Entrevista com Agrippina R. Manhattan

 

Agrippina R. Manhattan

Entrevista a Marcela Tavares em 25 de junho de 2020

 

Agrippina R. Manhattan, frame de Transfobia, 2018

 

MARCELA TAVARES: Agrippina, queria que a gente começasse pelo começo. Você poderia falar um pouco sobre a sua trajetória nas artes visuais, desde a sua formação, passando pelos seus interesses e referências, até chegar nos suportes que você utiliza?

 

AGRIPPINA R. MANHATTAN: Marcela, tenho muita dificuldade em começar pelo começo, porque fico me perguntando por onde começar.

Eu nasci em São Gonçalo, em 1997, e vivi lá até 2019. Foi lá que eu fiz meu primeiro curso de artes visuais, uma aula de pintura e desenho na casa de uma artista chamada Gilcea Guerreiro. Foi também em São Gonçalo que eu cresci e me formei como eu. Digo isso porque acredito que parte importante da minha poética se forme em torno da ideia de transição. Isto é, uma noção de movimento.

Desde antes de ser Agrippina, vivenciei o deslocamento entre São Gonçalo e as outras cidades que a cercam (em especial Niterói e Rio de Janeiro, cidades mais “desenvolvidas”) como um paradigma epistemológico. Eu vivia em São Gonçalo mas aprendi que se faz a vida saindo de lá. Cresci num ambiente familiar muito intenso e presente; foi preciso me distanciar de lá para poder entender quem eu era.

Quando iniciei minha graduação em História da Arte em 2015, comecei a ir regularmente para o Rio para estudar. Foi nessa época que comecei a conhecer a cidade e as possibilidades que estar longe da família me proporcionou. No entanto, não tive condições financeiras e emocionais de me mudar na época.

Comecei a trabalhar como pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2016 sob orientação da Profa. Doutora Maravilhosa Liliane Benetti, uma das mulheres que mais admiro e sou grata por ter encontrado. Com o dinheiro consegui sustentar as vindas pro Rio mais frequentes e comecei a expor em alguns lugares e também comecei minha transição hormonal. Demorou um tempo pra reconhecer que estava fazendo esse movimento. Comecei a me chamar Agrippina porque minha orientadora me mostrou o filme Agrippina É Roma-Manhattan, do Hélio Oiticica, e eu achei que seria um bom nome artístico. Eu ainda uso como um nome artístico, apesar de agora entender que há um abismo entre essas duas Agrippinas.

Em 2018, consegui meu primeiro estágio remunerado no Museu de Arte Contemporânea de Niterói. Foi essa minha primeira experiência institucional como educadora, e a partir dela eu comecei a pesquisa que culminou no meu trabalho intitulado Transfobia. Nessa época também encontrei um grupo de amigas em São Gonçalo que me refugiaram diversas vezes quando eu não cabia em casa. Elas foram e são uma grande fonte de esperança e inspiração pra mim, e algumas delas aparecem em meus trabalhos.

Nesse mesmo ano, entrei na Escola de Artes Visuais do Parque Lage como aluna do curso de formação e deformação. Considero esse um ponto de antes e depois na minha vida por alguns motivos. No que se refere ao reconhecimento do cistema das artes foi um momento em que outras instituições passaram a convidar e a dialogar com meu trabalho. Percebi que a cisgeneridade criou um cistema para validar a si mesma e, quando consegui convencer uma delas a acreditar no trabalho, as outras começaram a se interessar por mim.

Pessoalmente, foi um momento incrível para desenvolver meu trabalho. Dentro da turma estavam algumas das que hoje são minhas melhores amigas, artistas e curadoras que admiro muito e que foram fundamentais no meu amadurecimento como artista e como pessoa. Nesse período, comecei a trabalhar intensamente para juntar dinheiro para sair de casa e trabalhar bastante. Cheguei a trabalhar sete dias por semana durante dois meses para juntar uma grana. Parte desse aqué, no entanto, foi furtado por algum membro da minha família, já que eu não trancava a porta na minha casa de São Gonçalo.

