Entrevista com Felipe Cidade

 

Felipe Cidade

Entrevista a Julia Pelison, em 20 de junho de 2015

 

Felipe Cidade, Patronos, 2015

 

JULIA PELISON: Felipe, devido ao conteúdo que acesso nas suas obras em eventos ou em seu portfólio, e a justificativa de todo conjunto de trabalhos nas palavras escolhidas para formarem o seu artist statement, deduzo que terá uma boa resposta para explicar cada uma das seguintes perguntas:

Como suas criações são apresentadas e acolhidas pelas instituições ou financiadas/apoiadas por algumas entidades quando muitas vezes as mesmas são criticadas nas suas obras, como, por exemplo, na sua pintura de parede Patronos (2015)?

 

FELIPE CIDADE: O Patronos, em específico, é um trabalho que reverbera tais questões como o financiamento e apoio de grandes exposições – nesse caso, a 31º Bienal de São Paulo –, é propositalmente pensado como pintura diretamente na parede cobrindo os logos dos patrocinadores da mostra com tinta acrílica preta, dessa forma colocando-os simbolicamente sobre uma balança; de um lado, o peso da crítica e, junto, questionamento sobre quem é o dono do poder – seja por parte dos diretores e/ou curadores da exposição, ou de seus patrocinadores – e, do outro lado, a própria pintura e sua grande valorização pelo mercado e pelas próprias instituições. Não só o Patronos, mas outros trabalhos também carregam esses fatores que lembram uma faca de dois gumes por causa das dicotomias de sua análise crítica e prática; isso às vezes dificulta o apoio vindo de instituições. Ironicamente, todos os trabalhos em que há tais apontamentos, são simples e muito baratos de produzir – às vezes não há gastos –, portanto acabam sendo produzidos antes mesmo de haver qualquer direta relação com acolhimento, financiamento ou apoio vindo das instituições; os trabalhos apenas surgem…

 

JULIA PELISON: Você diz não querer se engessar em nenhuma especificidade da arte e sublinha que consolida trabalhos através de diferentes gêneros artísticos. Qual é o que considera mais recorrente e por quê? E quais ainda não experimentou ter como força motriz de alguma criação? Sinta-se à vontade, se quiser, para comentar projetos que não saíram da teoria.

 

FELIPE CIDADE: Geralmente afirmo que meus trabalhos não repetem tanto suas linguagens por buscar a que melhor se encaixe em suas propostas, o que complica muito ao dizer qual seria atualmente a mais recorrente. Porém as bases fundamentais que uso para o desenvolvimento dos trabalhos partem da Arte Povera, do Neoconcretismo, do Minimalismo, da Arte Conceitual e às vezes pego o pé do Antropofagismo; então, de certa forma tenho tais movimentos como força motriz para criação. Mesmo tendo essa diversidade de linguagens, grande parte do meu trabalho começo desenhando no caderno de desenho, às vezes tiro do desenho e o produzo em sua linguagem que penso que vá melhor se encaixar; às vezes não sai do caderno, talvez ainda por ser prematuro ou por não ter o acesso ao material para sua produção. Tenho alguns projetos em andamento, alguns de exposições, alguns projetos de instalação que são fusões de outros trabalhos, potencializando seus contextos; o Patronos, que é um trabalho recente, deste ano – 2015 –, já está se desdobrando em outros trabalhos e em uma continuação do mesmo, utilizando a mesma linguagem, porém usando outros logos – por exemplo, os logos de empreiteiras responsáveis pela especulação imobiliária –, também antigos trabalhos são retomados, tenho muitos vídeos de diversas situações – pessoas atravessando ilegalmente fronteiras de países, pessoas manuseando máquinas para obter um resultado que a máquina não foi projetada para ter, situações de guerra, desastres climáticos e geográficos, que foram baixados do maior banco de vídeos online – Youtube.com – e nunca os exibi talvez por não os compreender a ponto de me sentir seguro ao falar sobre, não por tê-los apenas no universo do projeto ou da teoria, mas por sentir que eles precisam de mais, não sei o que, mas precisam de mais e dessa forma acabam vindo novos trabalhos ou projetos…

 

JULIA PELISON: Num momento em que o argumento da arte torna-se até mais importante que a materialização do próprio objeto e a criação racional protagoniza a cena artística, quais dos gêneros que já trabalhou tem ganhado mais visibilidade entre as suas produções?

