“Prêt-à-Médiatiser” em Cinco Perguntas e Incontáveis Reflexões

 

POLLYFIBRE, Prêt-à-Médiatiser, 2011. Fotografia de Frank Prendergast

 

Com apenas cinco perguntas, a entrevista feita com a artista britânica Christine Ellison rendeu uma série de reflexões sobre o corpo, a moda e a arte contemporânea a partir de uma expansão de um dos seus trabalhos de performance: Prêt-à-Médiatiser. O vídeo dessa performance integrou a programação do evento Rapid Pulse International Performance Art Festival, ocorrido em Chicago, na Defibrillator Gallery, em junho de 2012.

A entrevistada, Christine Ellison, apresenta-se como POLLYFIBRE na ficha técnica de suas performances. Centrada na cultura pós-digital, a artista não esconde o seu interesse pela cultura fetichista conjuminada à tecnologia, e compromete-se, com entusiasmo pela temática, a realizar suas construções nada convencionais em clubes, galerias e festivais alternativos.

 

TALES FREY: Pelo vídeo da performance Prêt-à-Médiatiser exposto no festival Rapid Pulse International Performance Art Festival ocorrido em Chicago, pude imaginar o quanto deve ter sido extraordinário presenciar esse trabalho ao vivo. Você julga que o material em vídeo seja capaz de carregar a mesma intensidade da apresentação ao vivo? Você acredita nessa expansão da ação performativa como uma expressão tão potente quanto a própria obra ao vivo?

 

CHRISTINE ELLISON: O trabalho brinca com o que pode ser perdido ou obtido através da documentação mediada da performance. Na performance ao vivo há, certamente, uma intensidade e uma potência e, também, uma tensão – um nervosismo entre o público que espera que o evento corresponda às expectativas. Eles estão aguardando a entrega de uma experiência antecipada que corre o risco de fracassar ou, pelo menos, falhar. Você pode argumentar que tudo o que acontece ao vivo só poderia ocorrer daquela única maneira no momento em que está se realizando e, portanto, não há fracasso, porque há o risco ao vivo e, desse modo, também as consequências desse risco são essenciais para que ocorra um evento ao vivo. Com o documento filmado, é possível manipular a perspectiva de espectadores de uma forma que não é possível com o evento ao vivo. Ele pode ser muito mais indulgente.

Prêt-à-Médiatiser é um trabalho estabelecido em torno dessas expectativas e perguntas. A performance tem esse senso de vivacidade, com intensidade e potência, mas há elementos que são desajeitados e atrapalhados. Com o filme, a tensão ao vivo e a excitação imediata estão perdidas, mas, por outro lado, alguns detalhes se destacam e se tornam visualmente mais emocionantes através da edição. Uma performance filmada cumpre sempre duas características, que dependem de uma audiência ao vivo (no que diz respeito à vivacidade) e que está sujeito a uma perspectiva mediada parcial (por meio da pós-produção). Prêt-à-Médiatiser foi criada com essas duas coisas em mente e não é, portanto, totalmente realizada em qualquer contexto – cada etapa depende da outra para concretizar a sua finalidade.

Estou muito envolvida com a ideia de que a performance (como toda outra forma de arte) vive em muitas plataformas e não apenas no local de exposição. Vemos muitos trabalhos, primeiramente, em websites ou em revistas e isso afeta a forma como interpretamos estes mesmos trabalhos e, eu gostaria de frisar que isso afeta até mesmo a nossa experiência de arte. É praticamente impossível ignorar todas as versões mediadas de um trabalho (seja através da escrita, da documentação, do material promocional, de críticas, entrevistas) e apenas experimentá-lo como um evento. Isso tornou-se um aspecto exigente de produção artística.

 

TALES FREY: O tom subversivo presente nas imagens propostas nessa performance parece narrar sobre a efemeridade existente no universo da moda quando expõe roupas que não são feitas de tecido, que são conceituais, de suportes frágeis, que se desfazem em um curto prazo. O mesmo ocorre quando vejo que os registros do evento são feitos em Polaroid, suporte fotográfico pouco duradouro. Existe mesmo esse tom crítico sobre a impossibilidade de se manter por muito tempo “na moda”?

