Entrevista com Aimberê Cesar

 

Aimberê Cesar

Entrevista a Bianca Tinoco, em 7 de março de 2009

 

Frames da participação de Aimberê Cesar no documentário Nunca Parei de Daniel Zarvos sobre o poeta, performer e pensador Ericson Pires

 

BIANCA TINOCO: O que te levou à linguagem da performance?

 

AIMBERÊ CESAR: A performance chegou à minha cabeça a partir da necessidade de criar um contraponto com o dito normal, de discutir o que é isso que as pessoas acham normal. O que me motivou, desde o início em 1982, foi a vontade de criar situações em que as pessoas fossem obrigadas a conviver com a diferença, seja ignorando, seja contracenando, seja o que for – não há como fingir que aquilo não existe, você está cara a cara com a situação. A performance nesse aspecto é bem interessante, porque você está vivo e está ali no momento, não está representando um personagem. Não está em outra esfera, mas em outro contexto, no qual você cria pontos de fuga, pontos de vista diferentes. Foi o que me atraiu para a performance. Não tinha uma noção artística disso – a noção, eu passei a ter com a Márcia [X.]. Ela me possibilitou dar uma direção mais interessante, que vai se tornando evidente dentro do trabalho. O que eu sabia era que eu queria interferir naqueles ambientes, principalmente nos artísticos, intelectuais, onde ainda existe o pensamento, onde a princípio alguém está a fim de questionar e pensar sobre isso. O que é diferente de fazer uma performance em um lugar no qual as pessoas não estão esperando nada. Minha ideia inicial era criticar o fato de que, dentro desses movimentos, dentro da esfera intelectual carioca, brasileira, não tínhamos a capacidade e a dinamicidade de pensar a diferença. As pessoas são em geral muito pacatas, passivas. Romper com a estrutura é uma maneira de romper com o negócio.

 

BIANCA TINOCO: Como começou seu envolvimento com Márcia X.?

 

AIMBERÊ CESAR: Na década de 1980, naquela época da [exposição] Geração 80, existia uma produção de performance no Rio de Janeiro. Mas, de alguma forma, o establishment, tanto dentro das artes plásticas quanto na imprensa, não conseguia perceber nem lidar com isso, simplesmente ignorava. Tratavam como se não existisse. Mas existia essa produção. Em um determinado momento, meu envolvimento com a história da performance veio pela necessidade de transformar, de criar outros focos, outras possibilidades. Minha onda performática vem da filosofia, eu sou basicamente um filósofo. Márcia X. sempre foi basicamente uma artista plástica, e eu sempre fui um filósofo. Então, minha necessidade de trabalhar com o pensamento, com o estranhamento, com o estar no mundo, com o modo como você se apresenta, o que você é e como funciona, isso sempre me interessou. Quando não conhecia Márcia X., eu fazia performances do meu jeito mesmo, não tinha noção de artes plásticas, apesar de frequentar o meio. Eu tinha clareza de que queria transformar o ambiente, mexer com o que estava acontecendo, e fazia minhas performances em função disso.

Minha junção com a Márcia X. foi na exposição Como vai Você, Geração 80?. Ela, com a Ana Cavalcanti, fizeram uma grife/trabalho, MarciAna, e apresentaram uma espécie de desfile. Chamaram várias pessoas “interessantes” – eu, Alex [Hamburger], Mauricio Ruiz, Valéria Sayão, Wallace Hermann, Markus Konká, entre outros. Nenhum de nós era modelo de moda, mas, por outro lado, a gente fazia uma coreografia meio maluca com esse trabalho.

 

BIANCA TINOCO: Isso aconteceu na exposição mesmo?

