Ana Alvarado e a Teatralidade dos Objetos

 

D’Amico/ Fisher, Retrato de Ana Alvarado, 2006

 

Há muitos anos, a relação do meu pensamento com o teatro tomou como eixo principal o corpo do ator e o corpo do objeto, dando a este último um lugar de destaque. Eu chamo isso de batalha entre a carne e a coisa.

Ana Alvarado

 

Como artista, o trabalho de Ana Alvarado sempre evidenciou a obsessão por bonecos e objetos. Atualmente, ela é considerada uma expoente da cena contemporânea argentina e desenvolve atividades como dramaturga, diretora e atriz. Seu trabalho está diretamente ligado às dimensões do teatro de bonecos, da instalação, da performance e das novas tecnologias nas artes combinadas. Nos últimos anos, o seu trabalho de pesquisa sobre a experimentação e linguagem cênica também foi estendido para o âmbito acadêmico. Ela é professora de Direção Teatral do Instituto Universitário Nacional de Artes (Iuna), onde também dirige a Pós-Graduação em Teatro de Objetos, Interactividad y Nuevos Medios, curso que vem crescendo como um importante centro de especialização na área desde a sua criação em 2011. Além disso, ela leciona dramaturgia no curso Títeres y Objetos da Universidad de San Martín (Unsam) e vem coordenando suas próprias oficinas na Argentina e no exterior.

No início de sua carreira, Ana Alvarado transitou do campo de formação das artes visuais e da cenografia para o teatro, principalmente com a formação do grupo El Periférico de Objetos, que foi criado em 1989 por ela em parceria com Daniel Veronese e Emilio García Wehbi. Desde o seu início, o objetivo do grupo era investigar a experimentação sobre o território do teatro de objetos e articular múltiplos sentidos para a noção de manipulação na busca daquilo que seria configurado como a instância do obsceno e do sombrio. Os integrantes originais da formação do grupo El Periférico de Objetos foram atuantes do Grupo de Titiriteros dirigido por Ariel Bufano e Adelaida Mangani. Essa antiga companhia se consolidou como um movimento cultural de militância estética e resistência underground à crise política e financeira da Argentina no final dos anos de 1970. Podemos constatar que a trajetória artística de Ana Alvarado se torna significativa na medida em que ela acompanhou o início do movimento teatral off de Buenos Aires nos anos posteriores à ditadura militar argentina até os dias de hoje com a consolidação do setor alternativo e independente do teatro portenho.

 

DAVI GIORDANO: No seu conto autobiográfico “Autorretrato com muñecos”, é possível notar que desde pequena você possui um olhar sensível para gerar teatralidade em relação aos objetos e às coisas. Podemos pensar que o conceito de teatralidade está associado à noção do olhar, ou seja, eu crio a teatralidade naquilo que eu vejo e considero teatral. Isso me faz pensar que o cerne do seu trabalho não está relacionado diretamente a uma técnica. Ao invés disso, eu penso que a linha conceitual do seu trabalho está articulada com um princípio de “teatralidade dos objetos”, ou seja, a busca pela constante renovação e reformulação da cena. Nesse sentido, eu acredito que a grande contribuição do seu trabalho é pensar que não há uma ideia impositiva, fechada e homogênea sobre a noção de Teatro de Objeto, mas sim que existem Teatro(s) de Objeto(s), porque isso nos permite ter a opinião de que você está problematizando questões e aberturas para outras possibilidades, e inclusive contribuindo para que outros realizem suas próprias propostas cênicas em relação a essa linha de experimentação cênica. Como você pensa essa ideia? Eu acredito que provavelmente, em alguns anos, começaremos a observar múltiplas variedades ainda desconhecidas.

