar o corpo em múltiplas camadas: corpo-imagem, corpo-objeto, corpo-documento, corpo-registro, corpo-moldura, corpo-tela, corpo-escrita, corpo-suporte, corpo-mídia, corpo-visceralidade, corpo-carne, corpo-sangue, corpo-signo, corpo-marca, corpo-memória, corpo-artista, corpo-arte, corpo-cicatriz. Você provoca pensar o corpo como espaço de muitas significações e de escrita. Como isso costuma provocar diferentes olhares nos espectadores de suas obras? Você poderia nos dar alguns relatos sobre a recepção do seu trabalho tanto pela crítica especializada como pelo público em geral?

 

RAPHAEL COUTO: Essa pergunta é interessante porque traz o universo do inesperado. Eu costumo apresentar meus trabalhos em diversos contextos. Nos tempos de hoje, há muitos festivais de performance no Brasil. Isso é maravilhoso porque mostra que a performance é um campo que tem crescido cada vez mais. Costumo participar de pelo menos quatro festivais durante um ano. Embora seja um exercício muito legal se apresentar nesses lugares, o que acontece é que, na maioria das vezes, esses festivais ficam restritos a um público exclusivamente de arte e de performance. Esse público já tem um repertório de ver coisas na área. Ainda que seja um público aberto, ele possui uma postura ou maneira de lidar com ações mais inesperadas ou provocações que tirem o corpo do lugar-comum. É diferente de quando você vai para um outro público, como foi a minha experiência na exposição da Caixa Cultural, que colocou o meu trabalho num universo mais amplo. Lembro que tiveram reações diversas, desde pessoas que ficavam bastante interessadas, curiosas e reflexivas com o trabalho, até pessoas que se afastavam rapidamente por sentir certo incômodo. Quando a exposição esteve no Rio de Janeiro, eu costumava ir alguns dias para assistir às reações das pessoas. Algumas me paravam na sala expositiva e perguntavam diversas coisas do tipo: “É você que está ali?”, “Não dói?”, “Você não fica com cicatriz?”, “Posso ver seu machucado?”, “Você foi ao médico?”. Na maioria das perguntas, observei que havia uma certa preocupação das pessoas com a minha saúde e meu bem-estar. Tem isso que me agrada de ver que as pessoas ainda se importam umas com as outras. Existe também as experiências em que realizo performances duracionais com a presença do público, como aconteceu na ação Estudo Para Ruínas, em que coloco azulejos azuis na pele durante duas horas. Fico naquele movimento repetitivo e as pessoas sempre preocupadas com a minha dor. Já tiveram momentos em que as pessoas paravam para citar um poema ou texto que tinha semelhança com o meu trabalho. A performance é legal porque tem uma troca imediata com o público. Algo que desejo explorar futuramente melhor em meu trabalho são as ações de rua, que considero uma das mais sinceras pesquisas em performance. A performance na rua atinge um público que pode olhar aquilo inclusive sem o compromisso de considerar como arte. É diferente de apresentar dentro de uma galeria em que todos possuem um olhar de consideração artística sobre o seu trabalho. Quero enfrentar esse tipo de trabalho na rua no futuro. Atualmente, o momento da minha pesquisa não me pede isso.

 

Raphael Couto, Estudo para a performance Estudo para Ruínas, 2015. Aquarela, lápis e hidrocor sobre papel, 148 × 210 cm

 

Raphael Couto, Estudo Para Ruínas. Performance apresentada no Rio de Janeiro, Brasil. Novembro de 2016. Fotografia do Coletivo I Hate Flash

 

DAVI GIORDANO: Você também desenvolve uma produção como artista-pesquisador. O título de sua dissertação de mestrado defendida na linha de Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense [UFF], Entre Marcas e Atravessamentos, revela bastante sobre a poética artística do seu trabalho. Hoje há um crescimento enorme de programas de pós-graduação no Brasil e no Mundo que estão abrindo seus espaços para receber artistas que escrevem e refletem sobre a sua própria produção artística. Como você encara o desafio de ser simultaneamente artista e observador do seu próprio trabalho?