 

AIMBERÊ CESAR: Na exposição, na mesma época, cada dia acontecia uma coisa. Performance tem um grande problema: ela é instantânea, acontece no dia e na hora. Não adianta fotografar e filmar porque você não captura. Não captura momentos, emoção, um monte de coisas – captura uma imagenzinha quadradinha, tudo plano. Por conta disso, acho que nunca realmente a performance foi incorporada à Geração 80 dessa forma, apesar de estar ali, de estar acontecendo. Ela não era incorporada porque não existia – a gente nem tinha câmera de vídeo na época, era caro. Fizemos [no evento As Artes da Arte] no Morro da Urca, um bolo de dinheiro enorme, a gente distribuía as fatias de dinheiro. Tudo isso não tem registro a princípio, são coisas perdidas, aconteceram nessa época por conta do trabalho da Márcia X. e da Ana, que foi super importante para juntar as pessoas, criou um núcleo. Depois fizemos no Centro do Rio, distribuindo dinheiro, eram notas imensas que a gente jogava da janela do prédio. Elas iam caindo e os mendigos, os executivos, as secretárias, todo mundo, se misturava lá embaixo. Catando as notas que tinham mais de um metro.

Como não foi percebida pela imprensa nem pelo próprio meio artístico, essa coisa meio que se perdeu. Logo adiante teve um boom em que a performance virou moda. Mas aí, também, a gente não entrava, porque quem virou moda foram os artistas famosos, todo mundo começou a fazer performance. O boom acabou, as pessoas pararam de fazer performance e eu continuei, porque essa é a minha linguagem.

Na minha cabeça, o que interessa para a escolha do meio é o tipo de mensagem que eu quero dar. Se eu quero fazer uma coisa que é melhor passar pela poesia, eu crio uma poesia. E assim também com performance, com vídeo. Nem todo mundo pensa dessa forma, é uma característica minha. Assim é a filosofia, o que eu quero é passar determinado pensamento, determinada ideia. Eu me aproprio de qualquer meio que esteja à mão para passar esse pensamento.

 

Grupo Ziklus, Motim do Cruzeiro, 1987. Release-manifesto do grupo Ziklus. Performance para o evento As Artes da Arte no morro da Urca. Os participantes do Grupo Ziklus, que incluía Márcia X., Alex Hamburger, Ana Cavalcanti, Wallace Hermann, Aimberê Cesar, Mauricio Ruiz, confeccionaram um bolo gigante para a ocasião. Trabalho desdobramento da performance Chuva de Dinheiro de Márcia X. e Ana Cavalcanti. Arquivo documental da artista Márcia X. – MAM-Rio, Rio de Janeiro, Brasil

 

BIANCA TINOCO: Da década de 1980, o que você lembra de trabalhos seus, tanto com Márcia X. quanto sozinho?

 

AIMBERÊ CESAR: Sem Márcia X., além dessa parte das performances com a MarciAna, lembro de vários trabalhos: Invasão dos Canudos, Fi- lo de Fios, Andando em Círculos, Coreografia Para Câmera e Plateia… Eu, Márcia X., Alex Hamburger e Mauricio Ruiz fizemos uma espécie de grupo, depois que a MarciAna se dissolveu. Esse conjunto tinha uma característica: não éramos realmente um grupo. Cada um desenvolvia os seus trabalhos e todos ajudavam. Rolavam ciumeiras e brigas por essa situação. Mas o trabalho da Márcia X. era da Márcia X., mesmo que eu estivesse filmando, o Mauricio fotografando e assim por diante.

É óbvio que, em algumas horas, o negócio se misturava. De tanto dar palpite, não se sabe até que ponto [vai a influência]. Lovely Babies, acho que é da década de 1990, foi um trabalho da Márcia X. em que ela me procurou, queria fazer bonequinhos de brinquedo transando. Eram bonequinhos pequenininhos, e ela queria apresentá-los no [Espaço Cultural] Sérgio Porto – que é um palco “imenso”, com uma plateia “imensa”, ninguém ia ver os bonequinhos lá. Aí eu propus filmá-los ao vivo, na mesma hora, e exibir as imagens no telão. Ela fazendo performance e eu filmando, nós dois no palco, a ação exposta no telão e no palco ao mesmo tempo.