 

ANA ALVARADO: Eu penso na ideia de “objetos portadores de histórias” que surgem quando lhes damos vida. Há uma variedade de mundo que está além do nosso controle. Mas estou tratando de pensar quando, por uma situação do acaso, prestamos atenção e nos damos conta de “algo” que se torna evidente no ato de olhar ao nosso redor. Isso acontece quando o olhar não é uma simples ação de passar pelas coisas, mas sim quando se torna um olhar atento. Isso produz uma espécie de interrupção a partir da qual a espacialidade e a temporalidade anteriores são alteradas. Nesse momento, a coisa vista se separa de sua paisagem e “é” para o sujeito que olha na medida em que se distingue como figura e possui um significado. Quando vemos um objeto já conhecido num território diferente do habitual, percebe-se com clareza a natureza desse processo. Quando vejo um objeto no armário e quando vejo esse mesmo objeto no palco, ocorre o mesmo fenômeno em termos de sentido; ainda que as minhas impressões ópticas sejam as mesmas, a minha atitude (utilitária ou estética) será diferente em ambos os casos, já que, no ato de observá-lo, serão representados para a minha visão diferentes sentidos que o objeto transmite quando se articula com as outras figuras do lugar onde se encontra. Com isso, digo que o objeto-figura irá delimitar sua significação para o sujeito que observa, seja através de percepções de reconhecimento, de distinção, de separação ou de integração ao se articular com as outras figuras presentes. Um sujeito é um ponto de vista, um olhar que percebe o objeto e o horizonte e diz “isso é tal coisa”. Essa coisa, esse objeto no centro da cena, protagoniza uma nova relação com o espaço. Quando colocamos esse objeto no palco e, ainda que ele se mantenha em estado de imobilidade, estará num espaço livre e novo. É inevitável uma modificação do seu tamanho, da sua cor, da sua temperatura. A inserção do objeto na cena produz variações no tamanho e na forma dele. Por isso não é claro qual será o seu valor cênico. Nesse sentido, não há experiência prévia para essa prática e nem para essa nova confrontação, nem para o objeto e nem para o sujeito que observa. Este mesmo objeto que antes passava diante de nossos olhos sem ser percebido, que somente formava parte de uma visão homogênea e já conhecida, agora aparece diante de nossos olhos com uma nova luz. Cria-se uma estranheza como se esse novo estado trouxesse para o objeto uma nova atitude e despertasse um ponto essencial de confluência de forças até o momento escondidas ou desconhecidas em seu interior. O espaço cênico é perturbado por um elemento estranho. O estado anterior do objeto é pervertido e se torna livre para atender a uma nova prática. Mas ainda assim ele carrega a sua história anterior. Aqui está o produto do choque entre o estado de latência anterior e a sua nova função cênica.

 

DAVI GIORDANO: Podemos perceber que a noção de dramaturgia foi amplamente estendida nos últimos anos. Em seu trabalho, é nítida a construção consciente em relação a diversas camadas de dramaturgia (da cena, do texto dramático, das narrativas paralelas, da imagem etc.). As suas peças me levam a pensar na configuração de algo ainda pouco estudado e que, certamente, tem um campo muito potente de descobertas e experimentações. No caso, seria a proposta de uma “dramaturgia dos objetos”. Isso se torna instigante na medida em que podemos pensar que tipo de escritura se daria para esse material? Qual o seu formato? Que metodologias seriam criadas para tornar escriturável a presentificacão cênica de objetos e coisas? Como tornar apreensível uma escrita dramatúrgica a partir da montagem de relações entre corpos – objetos – projeção de imagens?

 