 

FELIPE CIDADE: Acredito que entre minhas produções o vídeo e a performance se destacam mais. Não sei dizer o porquê, mesmo neste momento em que o argumento e a justificação da arte estão à frente do próprio trabalho em si, como você disse. Vejo tanto meus vídeos como as performances como os trabalhos mais complicados e densos de argumentar pois possibilitam diversas compreensões do mesmo; tal abertura é, ao meu ver, o mais difícil de ocorrer. É muito fácil pôr a frente a justificativa e o argumento, é uma forma de se manter seguro e de se esquivar de qualquer possibilidade de erro, com o que não concordo, pois acredito que especialmente a arte contemporânea tem que trabalhar junto com a margem do erro e longe do senso comum. Sempre, ao dividir, o todo deixa de ser todo, um é positivo e outro negativo e a horizontalidade do todo se perde…

 

Felipe Cidade, Invidia – não há autoridade, apenas nós mesmos (políptico), 2013

 

Felipe Cidade, Nós Somos a Autoridade. Performance na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014

 

JULIA PELISON: Das suas ações mais efêmeras, a performance/body art Nós somos a autoridade (2014) e a performance, fotografia e vídeo Invidia – Não há autoridade, apenas nós mesmos (2013) são as produções que mais chamam a minha atenção para analisar procedimentos artísticos que se opõem ao comércio das artes ao mesmo tempo que propõem alguma segurança à lógica de mercado. Ao mesmo tempo que a arte está acoplada ao seu corpo e em constante e visível desgaste, há registros (vídeos e fotografias) que garantem a imortalidade da obra, além, é claro, do ato de retocar a tatuagem desgastada que nos remete aos processos de restauro de obras de arte. Como você pondera isso?

 

FELIPE CIDADE: Não pondero. Cronologicamente, o Invidia – Não há autoridade, apenas nós mesmos era pensado apenas como performance em dupla, em que um performer tatuaria o mapa-múndi em minhas mãos – América na mão direita, Europa, Ásia e Oceania na palma esquerda –, e como não costumo e não gosto de repetir minhas performances, fiz o registro em vídeo para futura exibição e arquivo, porém a imagem e a potência simbólica do mundo tatuado nas mãos e sua efemeridade, quase que instantaneamente impulsionou o trabalho ao registro fotográfico das palmas das mão, e cada fotografia, registrando o desaparecer da tatuagem – por causa da derme das palmas da mão, a tatuagem se desgasta com o tempo, às vezes desgasta a ponto de desaparecer o desenho –, foi um formato que possibilitou o registro de algo efêmero e que toma tempo, é um processo longo, diferente de uma fruta, carne, açúcar, ou de um gelo derretendo, pois seu tempo de entropia, ou seja, de transformação, não é tão direto, leva meses, dependendo, até anos para que desapareça. Esse trabalho, que me ajudou a compreender melhor a efemeridade das coisas e seu tempo, tudo é efêmero, nós somos efêmeros, porém a conservação das coisas também é uma característica antropotécnica do humano, ou seja, a noção disso impulsionou o Invidia ao Nós somos a autoridade, uma performance de uma pessoa, em que eu retoco a tatuagem do mapa-múndi nas palmas das mãos; diferente do Invidia, em que outra pessoa tatua o contorno dos continentes nas palmas limpas, sem tatuagem ou resquícios de outra, em Nós somos a autoridade, eu mesmo, a pessoa que carrega nas mãos a imagem do mundo, não deixa que a mesma desapareça, sobrepõe o antigo desenho do mundo, criando um novo sobre a antiga base, e essa performance em específico se repete quantas vezes for necessário, um work in progress que ainda não cheguei a um ponto final – vale ressaltar que não espero a tatuagem desgastar para retocar ela, se tiver que fazer o mesmo trabalho em dois dias seguidos, será feito –, e talvez não chegue; claro que já se desdobrou em outros trabalhos também, porém esse ainda se repete. Dessa forma, tento ponderar ambos trabalhos; o primeiro que existe a partir do registro fotográfico e em vídeo, e o segundo repetindo X vezes a performance.

