Entrevista com Ana Teixeira

 

Ana Teixeira

Entrevista a Davi Giordano, em 31 de setembro de 2015 [1]

 

Ana Teixeira, Escuto Histórias de Amor. Ação de rua, Lisboa, Portugal, 2009. Fotografia de Angela Nunes

 

DAVI GIORDANO: Na primeira vez em que realizei uma entrevista contigo, em setembro de 2013, lembro que você me comentou que algo importante em seus trabalhos de ações de rua é o fato de você “gostar de gente”. Ao fazer uma análise do repertório de seus trabalhos, percebo que, como artista, você está sempre interessada em se aproximar de pessoas que não buscam uma expressão direta por meio da arte, como é o caso dos transeuntes. Isso está presente em diversos de seus trabalhos, principalmente no ciclo que você desenvolveu referente ao projeto “Trocas: A Arte na Rua e A Rua na Arte”, composto por ações como Escuto Histórias de Amor, Troco Sonhos, ESCUTE!, Outra Identidade e Empresto Meus Olhos aos Seus. Também podemos ver isso na sua atual exposição De Perto Ninguém É Normal (Espaço de Cultura Bela Vista, São Paulo, Brasil), em que você elaborou uma série de desenhos de moradores do bairro da Bela Vista, que foram entrevistados especificamente para esse trabalho. Tudo isso me remete a um fenômeno comum que observo na arte contemporânea, o qual poderia denominar como “arte de inclusão”, algo que incorpora novas discussões estéticas, diferente daquilo que caracterizou a arte dos anos de 1960 e 1970 como “arte de provocação”. Penso que seu trabalho contribui para questionar uma nova modalidade a partir da qual encontramos uma perspectiva interessante para pensar a arte contemporânea, ou seja, compreender a arte como espaço de troca de experiências e trânsito de afetos. Como você nota esta minha observação em seu trabalho? E como você compreende isso no papel do artista contemporâneo?

 

ANA TEIXEIRA: Talvez a arte possa ser um espaço de troca de experiências e de trânsito de afetos, como você diz, porém a vejo mais como um sistema de enfrentamentos do que de empatias, uma forma de “produzir desconhecimento”, como diz o artista Waltércio Caldas. Talvez o que você chame de “inclusão” eu prefira chamar de “interação”, e apenas uma interação possível em uma relação de confronto. Entende? Eu não me vejo acolhendo o outro ao entrevistá-lo para o projeto “De Perto Ninguém É Normal”. Eu me vejo provocando-o com perguntas sobre ele mesmo que talvez ele nunca se fizesse.

 

Ana Teixeira, De Perto Ninguém É Normal. Interação, São Paulo, Brasil, 2015. Fotografia de Ana Teixeira

 

Ana Teixeira, De Perto Ninguém É Normal. Interação, São Paulo, Brasil, 2015. Fotografia de Tomás Andrade

 

Sobre meu “gostar de gente”, creio ser melhor dizer que eu me interesso por gente e pela possibilidade de me comunicar com as pessoas por meio de meu trabalho, seja em espaços privilegiados para a arte, como galerias e museus, seja nas ruas ou em outros espaços públicos.

Sobre o papel do artista contemporâneo, penso que a arte dialoga com seu tempo. Vivemos um tempo de incertezas, de grande virtualidade, de anestesia, de individualismo exacerbado, de (sempre bem-vindas) dúvidas, de comunicação mais rápida, mais abrangente e (perigosamente) mais superficial e efêmera. Esse tempo rápido, exigente e estafante, tem suas benesses e seus desconfortos como qualquer outro. É conversando com seu tempo que a arte se torna mais potente e pode provocar a pensar, pode gerar incômodo e pode ser também uma espécie de lente que instigue as pessoas a se verem (e a verem seu entorno) a partir de outro lugar, questionando-se e revendo as premissas que as estruturam.