Fiz vários trabalhos com Márcia X. que eram dela: eu filmava, participava, dava palpite, mas a ideia básica era dela, a onda era dela. E ela me ajudou em vários trabalhos que fiz. Mauricio também. Até hoje ele me ajuda o tempo todo, a gente chega a perder a autoria, apesar de certas coisas serem obviamente de cada um. Porque ele é que puxa, eu não iria puxar aquilo, então eu ajudo, participo, mas claramente o negócio é dele, com minha participação. Com Alex, foi a mesma coisa, certas coisas ele puxou e nós ajudamos. Mauricio e eu continuamos nos ajudando. Não faço nada com Alex há um tempão.

 

BIANCA TINOCO: Como começou o zen nudismo?

 

AIMBERÊ CESAR: Digamos que o zen nudismo não surgiu, ele se cristalizou em 1990. Eu sempre tinha sido assim. Fui criado segundo Piaget, Lacan, com princípios livres, tomava banho pelado com meus pais, isso era natural na minha vida. Nunca entendi, não entendo até hoje, porque as pessoas têm problemas com a nudez – para mim, ela é um estado natural do ser humano. Respirar, comer, dormir, ficar pelado é natural, não tem nada de mal nisso. Posso vestir uma roupa ou não, isso não vai mudar meu jeito de ser. O zen nudismo foi um aprofundamento. Ficar pelado é a parte simples, o aprofundamento é perceber a hipocrisia da sociedade, perceber que somos o que somos, e não o que a sociedade quer que sejamos. A roupa, a obrigatoriedade da roupa, é a hipocrisia vestida em nossos corpos, gravada em nossas leis.

“A sociedade tem problemas com as drogas, muita gente usa, finge que não usa, jura ‘de pé junto’ que não usa, e usa, ou conhece alguém que usa.”

Existe uma hipocrisia social estúpida, que nos dá duas opções: ou fingimos que somos cegos, ou desvendamos nossa hipócrita conivência com essa sociedade preconceituosa e torpe, que não aceita as diferenças culturais e individuais, apesar de fazer parte delas.
Não tem saída. Ou a gente vive em cima da realidade ou vai ficar com antolhos, fingindo que não está vendo o que está acontecendo ao nosso redor. Decidi dizer “discordo”, a nudez existe, meu corpo existe, minha mente existe, minha individualidade existe.

Eu penso assim: – Tenho direito de fumar o que eu quiser, de comer o que eu quiser, de fazer o que eu quiser, desde que não atinja os outros. Isso é uma questão séria para mim, eu não tenho como não defender isso.

 

Aimberê Cesar, Preservando a Ecologia do Homem – ECO 92, da série Zen Nudismo, 1992. ECO 92, Praia do Flamengo, Rio de Janeiro, Brasil

 

Por isso a escolha da performance, ela é uma forma radical de romper uma estrutura. Vou à galeria, ponho canudinho e dou de cara com aqueles riquinhos “babacas”, tudo olhando um monte de “quadrinho babaca”. O que eu estou fazendo ali? Pelo menos eles ficam olhando para mim e não sabem o que fazer. Pois a situação da galeria, do espaço artístico, cria a possibilidade de dar uns encontrões, esbarrões, e as pessoas não sabem o que fazer, elas se seguram, elas pensam. Isso também acontece com O Câmera Nu na ECO 92 [performance na ECO 92]; se alguém está filmando e o policial vem para cima, ele se controla quando vê as câmeras [jornalistas internacionais também filmavam e fotografavam a performance]. Ele não sabe o que fazer, como se comportar…

Essa situação para mim é fundamental, para mostrar esses discursos, desvendar as relações de forças. Quero muito um advogado que tope fazer essa “brincadeira” comigo, de entrar na justiça pedindo o direito de ficar nu. Se um passarinho tem o direito de ser nu, baleia também tem, por que eu não tenho direito de fazer o que eu quero com meu corpo? Não quero agarrar ninguém, só quero ficar pelado, tomar meu banho de praia pelado, fazer o que eu quiser – me respeitem. Não estou desrespeitando ninguém, quero que me respeitem. A nudez é um direito meu, de todo ser humano.