ANA ALVARADO: Eu acredito que a Dramaturgia do Teatro de Objetos e de Bonecos compõe uma gama da Dramaturgia Teatral. No caso, partimos da hipótese de que este teatro cujos protagonistas são os objetos é um teatro no qual a imagem plástica e visual é constituinte do texto principal. Evidenciamos que toda a dramaturgia esteve problematizada ao longo do século passado pela crise do poder da palavra no teatro. Atualmente, notamos um retorno da forte presença da palavra no teatro, contudo sendo ela afetada pela experiência de mais de quarenta anos do teatro pós-dramático. Para nossa investigação, partimos de muito material surgido na última metade do século XX. Como exemplos, posso comentar artistas consagrados no campo do teatro, do cinema e das artes visuais que se tornam interessantes para pensar a nossa hipótese, como Andrei Tarkovski, Robert Wilson, Marcel Duchamp, Antonin Artaud, Eduardo Pavlovski e Mauricio Kartun. Também é importante citar Heiner Müller, que foi uma referência direta em nosso espetáculo Máquina Hamlet, para pensar a composição da dramaturgia cênica do El Periférico de Objetos. A concepção visual substitui a concepção dramática de modo que o personagem é constituído por uma série de imagens e elementos cênicos que se encontram separados uns dos outros e afetam o espectador como se fosse uma mostra pictórica. Hoje é pertinentemente possível partir da imagem e de suas tensões para criar escritura dramática, mas em contrapartida há poucas tentativas para modificar a proporção entre palavra e imagem e deixar que esta última multiplique e diminua a primeira, exceto em algumas dramaturgias de direção que praticamente desconhecem a palavra. A nossa ideia é poder demonstrar que existe uma dramaturgia possível para o Teatro de Objetos e Bonecos ligada à imagem, algo próximo ao roteiro de cinema, ao comic, mas principalmente à simples associação poética dos objetos entre si. O cinema ou teatro a partir do objeto responde a um princípio poético não necessariamente actancial e permite que as imagens se desvinculem da trama e alcancem realidade em outra instância que não é aquela da necessidade da ação. A partir desse ponto de vista, surge um texto no qual a palavra não é ignorada, mas se torna mais consequência do que causa. E essa singularidade constitui um apaixonante campo de trabalho.

 

DAVI GIORDANO: A hibridização é um fenômeno cada vez mais intenso no campo da arte contemporânea. Desde 2011, você coordena a especialização em caráter de pós-graduação em Teatro de Objetos, Interatividade e Novos Meios no Iuna. Em pouco tempo, esse curso já se tornou um centro de referência importante para essa linha de experimentação na América Latina. Como você observa a formação desses jovens artistas no desenvolvimento de um campo de pesquisa artística interdisciplinar [1]? Quais as formações anteriores desses jovens? Que tipos de trabalhos de conclusão de curso estão sendo desenvolvidos? Como esses artistas estão desenvolvendo e articulando suas pesquisas fora da universidade?

 

ANA ALVARADO: A especialização da pós-graduação em Teatro de Objetos, Interatividad y Nuevos Medios nasceu da minha própria experiência como artista e das minhas buscas interdisciplinares, mas também da observação que eu tinha de que muitos espetáculos e artistas inclassificáveis realizavam experiências radicais, contudo isoladas da integração de linguagens, e assim desconheciam as pesquisas semelhantes em outras artes. Fundamentalmente, as artes multimídias e o teatro de objetos são áreas artísticas muito fechadas nelas mesmas. A pós-graduação possibilita um campo de abertura para profissionais formados nas artes visuais, cênicas, teatro de bonecos e objetos, e também, em menor quantidade, para profissionais da dança e das artes multimídias. Também recebemos críticos de arte e investigadores. A maioria dos alunos são da América Latina, embora haja alguns da Europa. No ano passado, tivemos as apresentações dos primeiros trabalhos de conclusão daqueles que haviam iniciado a primeira turma de origem do curso, e estamos muito felizes com o resultado. O curso buscou e conseguiu fazer com que o trabalho de conclusão consistisse não somente na elaboração de um texto teórico, como é comum nos contextos universitários, mas também na realização de um projeto artístico inovador a partir do qual cada aluno tem a liberdade de explorar de forma prática as suas próprias questões e indagações artísticas. Até o presente momento, a primeira turma formada realizou a exposição de seus trabalhos no evento Umbral de las Artes Performáticas e no evento FASE do Centro Cultural Recoleta. Ambos são espaços de considerável prestígio cultural para a cidade. Os alunos continuam com seus trabalhos em Buenos Aires ou em seus países de origem.

 

DAVI GIORDANO: Dentro desse contexto, seria interessante ouvir de que maneira você articula a sua atividade de professora com a sua trajetória de diretora? No caso, de que forma você pensa a formação acadêmica como um lugar criativo de produção artística e a universidade como um espaço de devir criativo? E gostaria de aproveitar o fato de que você vem dando oficinas fora do país, como você observa o crescimento de interesse por essa tendência nos países em que vem trabalhando?