 

Felipe Cidade, Escudo DIY, 2013

 

Felipe Cidade, Nem Todo Poder Branco é Açúcar, 2014

 

Felipe Cidade, Três Períodos Mercantis, 2015

 

JULIA PELISON: Muitos dos títulos dados aos seus trabalhos são irônicos e as formas e objetos escolhidos grifam uma crítica corrosiva ao sistema capitalista e ao maniqueísmo normalizante inerente a ele. Escudo D.I.Y. (2013), Nem todo poder branco é açúcar (2014), composto por um papel e uma barata, e a obra Três períodos mercantis (2013) – em que você utiliza três latas de Coca-Cola em diferentes estados (uma cheia, uma vazia e amassada e outra amassada e usada para fumar crack) – são as que absolutamente abordam tal conteúdo. Como funciona o seu processo criativo normalmente e como funcionou no caso destas criações mencionadas?

 

FELIPE CIDADE: Meu processo criativo normalmente vem da rua e de diárias caminhadas por São Paulo ou qualquer cidade em que esteja. Um processo que não há um certo descanso, tanto que sempre que tento tirar férias, ou viajar para curtir e não trabalhar, acabo trabalhando indiretamente, isso quando não perco o controle e começo a trabalhar antes mesmo de me dar conta.

Os três trabalhos citados são resultados do constante “estado de trabalho”, principalmente por estar na rua e influenciado pelo que acontece nela. O Escudo D.I.Y. vem de uma prática minha durante manifestações – quando, em 2006 até 2009 ainda acreditava que participar delas havia sentido – em que sempre havia conflitos com a polícia. Como já esperava qualquer tipo de violência durantes os atos, sempre carregava algum objeto resistente que me servisse de proteção, e um deles era a cesta de lixo público. Durante as manifestações de 2013 (que não participei, apenas li e vi o que se passava, pois na mesma época estava em uma residência em Manaus) desenhei o projeto do escudo usando metade da cesta de lixo e borracha. Alguns meses depois, enquanto buscava nas ruas os melhores lixos para cortar e usar como escudo, percebi um morador de rua secando e preparando uma lata de coca-cola para fumar crack, e isso me chamou a atenção. Todo o processo de preparo de um objeto que em seu passado recente era um produto do mercado formal, lacrado e pronto para consumo, naquele momento estava em um período de transição de estado, do consumido e descartado para a reutilização de outro produto vindo do mercado informal, ou seja, o objeto que porta o produto formal – o líquido –, que perdeu sua função, passava a carregar algo, ganhava novamente a função de suporte para outro produto – a pedra de crack – e, mesmo sendo de diferentes tipos de mercados, ambos conduzem ao que mantém o mercado de consumo: o vício. Próximo ao fim de 2014, meu estúdio teve uma infestação de baratas, provavelmente pelas poucas porém fortes chuvas e umidade do local. Detalhe com o qual fui obrigado a conviver, pois as baratas simplesmente entravam durante a noite sem se importar com todas as precauções que tive em tentar eliminá-las. Isso me permitiu perceber alguns comportamentos que não tinha ideia que uma barata poderia vir a ter. Por exemplo, não sabia que elas se alimentavam também de tabaco, a ponto de rasgar um cigarro e consumir todo o fumo. Com isso, experimentei outros produtos para ver o que acontecia. Como elas apareciam à noite, quando eu não estava lá trabalhando, o resultado apareceria apenas no dia seguinte. De todos os testes, o açúcar foi o único a ter um resultado esperado – pelo menos esperado no que acreditava ser mais lógico. O açúcar foi consumido em seu total, porém, no mesmo lugar que a barata o consumiu, morreu ali mesmo. Talvez pela quantidade que foi deixada, não sei a razão dela morrer exatamente sobre o local do consumo. O que sei é que no momento em que a vi, virada com as patocas para cima e um resto de açúcar próximo, a simbologia kafkaniana da barata, de uma sociedade que esmaga o “qualquer um”, da mesma forma que nós mesmos esmagamos as baratas – “qualquer um”, pois não acredito que a sociedade esmague todos e sim os menos privilegiados, os desconhecidos, os que não carregam em si qualquer $igno de poder –, neste caso, a barata não estava esmagada por ninguém, estava morta por um produto industrializado que, ironicamente, é visualmente semelhante à cocaína, a droga dos poderosos, muito comum dentro da high-society da arte, ou seja, o “qualquer um” não suporta tal poder.

 

 

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

PELISON, Julia. “Entrevista com Felipe Cidade”. eRevista Performatus,

Inhumas, ano 3, n. 14, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e a autora

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