 

RAPHAEL COUTO: Eu acho que a universidade é um lugar ótimo para o artista. Pode não ser o lugar ideal nem perfeito, até mesmo porque isso não existe. Mas é um lugar em que o artista consegue dialogar fortemente com o seu trabalho. Nas universidades, há professores que também são artistas e estão conversando com as suas poéticas e referências. Os professores são pessoas com uma experiência literária mais extensa que a sua e, obviamente, podem nos ajudar ao apresentar outras ideias, artistas e textos. Tudo isso nos deixa afetar por linguagens diversas e trocar espaços de solidariedade com outros artistas. Obviamente, a universidade demanda uma reflexão teórica muito grande. Até escutei algumas pessoas que gostariam de fazer pós-graduação no exterior porque lá não tem que escrever, pois permitem a realização apenas de um projeto prático. Tenho ressalvas quanto a isso porque acho que a escrita é um exercício muito bom para o artista. Ele pode desenvolver reflexões críticas sem ter o rigor de um historiador ou cientista. Até mesmo porque o artista não é um cientista. Ele possui outra forma de pensar que também é fundamental para a construção do conhecimento. Devemos valorizar também a forma de pensar do artista. O meu trabalho, por exemplo, amadureceu muito durante o mestrado. Acredito que a presença do artista dentro da universidade é cada vez mais importante.

 

DAVI GIORDANO: Ao analisar o seu trabalho, identifico que você cria um diálogo intertextual com muitos movimentos e linguagens artísticas. Eu poderia citar os ready-mades de Duchamp, na forma como você se apropria de objetos do cotidiano; a relação do corpo com a imagem fotográfica em Man Ray; a presença do corpo como realidade cotidiana do Movimento Fluxus; o entendimento do corpo como suporte e linguagem da Body Art; o corpo como pintura viva em Yves Klein; a apropriação com base no cromatismo de cores de Mondrian; a relação com objetos como ocorre nos trabalhos de Hélio Oiticica e Lygia Clark. Eu poderia seguir aqui mencionando muitas outras referências. Seria interessante que você também comentasse quais são os artistas que lhe inspiram diretamente?

 

RAPHAEL COUTO: Essa pergunta talvez seja a mais difícil de todas. Sempre nos afetamos por muitos trabalhos e artistas. Uma coisa que sempre ouvi na graduação e trago até hoje é que, se você coloca uma gota de tinta numa tela ou um rabisco de lápis num papel, você está sempre dialogando com toda uma história da produção de arte na humanidade. Isso sempre foi uma coisa que me afetou muito. Eu até insisto muito nisso quando converso com outros artistas, porque gosto de enfatizar que nunca estamos sozinhos. Pode até parecer uma fala bastante acadêmica, embora não tenha como separar isso de mim. Acho que é possível criar novas percepções e relações com as coisas, claro, porém, não estamos trabalhando a partir de um zero. De certa forma, sempre estamos conversando com o passado e o presente. Igual um cientista que, ao experimentar algo novo, conversa com outros cientistas para ver o que deu certo e saber como avançar para novas questões, ou então como na filosofia, em que estão sempre partindo de outras discussões, eu acho que na arte também estamos nesse movimento de dialogar com o outro. Em relação especificamente ao meu trabalho, é possível identificar muitas referências. Gosto do Man Ray que explora bastante diferentes posições e deformações do corpo na fotografia. Gosto do surrealismo como um todo, pois sempre desdobra as condições do corpo e do objeto. Há também toda essa geração de brasileiros dos anos 1960 e 70, que nos estimulou a pensar para fora do universo da pintura. Foi quando todas essas linguagens se contaminaram. Toda essa turma pós Hélio e Lygia está presente até hoje. Não tem como fazer arte no Brasil sem pensar neles. Embora eu me afete mais com Letícia Parente, como, por exemplo, diante do seu trabalho Marca Registrada. Outra artista importante é a própria Anna Bella Geiger, que no seu vídeo Passagens caminha infinitamente por escadas numa das primeiras ações para vídeo no Brasil, junto com as ações de Parente. Há algo da resistência física que me interessa muito. Além de toda essa tradição da performance latino-americana que sempre me deixa muito inquieto, como Tania Brugera, Ana Mendieta, Regina José Galindo e Carlos Martiel. Todos esses artistas têm elementos como o corpo em contato com a natureza, a nudez, o corpo-objeto, provocação política, questionamento dos valores tradicionais etc. E, claro, tem também a referência de jovens artistas que estão produzindo aqui e agora com a gente, seja o seu trabalho, o do Tales Frey e do Da Mata, da Thaíse Nardim e da Priscilla Davanzo, para citar alguns exemplos.

 

DAVI GIORDANO: Aproveitando o gancho com os jovens artistas, seria importante que você comentasse sobre a mostra Codorna Performa que você concebeu e realizou com duas edições em seu antigo ateliê.