 

CHRISTINE ELLISON: Os figurinos são de fato feitos de tecido – eles são preparados através de recortes, sob a colagem de um variado conjunto de entretelas (interfacing). Eu uso esses tecidos em um nível por causa do jogo de palavras – eles são projetados com interfaces de software de computador em mente – e também por sua qualidade adequada, que se presta à rigidez e ao corte geométrico. Entretela (interfacing) é tradicionalmente utilizado para endurecer roupas sob medida. É o material invisível de moda que dá estrutura às roupas. Nessa apresentação, esse tecido torna-se visível – promove a ideia de divulgação através da vivacidade e da reversão ou questionamento da hierarquia, tão presente também na relação entre o evento ao vivo e o filme.

Mas, sim, há uma referência à temporalidade. Essas roupas não podem ser lavadas. Elas são feitas para serem vistas. Isso não quer dizer, contudo, que não poderiam ser usadas. A questão tem mais a ver com o quanto a nossa relação intermediada e documentada poderia afetar a tendência da moda e o que podemos ditar se, por exemplo, nos trajarmos para usar o Skype ou para sermos fotografados para a nossa página do Facebook. As fotos em Polaroid representam apenas um dos meios utilizados para documentar o show. Destacam-se, provavelmente, porque elas têm uma estética identificável que possui, ou melhor, que se torna um pouco fetichizada como um monte de velhos formatos analógicos. Eu tento fazer um paralelo entre o realismo (ou aura associada a tecnologias mais antigas) contra novas mídias digitais e o debate sobre o ao vivo contra a documentação. Esse trabalho examina essas ideias através do filtro da indústria da moda. Eu acho que a tecnologia se move em tendências apenas como uma indústria do vestuário e essas duas ideias são complexamente entrelaçadas com o nosso temperamento cultural. Ambas as indústrias são, naturalmente, comerciais e economicamente estimuladas e elas nos afetam integralmente no sentido de mudar a forma como vivemos. É a troca constante de definição de tendência e de quebra de tendência que me fascina. Se a maioria das pessoas da minha comunidade começassem a usar roupas que cobrissem somente a frente dos seus corpos (roupas bidimensionais), ou eu teria de pisar na linha ou, então, reagir contra elas. É sempre uma escolha, mas é a maneira como respondemos a essas escolhas. E a indústria, por sua vez, cria histórias tão complicadas – curtas histórias, como você diz, que estão continuamente mudando. Os alimentos básicos da moda não mudam muito, mas a sutilezas de cada temporada movem-se rapidamente, moldando um discurso fugaz de significantes culturais. Algumas coisas são esquecidas e algumas coisas são mantidas e retrabalhadas, e talvez todas são distorcidas através dos olhos da história – que é, logicamente, mediada.

 

TALES FREY: Os sons das câmeras fotográficas enfatizam o aspecto de deboche quando evidenciam exatamente algo que ocorre em um desfile de moda, onde o espectador está por trás dessa barreira de fotógrafos e fashionistas influentes que ocupam a primeira fila. O vídeo a partir da performance traduz isso ao menos, pois coloca o espectador (que assiste ao vídeo) no fundo, por trás dessa fila de privilegiados e por trás inclusive dos músicos que garantem o som do evento. Comente isso.

 

CHRISTINE ELLISON: Na peça, as câmeras funcionam em vários níveis. Elas têm várias fontes – o público, a imprensa e os músicos. Apenas as câmeras dos músicos são amplificadas, mas as demais podem emitir luzes (inclusive “flash”) e interferir visualmente na peça. Para a apresentação, convidei fotógrafos “reais” da imprensa para serem tão visualmente presentes como desejassem durante a performance. Essa interrupção ecoa, como você disse, como elemento de um desfile de moda, onde os fotógrafos são extremamente dominantes. O público da apresentação ao vivo se tornou uma extensão da imprensa, quando documentam com seus telefones ou com qualquer um dos dispositivos que eles possuem. Em seguida, a amplificação dos cliques das câmeras realizada pelos músicos está lá como parte da paleta de som para amplificar e enfatizar os sons do desfile de moda, para destacar os elementos da cerimônia e desenhar sobre eles uma pontuação sonora – dentro de tudo isso deve haver uma tensão entre o sentimento de interrupção e de intenção estética. E sim, há algum senso de hierarquia na maneira como essas construções são edificadas – os músicos, que são essencialmente parte da equipe de produção, controlam os cliques sonoros, a imprensa cria interrupções espontâneas que o público ao vivo pode ecoar e, em seguida, é interessante como você aponta que o espectador do vídeo é, então, por trás de tudo isso, uma outra camada que vê o evento através de outra lente, mas sem qualquer capacidade de interagir, de contribuir. Eu não tenho certeza se ele é o menos favorecido, mas talvez seja o menos envolvido e o mais submetido.