A “brincadeira” do zen nudismo é essa: filosofia-prática-arte-magia. Porque eu achei que a filosofia em si é muito racional; a prática dá a produção, mas a produtividade sozinha é muito material, objetiva. A arte cria justamente essa capacidade de jogar com as duas, de não ser nem tão racional nem tão produtiva.

A magia é saber e perceber que existe uma energia em torno da gente. Isso aqui tudo é fruto de uma energia, nós somos energia. Tanto é que a bomba atômica dissolve essa situação. O problema da bomba atômica é exatamente esse, ela mexe com os átomos, as moléculas e nós somos átomos e moléculas.

Como diriam os indianos, somos “maia”, somos falsos, somos uma ilusão.

A junção dessas quatro esferas é o zen nudismo, sempre com a proposta de desvendar, de se libertar: “Seja você mesmo.”

A primeira performance declaradamente zen nudista foi na inauguração do CEP 20.000, “O Nu Gratuito”.
 O CEP 20.000 foi muito importante para nós, pela possibilidade de apresentarmos nosso trabalho. Já que não éramos reconhecidos dentro dos museus… A performance não tinha reconhecimento. Se você quisesse mostrar performance, tinha que fazer exposições. Mesmo a Márcia X., por mais louca que ela fosse, cabia no museu se fizesse uma exposição [mostra de objetos], por mais “louca” que a mostra fosse. A performance não cabia. Na época não funcionava. A maior parte dos artistas de performance se apresentava em boates, porque foi o espaço que sobrou. O CEP 20.000 foi a primeira oportunidade de um espaço experimental [CEP = Centro de Experimentação Poética / 20.000 = Rio de Janeiro]. Foi criado pelo Guilherme Zarvos, Chacal, Carlos Emílio, Tavinho Paes e outros, um grupo. Os poetas do CEP 20.000 abriram as portas para a nossa experimentação durante mais de uma década, enquanto os museus não davam bola para nós.

Criamos várias performances a partir do CEP, para o CEP. Eles ofereciam vídeo, davam toda uma estrutura que normalmente não teríamos, e também atenção, que a gente ralava para conseguir das instituições.

 

Frames da performance O Câmera Nu (1992) de Aimberê Cesar no documentário CEP 20.000 de Daniel Zarvos sobre o projeto CEP 20.000 (Centro de Experimentação Poética do Rio de Janeiro)

 

The Zés Manés – Banda Efêmera de Música Aleatória, CEP 20.000, Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, Brasil, 1993. “Uma Dúzia de Zés Manés” que ou não sabiam tocar, ou tocavam instrumentos que não sabiam, ou até mesmo outros objetos cênicos, resultando numa grande catarse audiovisual coletiva. Participação de: Aimberê Cesar, Alex Hamburger, Ana Durães, Cláudia Watkins, Heleno Bernardi, Helio ‘Scubi’ Jenné, João Neve, Luiz Freire, Márcia X, Mauricio Ruiz, Ricardo Basbaum e Xico Chaves. Frames do vídeo operado por Ricardo Ventura e editado por Aimberê Cesar

 

Aimberê Cesar, Painel Zen Nudismo Instantâneo, da série Zen Nudismo, 1996. Performance interativa, CEP 20.000, Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, Brasil

 

Márcia X. fez uma exposição chamada Academia Performance, em uma academia de ginástica, chamada Performance, em Ipanema, porque não tinha como ela fazer performance em outro lugar. Fazia performance em academia de ginástica porque era a chance concreta de veicular, viabilizar os trabalhos, porque eles não tinham aceitação no mercado. Nem no mercado, nem dentro do próprio espaço de arte, do pensamento dos museus, dessas coisas todas.