 

RAPHAEL COUTO: Claro! Foram experiências muito gostosas! O nome “Codorna” vem do ateliê que participei e dividi com alguns artistas por dois anos e meio. Tínhamos um espaço na rua do Lavradio no centro histórico do Rio de Janeiro. Funcionava como um ateliê coletivo. Começamos a desenvolver algumas mostras, eventos e ações conjuntas. O espaço era cheio de informação com objetos de fotografia, pintura, mosaico, restauração. Havia um acúmulo de objetos dos vários artistas presentes no local. Pensei na ideia de criar um evento de performance que pudesse convidar alguns amigos artistas para pensar experimentações que dialogassem com o espaço. Pensei algumas coisas. Primeiro, o próprio espaço do ateliê por si só já é um espaço de experimentação. Segundo, assumi o ateliê como estava sem prepará-lo especificamente para um evento. A ideia era revelar os materiais e o ambiente onde surgem as obras de arte. O interessante não seria a transformação do espaço, mas sim a forma como cada artista conversaria, por meio do seu trabalho, com aquele espaço. A atmosfera processual do ateliê trouxe muitas coisas interessantes para o olhar de cada artista. Alguns fizeram trabalhos que se relacionavam com o chão, com a parede, como foi a minha própria performance Estudos para Ruínas, com ações dos azulejos. Ou o seu trabalho Massagem Relacional, em que você massageava pessoas com os objetos diversos que estavam presentes no ateliê. Outra coisa interessante foi que a segunda edição do Codorna Performa aconteceu no mesmo dia da Feira do Rio Antigo. Muitos artistas criaram provocações para pensar a inflação espetacularizada da cidade do Rio de Janeiro por conta da Copa do Mundo e das Olimpíadas. O artista Antonio Gonzaga Amador fez uma ação com açúcar. Ele faz uma brincadeira com a questão do açúcar em relação ao ciclo político no Brasil como também em seus desdobramentos poéticos sobre o fato de ele ser diabético. Então ele criou um mercado em que você troca uma ação ansiosa por um copo de água com açúcar, sendo que todos os objetos que ele usou na performance foram comprados nos antiquários da rua. Já o Vinicius Davi catou manequins da rua e serrou os bonecos. Depois amarrou o busto feminino do manequim em seu corpo e caminhou pela feira dessa maneira. Ele devolveu o manequim para o espaço da rua com uma ressignificação do corpo. Todos esses exemplos mostram como as mostras do Performa Codorna foram experiências muito ricas. Mais do que um encontro com a performance, foi um evento que colocou os artistas para dialogar com o espaço de criação do ateliê que já é atravessado pelo trânsito de linguagens da arte contemporânea.

 

Raphael Couto, Estudo para a performance Hidra, 2015. Aquarela, lápis e hidrocor sobre papel, 148 × 210 cm

 

DAVI GIORDANO: Como seus trabalham também circulam entre colecionadores e galerias privadas, como Joaquim Paiva, Mercedes Viegas Arte Contemporânea e Gilberto Chateaubriand, seria interessante que você comentasse como, nos atuais tempos de crise do país, você identifica a situação do mercado de arte contemporânea?

 

RAPHAEL COUTO: Esse é um papo bem legal para se fazer. Tudo o que vendi até hoje foram fotografias. No Brasil, o mercado ainda é bastante limitado. Vende-se muito pouco em proporção ao tamanho de uma classe média alta, que ainda é o público do mercado de arte. Vender arte em nosso país ainda é algo muito restrito à burguesia. Além disso, salvo boas exceções, percebo um público ainda tímido nas suas aquisições. O que mais se vende é pintura. Nessa semana, estive conversando com uma amiga que tem uma nova galeria. Ela esteve recentemente numa feira em Miami e contou que lá se vendia de tudo: objetos, vídeos, performances. A curiosidade é que lá quase não se vendia pinturas. Com isso, você já consegue ter uma comparação entre o mercado internacional e o mercado brasileiro. Se você trabalha com performance, tudo é muito mais complicado. Você precisa encontrar saídas para vender o seu trabalho. Por isso que, até hoje, a maior parte dos trabalhos que vendi foi para instituições ou coleções já consolidadas, como é o caso do Gilberto, que tem a mais famosa coleção de arte contemporânea do país. Há décadas ele é um colecionador voraz. Ele não revende nada. A maioria de suas aquisições vai para o acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que guarda sua coleção em comodato. Percebo que os trabalhos mais experimentais de performance conseguem uma saída maior no mercado institucional do que no mercado caseiro. Outra prática que é bastante comum é a troca de obras entre artistas. Com a situação atual da crise, o mercado passou por uma virada muito grande. É um mercado que sempre fica muito estagnado nesses momentos de insegurança. Mesmo nos momentos em que estamos com uma economia boa, o mercado costuma inflacionar porque aumenta o interesse e o mercado quer manter o status. Mas há vários mercados e caminhos também. Caminhos mais alternativos, feiras online, ateliês que vendem diretamente do artista, crowdfundings. As galerias são um caminho que dão bastante visibilidade, alcance e troca com diversos profissionais. Eu trabalho com uma galeria bastante legal, com artistas jovens e outros mais consolidados. É uma troca bacana. E galeria dá bastante visibilidade ao trabalho também, onde o exercício de uma exposição individual tem um peso significativo para qualquer artista.