 

DAVI GIORDANO: Algo que me intrigou bastante em nossa última conversa foi quando você comentou que suas intervenções urbanas se inserem naquilo que você denomina como ações de rua, preferindo utilizar essa terminologia ao invés de trabalhos de performance. Ao me explicar o motivo de sua opção, você comentou que a noção de ações de rua adquire um sentido mais amplo, ao permitir inclusive que os transeuntes passem perto de seus trabalhos e nem queiram considerar que isso seja arte. Relaciono essa sua associação com aquilo que diz a crítica de arte inglesa Claire Bishop, ao recordar as maneiras como a estética relacional era incorporada por práticas artísticas que teriam apenas o propósito de intervenção e transformação de uma realidade constituída. Assim, Bishop questiona que o sentido de colaboração proposto por trabalhos ditos relacionais implicavam somente interesses dos próprios artistas, apoiando uma espécie de egocentrismo em prol de suas imagens, e não do real sentido de colaboração que deve surgir a partir de uma experiência compartilhada. Quando você considera o transeunte com a qualidade dupla de espectador e ativador da obra, você dá a liberdade para que seu trabalho seja livremente interpretado por pessoas que não têm o objetivo de se deparar com a experiência artística. Sobre isso, gostaria de perguntar: Como se dá a recepção do seu trabalho em diferentes países? Talvez um exemplo interessante de comentar algo a respeito disso seria o trabalho Escuto Histórias de Amor.

 

ANA TEIXEIRA: A recepção ao Escuto Histórias de Amor foi bastante semelhante em todos os países pelos quais passei. Geralmente, ao me ver sentada em espaços públicos com a placa que anuncia o que faço, a maioria das pessoas olha com curiosidade, faz uma pequena pausa em sua travessia urbana e parece estranhar aquela cena. Muitas param e perguntam o que faço ali. Sempre afirmei apenas “Eu escuto histórias de amor” e nada além disso. Não costumo avisar que aquilo é uma ação artística e não tenho o menor interesse em fazê-lo. Não me interessa usar a arte como um escudo de proteção. Muito pelo contrário. Estou ali tão vulnerável quanto o transeunte que se senta para me contar sua história.

É interessante sua afirmação de que eu considero o transeunte com a qualidade dupla de espectador e ativador da obra, dando a ele a liberdade de interpretar livremente o trabalho. É isso mesmo o que acontece. Não me interessa que o transeunte, tanto o que apenas olhou quanto o que parou para conversar, saia dali com a noção de que conheceu “arte”, mas sim de que viveu algo, de que foi atravessado por uma experiência.

 

DAVI GIORDANO: Até a fase de sua pesquisa de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada Trocas: A Arte na Rua e A Rua na Arte, você utilizava consciente e assumidamente o conceito de “arte relacional”, como foi proposto por Nicolas Bourriaud em seu livro Estética Relacional (2009). Lembro que você me comentou que nos últimos tempos abdicou desse termo. Gostaria de saber quando e como foi a decisão de abandonar o termo como uma das inspirações dos seus trabalhos?

 

ANA TEIXEIRA: Creio que os rótulos que colocamos em nossos trabalhos podem acabar por limitá-los e é por isso que prefiro não definir o que faço como “arte relacional”. Se muitas vezes minha produção privilegia o contato com o outro, e isso acontece mesmo, isso não significa que ela se foque apenas nisso. A matéria-prima de meu trabalho são as perguntas, indagações que produzem outras indagações, num ciclo infinito e sem respostas. Creio que essa é uma maneira mais ampliada de ver minha produção.

 

DAVI GIORDANO: Você me falou que não se considera uma performer. Acho que seria interessante você comentar um pouco mais sobre isso.

 

ANA TEIXEIRA: Penso a performance em artes visuais como uma ação com certo índice de previsibilidade e de atuação. Não me vejo “performando” minhas ações, exatamente por não me sentir “atuando”, como se trabalhasse em uma peça teatral. Se atuo é apenas na medida em que atuamos sempre, no dia a dia, o tempo todo, mesmo quando sozinhos ou defronte a um espelho. Minhas ações tampouco têm o conteúdo da previsibilidade, um final específico. Estou nelas sujeita ao outro e ao que vier dele, seja a indiferença ou a participação.