Penso que é por isso, em parte, que não fomos referência para essa exposição Onde Está Você, Geração 80? Não foi estabelecida uma relação com a performance porque, para eles, ela não existia, nunca existiu. Marcus Lontra não é de jeito nenhum uma pessoa “tapada” – pelo contrário, é inteligentíssimo. Simplesmente, naquela situação, ele não estava ligado nisso – e sim em um mercado que estava comprando pintores, com toda uma produção fortíssima, aquilo é que interessava. No momento seguinte, a mídia deu interesse para a performance, mas uma performance num outro sentido, de boate, show, que a gente não fazia… Nossa onda era mexer com as pessoas, embaralhar os pensamentos e estimular uma postura diferenciada frente à realidade.

 

BIANCA TINOCO: O fato de não ter sido considerado Geração 80 liberou os artistas de performance para que eles desenvolvessem sua poética independentemente de rótulos?

 

AIMBERÊ CESAR: Sim, concordo totalmente. Em um primeiro momento, na época, nos sentimos meio rejeitados. Em um segundo momento, quando a performance virou moda e ficamos de fora, nos frustramos. Mas continuamos trabalhando em espaços alternativos. Ser artista não é dom: é insistência, incapacidade de ser outra coisa. Você não consegue deixar de fazer aquilo, precisa fazer, então faz. Não é porque vai dar dinheiro. Até existem essas situações, mas não é por aí. Nós não ganhamos dinheiro fazendo performance, nós gastamos. Fazemos outras coisas para ganhar dinheiro e gastamos fazendo o que queremos. Não se trata de grana, fazemos performance porque precisamos, não é simplesmente uma vontade. Você acorda pensando naquilo, dorme pensando naquilo, e no outro dia faz. Se não fizer naquela semana, se sente frustrado, vai ficando tão ansioso que faz na outra. Não é uma coisa simples nem tão deliberada. Pelo menos no meu caso, é uma necessidade.

Na época da Eco 92, estavam no Rio representantes de todos os Estados do mundo inteiro, índios… E pensei: “Tenho que fazer uma ação do zen nudismo nesse negócio!” Morri de medo, suei, pintei e bordei. Meu organismo, meu corpo ficou desesperado. Sou de classe média, fui criado para não fazer essas coisas em público [ficar nu]. Faço porque não consigo deixar de fazer, tenho que colocar o que eu penso, não posso escapar disso, é necessário para a minha existência. Como sempre fui preocupado com as consequências dos meus atos, usei a câmera para chegar e filmar. O policial veio para cima de mim, e, quando viu as câmeras, baixou a guarda, deu tudo certo. Mas foi tudo muito pensado.

 

BIANCA TINOCO: Essa moda de performance que você comentou, como foi esse momento?

 

AIMBERÊ CESAR: É como essa coisa de personalidade, que agora virou moda e não é nada. Pegam uma situação como se representasse algo na história do país, da cidade. Em um determinado momento, a imprensa, o establishment, escolheu a performance como moda. Sacaram que existiam aquelas loucuras que a gente fazia e que era moda lá fora, e aí trouxeram o mesmo raciocínio. Só que eram pessoas que não tinham essa tradição, não conheciam essa linguagem, simplesmente estavam se aproveitando. Em termos de conceito, não tinha conteúdo nenhum, aquilo se esfacelava em cinco segundos. A imprensa tem essa dificuldade. Eu fiz jornalismo, e acho que um dos problemas da imprensa é não pensar. Ela quer o clichê. Por isso, na hora em que a imprensa lança a moda da performance, imediatamente os famosos que tinham essa articulação da própria imprensa ocuparam esse espaço.