Embarquei profundamente em pesquisa e trabalhos e passava cada vez menos tempo em casa. Naquele ano, também fui curadora da minha primeira exposição intitulada A Retomada da Imagem Será a Presença. Comecei a entender aí as relações muito próximas entre ser artista, educadora e curadora. Entendo hoje essas separações como focos de pensamento, mas também como ilusões da cisgeneridade, pois ela acredita que as identidades são muito mais rígidas do que realmente podem ser.

Penso o suporte e a materialidade do meu trabalho apenas como um fragmento do que realmente são, assim como meu corpo é. Apesar de o meu corpo e meus trabalhos serem os objetos que são, acredito que eles existem em outra esfera, e eu também. Antes de começar um trabalho, às vezes ele é uma piada, um pensamento que me diverte ou que me intriga. Alguns trabalhos são só pensamentos, outros viram palavras, alguns viram palavra-escultura, de outros eu esqueço. Gosto de fazer um exercício quando não tenho certeza se quero desenvolver um trabalho mais a fundo ou não; fico sem pensar ou esboçar nada dele por uma semana ou duas, depois, se ainda lembrar dele, sei que ele está tentando me dizer alguma coisa.

 

MARCELA TAVARES: Uma questão que aparece bastante no seu trabalho é seu interesse pela arte-educação, ou pelos atravessamentos entre a arte e a educação. Se você puder, nos conte sobre como surge esse seu interesse e de como você acabou transformando isso num tema dentro do seu trabalho?

 

AGRIPPINA R. MANHATTAN: Esse interesse surge a partir da minha experiência trabalhando em espaços museais como arte-educadora. Esse lugar é um dos mais precarizados dentro das instituições e, consequentemente, o mais propício a contratar corpos como o meu para posições de subalternidade. Eu trabalho com arte educação há três anos e nunca tive um vínculo formal. Na maioria das vezes, fui estagiária ou freelancer. No entanto, sempre precisei trabalhar para me manter, especialmente depois de ter começado a faculdade e a terapia hormonal, então, sempre fiquei no lugar de: – É uó, mas vou fazer o quê?

Trabalhando como educadora, percebi que esse lugar carregava dentro das instituições uma contradição. Em muitas instituições é um saco ser educadora! A remuneração por vezes não é boa, quase sempre há uma relação que se dá no tom de obediência e servidão com a direção e a curadoria e, por vezes, as condições de trabalho são incômodas e um tanto constrangedoras, em alguns momentos. No entanto, digo com certeza que em todas as instituições que trabalhei, o educativo é a agência mais potente no que diz respeito à criação, conteúdo e interação com o público.

Eu gosto muito de trabalhar com o público, ainda que nem sempre seja fácil ou seguro. Gosto de ouvir estórias e histórias e aprender com elas. Acredito num ambiente de arte-educação como uma prática de ateliê e não de escola. Não que a escola não possa ser um ateliê, na verdade seria muito menos chata e violenta se fosse, mas digo um ateliê no sentido da experimentação. Estamos aqui juntas, algo nos reuniu, o que podemos fazer e ensinar umas às outras? Gosto de deixar bem evidente que não pretendo ensinar nada, nem me colocar como mais uma do público, porque eu ocupo um lugar, estou ali pois sou remunerada. Procuro encontrar esse equilíbrio instável e seguir nele, compartilho algumas coisas que sei e algumas dúvidas. Às vezes, mesmo em lugares diferentes, não estamos tão distantes uns dos outros, me interessa achar esse meio caminho para nós.

Para o educativo, duas experiências foram bem importantes: minha experiência como estagiária no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC) e meu tempo como educadora na exposição QueerMuseu, no Parque Lage.