 

DAVI GIORDANO: Possuo um projeto intitulado “Performance e Ensino Des.formal”, no qual trabalho um cruzamento de arte contemporânea, criação performática e pedagogia experimental diretamente com jovens e adolescentes. Já desenvolvi esse trabalho com grupos de diferentes contextos em regiões do interior do Rio de Janeiro e de São Paulo. Sempre ao iniciar o contato dos jovens com a arte da performance, opto por utilizar como referências alguns de seus trabalhos. Percebo que há uma percepção imediata dos alunos com o universo da intervenção urbana como forma de estímulo para que eles criem seus próprios trabalhos. Gostaria de saber como é para você receber depoimentos de jovens artistas que foram inspirados pelos seus trabalhos? Como você vem dialogando com a nova geração de artistas?

 

ANA TEIXEIRA: Acho muito bom que meus trabalhos possam servir de inspiração para outros artistas e que minhas pesquisas possam ter ressonância também em outras áreas. Tenho conversado bastante com jovens, que me procuram principalmente pelas redes sociais, e procuro estar atenta aos diálogos possíveis com a produção atual.

 

Ana Teixeira, Tausch/Troca. Ação para países de idioma desconhecido, Alemanha, 2004. Arquivo da artista

 

Ana Teixeira, Aviso. Intervenção em praias, Itaparica, Bahia, Brasil, 2011. Fotografia de Ana Teixeira

 

DAVI GIORDANO: Algo comum na arte contemporânea é a criação de residências que permitem que artistas possam vivenciar uma experiência de criação temporária em outra região e cultura, proporcionando assim uma troca de experiência vital para um processo de reciclagem e contato com novas pessoas e inspirações. Gostaria que você comentasse algumas das residências pelas quais já passou e como elas foram fundamentais para a criação de novas fases do seu trabalho?

 

ANA TEIXEIRA: O conceito do artista viajante sempre existiu, mas nos últimos anos tem se consolidado e é sistematizado sob a instituição da residência artística. Apesar de existirem inúmeros modelos de programas de residência, todos eles propiciam ao artista um ambiente fora de seu espaço habitual e de sua rotina, uma vivência num contexto sociocultural diferente e de acesso a uma nova rede de contatos. Estar em um projeto de residência artística é sempre um desafio. Minhas vivências em residências no Canadá, Alemanha, Dinamarca e Bahia (Brasil) foram todas muito intensas e chegaram ao seu final sempre com um novo dimensionamento sobre o projeto proposto no início. Na Alemanha, em 2004, por exemplo, a intervenção que criei estava diretamente ligada ao contexto local: uma cidade pequena onde grande parte dos habitantes não usava outra língua além do alemão. Tausch/Troca foi criada como uma forma de buscar uma comunicação que se desse por meio das palavras, mesmo que elas fossem incompreensíveis [Ver em: http://goo.gl/KFj3yX]. Na Dinamarca produzi uma série de desenhos que se relacionavam com a história da pequena cidade de Brande, reinventada por mim a partir de fotos antigas. Na Bahia, a natureza, impositiva e contundente, foi o grande tema dos meus trabalhos [Ver em: http://goo.gl/lCyDkX ; http://goo.gl/DFpFw9 ; http://goo.gl/Zr91M9].

Não saímos nunca ilesos de uma experiência de deslocamento.

 

DAVI GIORDANO: Fico interessado pelo fato de sua formação original vir das Artes Visuais e posteriormente você também ter experimentado a rua como espaço de vivência e de produção de seus trabalhos. Poderia comentar como se dá a relação entre as Artes Visuais e as Ações de rua em seu trabalho?

 

ANA TEIXEIRA: A rua é um espaço de trocas, como tantos outros. Ainda na graduação em artes eu me interessei pelas ações no espaço público e continuo seduzida pelas possibilidades que as paisagens, urbanas ou não, podem facultar ao meu trabalho. A “Arte visual”, na verdade, é um campo de conhecimento que ultrapassa muito o visual. Desde o advento da arte conceitual, na década de 1970, trocamos o fazer artístico convencional por um “fazer mental”. As técnicas estão a serviço das ideias e o artista contemporâneo não precisa dominar a feitura tradicional de um quadro ou de uma escultura, por exemplo. Basta que ele tenha ideias e as realize.