Ficamos frustrados na época, mas eu nem acho que tinha a ver, não era muito nossa onda. Os caras queriam era show não sei de quem, com performance na boate tal, o que a gente não fazia e nem ia fazer. Não era desprezo, simplesmente estávamos em outra. Fizemos performances no Pão de Açúcar, no Morro da Urca… Já vínhamos fazendo aquilo há muito tempo, nos sentimos desprezados. Finalmente tinham descoberto a existência da performance, só que era outra! [risos] Nem dá para dizer que eram ruins, essa questão de gosto é muito relativa. Simplesmente não tinham o aprofundamento das nossas, de questionamento, do que é o mundo, do que pretendemos. Eles queriam só se exibir, então faziam qualquer coisa, jogavam fogo pela boca e acabou.

 

BIANCA TINOCO: Geração 80 como geração de pintura virou clichê?

 

AIMBERÊ CESAR: Sim, inclusive ajuda a vendê-los até hoje. Essa galera a princípio se deu bem.

 

BIANCA TINOCO: E foi um clichê criado pela imprensa, pelas galerias…?

 

AIMBERÊ CESAR: Acho que foi um movimento coletivo. Existia realmente aquela situação acontecendo, Marcus Lontra enxergou. Ele não é de jeito nenhum uma pessoa para se falar mal, é super antenado. Teve a capacidade de perceber um movimento de pintores que estavam trabalhando com muita efervescência e com atualidade, antenados com os sentimentos da hora, e por isso fez a exposição. Ele só não sacou a situação da performance naquele [momento]. Não deu tanta importância, mas aconteceram performances dentro da Geração 80. A exposição incluía performance, incluía essas coisas todas, não era excludente. Talvez a própria imprensa não tenha visto naquela época o que nós estávamos mostrando, pegou só a pintura.

 

Frames da entrevista de Aimberê Cesar na matéria do Bom Dia Rio (Rede Globo) sobre a exposição Desempenho Acontecimento Ação organizada por André Sheik e Chico Fernandes na galeria Novembro Arte Contemporânea no Rio de Janeiro no Brasil. A matéria foi exibida no dia 29 de abril de 2009

 

BIANCA TINOCO: A quem se deve o fato de a denominação Geração 80 ter se tornado exclusiva dos pintores?

 

AIMBERÊ CESAR: Não sei. Acho que um pouco da crítica; os críticos são bastante responsáveis por essa situação. E também pela situação da performance, por não perceberem. Até hoje, não se sabe muito bem como tratar a performance. Os museus, a estrutura de preservação da arte, não estão preparados para lidar com performance. As artes plásticas são um espaço bastante rico, na medida em que questionam tudo. Pode-se fazer uma “obra de merda”, que todo mundo vai odiar, podem apedrejar a obra. Mas você estar no seu ateliê, guardado, e a exposição vai para a Espanha, a Itália, a Alemanha. O artista, por se preservar da obra, com um certo distanciamento, não é obrigado a fazer algo que vá realmente agradar o público. Pode colocar um questionamento “horroroso” e as pessoas vão se manifestar em relação àquilo, não em relação a “ele”. Por conta do distanciamento, as artes plásticas conseguiram uma capacidade de experimentação muito ampla. O performer, quando está atuando, está sujeito à reação das pessoas. Se a proposta for a de desenvolver uma situação que ele sabe que a plateia vai ficar irritada, e se não tiver toda uma estrutura apoiando o questionamento diferente que você quer fazer, corre o risco de ser apedrejado. Ele está lá de frente. A performance se apropria, utiliza o espaço das artes plásticas para poder trabalhar de uma forma mais livre, sabendo que esse público está acostumado a um tipo de situação e que há mais abertura para se negociar, trabalhar. Não é meu objetivo, e o da maior parte dos artistas, ser vilipendiado. Você não quer ser maltratado, quer que as pessoas entendam, discutam, discordem, mas vejam seu trabalho. Márcia X. uma vez foi expulsa do shopping center com um revólver; era uma poesia que ela estava fazendo com Alex…

 

BIANCA TINOCO: Foi aquela durante a Bienal do Livro, no Fashion Mall…?