Trabalhando no MAC, encontrei muitos desafios sobre como desenvolver um trabalho de educação no lugar da estagiária. Essa instituição, em particular, entendia meu lugar como monitora e me pedia para fazer coisas como: fiscalizar o público, colocar os calçados no parapeito coberto por carpete, seguir as práticas, que minhas chefes entendiam por mediação, e evitar polêmicas e embates com o público.

Como boa artista que sou, minha resposta era desobedecer, desenhar e ler no trabalho dentre outras pequenas insurgências, para mostrar meu descontentamento. Devo reconhecer, no entanto, que, apesar de desgastante, era um trabalho onde eu usufruía de bastante liberdade, juntamente com a equipe com quem eu trabalhava (Lucas Alberto, Matheus Morani, Ramon Lacerda e Vicente Rocha). Naquele momento, começamos a desenvolver nossas próprias práticas e pesquisas. Percebi que a instituição serve para ser hackeada pois, historicamente, concentrou os recursos que possibilitam meu trabalho e por isso a desobediência, vagabundagem e balbúrdia que fazíamos me parecem profundamente potentes.

O que me chamou mais atenção, no entanto, foi quando eu fui aceita para o curso de formação e deformação do Parque Lage e, de repente, pareceu que cada vez mais eu era reconhecida como artista, inclusive por artistas que haviam exposto no MAC. Encontrei, nesse abismo entre a artista e a estagiária, um questionamento que levo até hoje e que é fundamental para o educativo. Pensei o educativo partindo de tudo o que eu queria fazer enquanto educadora e que a instituição não permitia. Então, ao invés de propor como prática educativa, eu propunha como arte.

Na QueerMuseu, passei por um período muito intenso de trabalho e energias, mas sinto que talvez seja a experiência que mais me ensinou. Trabalhei como assistente de curadoria e educadora ao mesmo tempo e, em muitos momentos, tive de intermediar conflitos entre a instituição e as educadoras. A maior parte dos conflitos tentei resolver com diálogo, mas conforme o tempo passou, percebi que a instituição não estava disposta a dialogar e, mais uma vez, entrei nessa obediência programada que o cistema impõe. Sinto que lidei com as situações da melhor maneira que podia, em muitas delas eu não tinha o poder para realizar nada (eu era só a assistente do curador para a exposição da QueerMuseu, sem nenhum vínculo empregatício), mas nada disso me isenta da responsabilidade de estar num local de cuidado e ter produzido e reproduzido violências para outros corpos.

Para minha sorte, essa experiência de assistente tinha um objetivo pedagógico e foi de uma maneira que nunca iria imaginar. Boa parte do educativo era LGBTQIA+ e boa parte era de pessoas trans. Elas fizeram o que eu falhei em fazer, se impunham perante a instituição, não aceitavam caladas as bobeiras de ninguém (inclusive as minhas) e produziram diversas ações educativas, que superaram a potência do que eu ou o Ulisses Carrilho (curador do educativo) propusemos.

Aprendi que antes de querer ensinar qualquer coisa a alguém, primeiro eu preciso aprender. Aprender a matar a cisgeneridade dentro de mim, a normatividade dentro de mim, matar esse desejo de obedecer, para poder continuar no mundo deles. Aprendi que nenhum educativo se faz sem pessoas trans (sendo uma exposição sobre o queer ou não) e que o vínculo com essas pessoas precisa ser duradouro. Nenhuma experiência pedagógica se constrói da noite para o dia, é preciso tempo, dedicação, cuidado e escuta. Coisas que por vezes são escassas em instituições de grande porte.

Aprendi que um educativo deve ser, citando Ventura Profana: “DELAS, POR ELAS E PARA ELAS.” Essa experiência foi decisiva quando, ao final do ano, tive que apresentar um projeto para uma exposição no mesmo lugar onde tinha trabalho. Não houve verba para o educativo dessa exposição, pensei então em criar o educativo onde eu gostaria de ter trabalhado e onde pessoas como eu pudessem trabalhar por prazer e não por violência. A experiência durou duas semanas e contou com trabalhos de Yhuri Cruz, Lais Amaral, Mariana Paraizo, Camilla Braga, eu, Bianca Kalutor e Andrea Brazil.