 

TALES FREY: Eu vejo que existem referências recorrentes em seus trabalhos. Vejo a influência formal da Bauhaus, influências do grupo de música eletrônica Kraftwerk, entre outras. Comente essas referências no seu processo criativo, com foco em seu trabalho Prêt-à-Médiatiser.

 

CHRISTINE ELLISON: Eu queria criar uma moda que trabalhasse longe do corpo – as silhuetas são muito brincáveis e divertidas para criar. Fiz centenas de desenhos antes de produzir as roupas. É um estilo que saiu desses desenhos repetitivos influenciados pelo design construtivista e da Bauhaus, particularmente do Mechanical Eccentricity, de László Moholy-Nagy (1925). Eu queria criar um desfile de moda em que a figura humana fosse apenas uma camada dentro de uma imagem maior, para tentar remover o domínio do indivíduo e eliminar qualquer coisa que tivesse a ver com graça ou personalidade, usando, ao mesmo tempo, o corpo bastante funcional para mover as formas da imagem (a roupa). Eu queria que o evento parecesse muito gráfico e forte, para estar disponível a disparos fotográficos que traduziriam o evento em imagens gráficas que, por sua vez, estavam sendo filmadas. Eu estava interessada em situar a forma do corpo dentro dessa planície de formas gráficas como apenas mais uma camada de textura. Então, na criação de formas, eu uso algumas linhas do corpo e, em seguida, algumas linhas aleatórias para o equilíbrio, as quais não se tornam exageradas sobre o corpo e, ao mesmo tempo, não o esquecem completamente. Assim, deve haver um novo sentido do lugar do corpo no espaço teatral.

 

TALES FREY: A mobilização do corpo em práticas performativas e ritualísticas que articulam temáticas ligadas à moda hoje parece bastante comum e o corpo ocupa lugar de destaque nesse aspecto. Em seu trabalho, vejo figuras que não são propriamente humanas. São corpos deformados ou com novas formas corporais. Como você observa isso?

 

CHRISTINE ELLISON: Sim, é o aspecto do inanimado. Eu estou sempre interessada em ideias que desafiem a função do corpo e as expectativas em torno disso. Mechanical Eccentricity, de Moholy-Nagy, faz isso; ele vai tão longe a ponto de eliminar o humano do palco completamente. E Kraftwerk fez isso em sua performance Man Machine, em que confundem-se com réplicas robóticas. Eles ainda se referem à forma humana, mas há dúvidas sobre a ausência de humanidade e até que ponto o indivíduo é necessário nesse espaço teatral. Formalmente, acho a estética modernista muito sedutora e queria explorar isso particularmente em Prêt-à-Médiatiser. Eu estava tentando criar uma sensação de produção, uma produção estilizada, com as construções que envolvem o desfile de moda, com as construções e sedução da linguagem da revista, com as plataformas visuais de interfaces digitais em que mergulhamos e com todas essas construções visuais que se tornam parte do nosso ritual cotidiano.

Uma foto de uma modelo em uma revista é inanimada, mas nós não pensamos sobre isso necessariamente assim. Ao tentar animar o inanimado, estou tentando destacar esta ideia – animando uma coisa inanimada, nós pensamos sobre seu caráter inerte, enquanto essa mesma coisa está sendo animada. Então, no espaço ao vivo, estamos pensando sobre os desenhos planos/revistas e depois no vídeo. Estamos pensando sobre a performance ao vivo. O elemento ausente está presente através do seu outro e vice-versa.

A presença – de seres humanos obstruídos pelas formas e sons e pela falta de identidade individual – sugere uma ausência, enquanto a sedutora e confiante encenação da construção sugere algum tipo de ordem natural. São esses paradoxos do ritual e da vida que eu espero que Prêt-à-Médiatiser o convide para contemplar.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

FREY, Tales. “‘Prêt-À-Médiatiser’ em Cinco Perguntas e Incontáveis Reflexões”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 1, nov. 2012. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2012 eRevista Performatus e o autor

Edição de Hilda de Paulo

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