 

AIMBERÊ CESAR: Isso. Foi expulsa com um revólver. Não quero um revólver em cima de mim, isso não me interessa. Quero discutir a existência do revólver. Quero transformar o mundo.

 

Aimberê Cesar, Agitando as Massas, da série Zen Nudismo para As Massas, 2003. Intervenção, Show do HAPAX, Fórum Social Mundial, Porto Alegre, Brasil

 

BIANCA TINOCO: Como você avalia o momento atual da performance no Brasil?

 

AIMBERÊ CESAR: O aspecto mais forte é o dos grupos. Está rolando muita performance, muita intervenção feita por grupos de pessoas. Para a minha geração, que sempre trabalhou em cima do próprio nome, é interessante, porque é outra visão. Por exemplo, em uma exposição chamada Associados, há menos de um ano, um pessoal propôs “ah, então tira o nome de todo mundo”. Eu falei: “Cara, peraí. A gente está há anos tentando implantar nosso nome dentro do negócio. Então, vamos fazer uma coisa coletiva, mas não tirar os nomes. Vamos fazer uma criação coletiva, mas não excluir os nomes, como se não tivesse autoria.” Acho que a diferença é essa. Eu sempre gostei de trabalho em grupo, mas nunca me misturei a ponto de perder a autoria, de perder quem eu sou no trabalho. Posso ajudar você a fazer o seu, não colocar nem meu nome, mas eu sou eu e você é você, não somos nós dois juntos, nós dois fazemos um grupo. Isso é uma coisa diferente para a minha cabeça. Acho interessante, apesar de não partilhar.

 

BIANCA TINOCO: De que maneira a sua geração reverbera nos performadores em atividade?

 

AIMBERÊ CESAR: Sabe que eu não tenho uma consciência muito clara? Sempre fico surpreso quando alguém vira para mim e diz que me viu em ação. Fico chocado, é sempre uma surpresa. Como trabalhei muitas vezes com público grande, imagino que haja um grande número de pessoas influenciadas, mas não tenho essa consciência. Também porque eu não frequento muita [universidade]. Muitos artistas são professores universitários, lidam com isso, não tenho essa prática. Dei poucas aulas no Parque Lage, na [Universidade] Estácio de Sá. Não tenho a noção clara de como meu trabalho influencia as pessoas. Só vejo, de vez em quando, umas figuras vindo falar comigo, mas sempre fico surpreso.

 

BIANCA TINOCO: Sei que você é um dos líderes de um bloco. Como pensa a relação entre carnaval e performance?

 

AIMBERÊ CESAR: Tenho uma sacação muito interessante nesse aspecto. Tenho um amigo que mora em São Francisco [bairro de Niterói] e vive fazendo performances em casa, sozinho, para ninguém ver. Se joga pelo chão, põe umas roupas… é o jeito dele. Cheguei a discutir com o Basbaum [Ricardo Basbaum] sobre isso: “Até que ponto essa arte feita para um ‘não público’, a arte feita em casa – eu sozinho, só para mim, só para você, e acontece só ali naquele momento e acabou – Isso não é arte? Qual é a relação expor e fazer? Se estou fazendo e ninguém viu, não é arte? Se estou fazendo e acho que é, é?” Esse cara que sempre foi assim, o Ronaldo Ferreira. Uma vez, era carnaval, e ele me chamou para ir na casa dele [Jacarepaguá, na época]. Ele estava lá, sempre fantasiado, e de repente me disse “vamos sair na rua?” E saímos. A gente sempre falava isso e nunca saía. Mas era carnaval. Como era carnaval, saímos e estabelecemos a maior relação com as pessoas, a vizinhança dele. Chegamos na pracinha e as pessoas foram super receptivas. E eu falei “que engraçado, na verdade elas não sabem que o que nós estamos fazendo é uma performance, porque para elas é carnaval”. O carnaval nos permitia expressar a nossa naturalidade na rua, para todo mundo, aquilo que fazíamos todo dia, toda vez que nos encontrávamos. Como todo mundo via aquilo como carnaval, tivemos liberdade para pular, dançar, fazer o que a gente quisesse. Entendi que é um conceito: hoje você pode fazer isso, amanhã você não pode. Se você quiser sair de toalha na rua, em qualquer dia normal, não pode. Mas, se for carnaval, pode. Eu fiz isso em um carnaval, saí com um grupo de pessoas com toalha amarrada e touca, espuma de barbear, como se tivesse saído do banho. Foi um sucesso, todo mundo agarrava a gente. Essa percepção foi interessante.