 

DAVI GIORDANO: Por último, sobre a sua nova exposição De Perto Ninguém É Normal (Espaço de Cultura Bela Vista, São Paulo, Brasil), quais eram as suas expectativas iniciais e como está sendo a recepção do público paulista? Há planos de expandir o projeto para outros locais e contextos?

 

ANA TEIXEIRA: A exposição De Perto Ninguém É Normal acontece como continuação de um projeto iniciado em 2013, durante a residência artística Vaivém, no SESC Pinheiros, em São Paulo [Ver em: http://goo.gl/huLXCp].

Nessa série elaboro desenhos de seres humanos a partir de uma pesquisa que envolve a observação de suas características externas e internas. São produzidos retratos híbridos de partes das pessoas observadas com partes de outros seres vivos ou de objetos inanimados. A pesquisa se dá por meio do contato direto com os seres pesquisados. Desta feita, em busca de participantes, foram espalhados cartazes pelo bairro da Bela Vista (Bexiga), em São Paulo. Em seguida, conduzidas entrevistas com os moradores interessados em tomar parte do projeto. Durante três semanas, montei meu ateliê no Espaço de Cultura Bela Vista trabalhando nos desenhos.

Esse trabalho, tanto em sua versão de 2013 quanto nesta de 2015, tem sido uma experiência instigante. O questionário que criei como forma de pesquisa faz muito mais o papel de provocar os entrevistados a pensarem em si mesmos, do que o de me ajudar a conhecê-los. Invento artifícios para me conectar com seres humanos e eles têm funcionado bem, no sentido de proporcionar pontes entre mim e o outro, até então desconhecido.

Sim, quero desenvolver esse projeto com grupos diversos e em diferentes lugares e contextos. É só surgir uma chance e estarei lá, confirmando que De Perto Ninguém É Normal.

 

 

NOTA

[1] Esta entrevista surge como a continuidade de uma pesquisa desenvolvida anteriormente que resultou no artigo “Ações de Rua como a Busca Pelo Encontro, Pela Subjetividade e Pelos Afetos: Os Artistas em Contato com a Sensível Humanidade dos Transeuntes”, o qual foi publicado na primeira edição da Revista Observatório da Diversidade Cultural, v. 1, p. 41-49, 2014, ISSN 2358-9175. Em função disso, muitas das questões que proponho para Ana Teixeira nesta entrevista surgiram de uma conversa anterior que realizei com a artista em setembro de 2013.

 

BIBLIOGRAFIA

BELENGUER, Celeste; MELENDO, María José. “El presente de la estética relacional: hacia una crítica de la crítica”. In: Revista Calle14, Colômbia, vol. 7, n. 8, 2012.

BISHOP, Claire. Artificial Hells – Participatory Art and the Politics of Spectatorship. Nova York: Verso, 2012.

______. “Antagonism and Relational Aesthetics”. October, 2004, n. 110, p. 51-79.

______. Socially Engaged Art, Critics and Discontents: An Interview with Claire Bishop. Entrevistada por Jennifer Roche. Julho de 2006. Ver em: <http://goo.gl/iJGB5m>. Acesso em: 04/02/2015.

______. “The Social Turn: Collaboration and Its Discontents”. Artforum 44, n. 6, feb. 2006, p. 178-183.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética RelacionalTrad. de Denise Bottmann. São Paulo: Martins, 2009.

______. Formas de Vida: A Arte Moderna e a Invenção de Si. Trad. de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

GIORDANO, D. F. “Ações de Rua como a Busca Pelo Encontro, Pela Subjetividade e Pelos Afetos: Os Artistas em Contato com a Sensível Humanidade dos Transeuntes”. Revista Observatório da Diversidade Cultural, v. 1, p. 41-49, 2014.

TEIXEIRA, Ana. Trocas: A Arte na Rua e A Rua na Arte: Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2005.

 

 

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

GIORDANO, Davi. “Entrevista com Ana Teixeira”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e o autor

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