 

DAVI GIORDANO: Além de artista, você também é professor de artes do Colégio Pedro II, que é conhecida como uma escola de excelência na cidade do Rio de Janeiro. Você poderia comentar como se dá a sua relação com a sala de aula? Como é ser um professor-artista? Sendo uma escola com potencial para experimentação, como você consegue incorporar princípios da arte contemporânea e da performance em aulas aos seus alunos?

 

RAPHAEL COUTO: Quando você trabalha numa escola de excelência, ela lhe dá uma chance de ser mais experimental, mas ao mesmo tempo há uma rigidez. Eu já estou no Pedro II há mais de seis anos, e tenho dez anos de magistério. Comecei a trabalhar assim que me graduei. Tem três anos que a atividade de lecionar ficou para mim mais interessante a partir do momento em que comecei a trabalhar com crianças e não mais com adolescentes. As crianças têm me permitido um espaço de experimentação muito maior. Atualmente, com minha equipe, conseguimos fazer um currículo que não é linear nem científico, mas um currículo com eixos temáticos. Então você tem um universo de coisas para discutir. Por exemplo, se tenho que discutir “Arte e Natureza” com as crianças, posso falar desde os desenhos das observações impressionistas até sobre Ana Mendieta. Não acredito no ensino básico que trabalha a história da arte de uma maneira linear. Penso que o ensino da arte está na apreciação e no prazer de pensar e produzir encontros com diferentes linguagens. Então, como professor-artista, embora eu não traga a poética da minha produção para a discussão em sala de aula, sempre levo outros artistas que gosto e também aqueles que tenho mais dificuldade de apreciação. Faço isso até para poder me contaminar com as leituras diferenciadas dessas crianças e para ter possibilidade de ver coisas boas desses artistas que eu não consigo identificar. Sempre entro na escola com esse espírito de trocar, de ter possibilidade de conversar com iguais. Isso sempre é muito produtivo. Penso a escola como mais um espaço para pensar e conversar sobre arte, assim como era o ateliê coletivo em que eu trabalhava.

 

Imagem de circulação de professores de artes no Facebook por conta dos protestos e reivindicações em relação à Proposta de Emenda Constitucional 55 [PEC 55, atual PEC 241]

 

DAVI GIORDANO: Este ano, estamos passando por uma fase de grande retrocesso político na área da Educação devido à PEC 55. Além de ela trazer reduções significativas para a Educação Pública, talvez o que para nós seja mais agravante é a tentativa de retirada do Ensino das Artes do Ensino Formal. Como professor-artista, como você tem se posicionado diante dessa questão?

 

RAPHAEL COUTO: É muito assustador e triste ver esse retrocesso. Ainda mais quando isso se dá muito rapidamente depois de muitos anos de progresso. Quando entrei na universidade em 2003, vi momentos de muitas melhoras. As salas de aulas começaram a receber mais materiais. Foram abertos mais concursos públicos. Tudo isso gerou muitas mudanças no perfil social do país, principalmente com a entrada e formação de novas cabeças dentro do circuito universitário. O que está ocorrendo agora não vem somente para tirar a arte do ensino médio. Eles querem também acabar com o Ministério da Cultura, querem diminuir os incentivos, querem mexer nas políticas de leis de incentivo, de fundo de cultura. Há uma vontade de interferir nessa horizontalidade de um pensamento simbólico. A elite conservadora está muito incomodada com o poder de questionamento e provocação da arte. Incomodam-se com o aumento de intelectuais negros, ou pessoas que vêm de periferias e de outros lugares que não somente da classe média. Além do fato de que temos um sistema de mídia que não dá mais conta do país, porque a sociedade mudou ao longo dos anos. Ainda estamos numa luta de classes e o campo simbólico é espaço para derrotas e vitórias. Em relação à atual situação, fizemos uma greve de resistência contra essa PEC. Os alunos ocuparam as escolas, criaram novas dinâmicas de inversão de valores verticais. A nova geração está entendendo que os espaços são deles. Mesmo com todos os retrocessos, a nova geração está exercendo novas formas de organização. É bom ver que o mundo não está dando conta das novas gerações e de toda essa galera que está vindo. E obviamente isso nos coloca a pensar sobre a futura produção simbólica. Com isso, acho que temos muitas coisas bacanas que vêm permitir a continuação do crescimento em número e potência da performance.

 

 

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

GIORDANO, Davi. “Entrevista com Raphael Couto”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e o autor

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