O bloco foi criado como forma de reivindicação contra o governo do Cesar Maia, que queria fazer o Guggenheim no Rio de Janeiro a preços absurdos: a cidade ia ficar devendo rios de dinheiro para o resto da vida. Formou-se um grupo contrário, o Artes Visuais e Políticas.

Na época, eu coordenava um evento chamado Zona Franca, realizado toda segunda-feira durante um ano [2001/2002], na Fundição Progresso. Normalmente iam umas cinquenta pessoas: no dia que enchia, dava quatrocentas. Num determinado momento, meu lado grupal fez esse tipo de evento. Fiz Segundas Urbanas com Samaral, e Zona Franca com Adriano Mellem, Alexandre Vogler, Guga Ferraz, Ducha, Edson Barros e Roosivelt Pinheiro, várias pessoas… Para o evento, chamávamos um monte de pessoas, sem compromisso nenhum, e fazíamos um menu básico, com quatro, cinco que iriam ser as atrações da noite. Havia um momento em que abríamos o palco para quem quisesse se apresentar. E aí tinha dança, performance, música. Um artista quebrava a parede, outro tocava fogo em pneu. Pintamos e bordamos nesse negócio, deu super certo!

Numa reunião do Grupo Artes Visuais e Políticas [formado em protesto ao projeto de construção do Guggenheim Rio], no espaço Capacete, o grupo determinou que se faria um abaixo-assinado e uma ação. Eu falei “ação é comigo mesmo” e todo mundo concordou na hora. Então pensamos no bloco, mas como uma ação em protesto contra o prefeito.

 

Bloco carnavalesco “Vade Retro”, Rio de Janeiro, Brasil, 2013. Fotografia de Jeanine Gall

 

No primeiro ano, o bloco saiu por causa disso, todo mundo das Artes Visuais e Políticas ajudou. No segundo ano, o bloco não existiu, não tinha por quê. No terceiro ano, eu saquei: disse “ô, gente, podemos transformar o bloco em bienal. Como é um bloco de artes plásticas, provavelmente vai ser o único bienal do mundo”. Todo mundo se animou, o bloco saiu, e o tema do desfile foi a arte na TV, algo assim…

O Bloco é bienal, só sai nos anos ímpares. Este [2009] foi o quarto ano que o bloco saiu. Já tem oito anos de existência. E sempre com essa irreverência de lidar com a relação das artes com o mundo. Não é um bloco tradicional, de “sambinha”. O desfile é de costas, caminhando do Arpoador ao Posto 9, e sempre protestando e sugerindo coisas para a política cultural. Esse ano, o tema foi “Vade Retro Crise, Arte Dá Dinheiro!” Distribuímos dinheiro para as pessoas na rua, notinhas pequenininhas, falsas.

 

Frames da participação de Aimberê Cesar no documentário A (Re)volta do Zona Franca de Alexandre Vogler sobre o evento de arte Zona Franca, que acontecia semanalmente na Fundição Progresso no Rio de Janeiro (Brasil) no ano de 2001

 

 

PARA CITAR ESTA ENTREVISTA

TINOCO, Bianca. “Entrevista com Aimberê Cesar”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, jan. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e a autora

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