 

ANA ALVARADO: Para a minha experiência, eu considero que a carreira acadêmica e a atividade artística se alimentam. Desde os meus primeiros espetáculos, a cena foi construída a partir da inclusão da sua própria crítica assim como faziam as velhas vanguardas do século XX. No presente momento, a investigação universitária me permite um canal de reflexão maior do que a experiência artística. O campo teatral da minha cidade, sempre muito ativo, está precisando deixar de “olhar tanto para si próprio” e conquistar novas visões e discussões que a universidade pode oferecer. Nessa fase da minha vida, as viagens funcionam principalmente para transmitir a minha experiência em outros contextos. Eu acredito que espaços muito interessantes estão sendo criados. No caso, eu posso citar como exemplos os laços de meu trabalho que já existem com o Brasil e com o México e também as novas experiências que estão sendo realizadas na Colômbia.

 

DAVI GIORDANO: No cruzamento do teatro de objetos com as novas tecnologias nas artes combinadas, notamos que a sua pesquisa artística projeta um interesse para pensar a figura do “Homem Pós-Orgânico”, esta interface entre corpo, subjetividade e tecnologias digitais como bem explica a autora Paula Sibilia (2009) de onde você toma como base essa proposta. Penso que estamos nos aproximando cada vez mais do pensar novas concepções para os corpos e subjetividades. Nesse sentido, a sua cena se torna essencial para pensar a performatividade das coisas. Em que medida isso está sendo apropriado pelo debate crítico em relação aos seus espetáculos? Isso provoca pensar que a crítica deve também buscar um campo de formação interdisciplinar e pluralista com o objetivo de compreender as instâncias estéticas e políticas para esses tipos de trabalho.

 

ANA ALVARADO: Sem dúvida, a crítica deve direcionar o seu interesse para os trabalhos interdisciplinares e desenvolver um campo de investigação para que tais pesquisas não se desintegrem. Da mesma forma, isso possibilita que a crítica tenha como papel mediar o interesse teórico e curatorial necessário para que espetáculos e artistas desses tipos de trabalhos sejam também legitimados. Pelo menos em nossos países latino americanos.

 

DAVI GIORDANO: Desde 2010, você coordena, junto a Carolina Ruy, a mostra Genealogía del Objeto, uma mostra de performances, instalações, peças de teatro e outras modalidades de produções alternativas. Como você observa o crescimento dessa mostra nos últimos três anos e quais as perspectivas desse evento para o futuro? Você pretende realizá-la também em outros países? Aproveito a oportunidade e faço a pergunta final: tem planos futuros para algum trabalho no Brasil?

 

ANA ALVARADO: O evento está crescendo cada vez mais na quantidade de ofertas. A cada ano estamos recebendo mais propostas de espetáculos. O evento foi um precursor daquilo que a pós-graduação do Iuna desenvolve na trajetória do curso. Na Argentina, já realizamos o evento em Rosário e em Buenos Aires e temos planos de continuar para o futuro. Temos muito interesse de estender a experiência a outros países, mas para isso precisaríamos de apoios e patrocínios maiores ou acordos bilaterais. Ainda não temos essa estrutura necessária. Adoraríamos fazer uma experiência bilateral com o Brasil, isso seria fantástico. Não tenho planos de trabalho para o Brasil no momento, mas estou muito aberta para essa possibilidade.

 

 

NOTA

[1] Na minha experiência de intercâmbio acadêmico bilateral na Universidad de Buenos Aires, eu estava inserido num ambiente de pesquisa e investigação que se propõe a conceber um pensamento artístico por meio de atravessamentos, agenciamentos e cruzamentos das formas híbridas. Assim é desenvolvido o curso de Artes Combinadas da Facultad de Filosofía y Letras na sede Puán da Universidad de Buenos Aires; e identifico esse campo de formação múltipla também estimulado em outras instituições e escolas de arte como o Iuna. Por outro lado, quando desenvolvo trabalhos fora da universidade, noto que os diálogos e as colaborações artísticas entre profissionais das diversas áreas são atividades regulares e intensas. A partir dessa experiência direta com o campo artístico da cidade, posso identificar um modelo de produção estética mais disponível ao entrelaçamento dos diversos campos de atuação como uma ação positiva e necessária tanto por parte dos artistas como também para a renovação do olhar do público.

 

BIBLIOGRAFIA

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PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

GIORDANO, Davi. “Ana Alvarado e a Teatralidade dos Objetos”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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