 

Agrippina R. Manhattan, E-DU-CA-TI-VO [Momento conversa/escuta com Yhuri Cruz], Escola de Artes Visuais do Parque Lage, 2018

 

MARCELA TAVARES: Já tive o prazer de visitar três exposições suas: na galeria IBEU, no Ateliê Sanitário e em sua residência artística na Despina. Na galeria IBEU, você expôs um trabalho chamado Linguagem, no Ateliê Sanitário, você propôs uma experiência coletiva de desenho, que já fazia parte desse seu grande trabalho chamado E-DU-CA-TI-VO, e na Despina, você propôs encontros “educativos” com várias artistas que também configuram seu E-DU-CA-TI-VO. Você poderia nos contar um pouco mais sobre esse seu projeto e como ele se conecta de alguma forma com seus trabalhos anteriores?

 

AGRIPPINA R. MANHATTAN: Linguagem é parte de uma série que venho desenvolvendo com uso de painéis de luzes de led, pensando poesias e textos que fujam dos suportes tradicionais da escrita. São um veículo muito utilizado nas metrópoles, como Rio de Janeiro, e gosto de pensar na poesia aparecendo na fachada de um ônibus. Gosto de pensar que elas me garantem certo anonimato e que isto, de certa maneira, coloca o trabalho em um lugar diferente. Uma vez uma amiga curadora me disse que eles me “colocam num lugar onde minha identidade trans some ou pelo menos passa despercebida e eu me torno apenas mais uma poeta”.

Gosto de investigar o quanto minha identidade serve de bengala para as leituras que pessoas cisgêneras fazem do meu trabalho. Acredito que isso tenha sua importância, mas ela é bem menor do que imaginam. Na verdade, não se trata de ser mais ou menos importante, mas entender que na minha pesquisa e em mim há fatores que são igualmente relevante (como minha relação com a História da Arte ou meu interesse em poesia) que, por vezes, são ofuscados pela chave de leitura identitária. Como se não fosse possível ser poeta e travesti ao mesmo tempo.

No Ateliê Sanitário propus uma oficina de desenho cujo objetivo era explorar da ordem mais fechada até a liberdade total. O exercício se chama “Instruções Para uma Desobediência”, e é composto por cinco folhas de papel: na primeira está escrito “desenhe a si mesma batendo em um fascista” e abaixo uma imagem fechada para colorir, na segunda, a imagem e a instrução são parcialmente apagadas, e a instrução vira “desenhe a si mesmo batendo”. A operação continua até que na última folha não há nada escrito ou desenhado.

Do desenho pronto para colorir até a folha em branco há um caminho, mas o interessante nesta proposta é justamente sua incitação à desobediência. Há quem desenhou a si mesmo batendo na folha em branco e quem ignorou as instruções para desenhar por cima tal como numa folha em branco. Me interesso justamente por esse lugar onde a liberdade encontra uma maneira de burlar um cistema e entendo a desobediência como potência criativa (o que não significa que suas consequências consigam necessariamente fugir da normatividade).

Meu projeto na Despina, o E-DU-CA-TI-VO: Estranhos Saberes, foi fundamental para entender o nível de infraestrutura que esse trabalho demanda. Pela primeira vez, consegui remunerar as artistas sem que isso saísse do meu bolso; em outras edições sempre dei preferência à remuneração de pessoas trans ou que tivessem menos aqué disponível para si. No entanto, sempre operei num regime de colaboração, pagando às vezes apenas a passagem e, por isso, entendo esse trabalho como um trabalho coletivo, pois sem a disposição das participantes em construir algo comigo, ele não seria possível.

Com Estranhos Saberes [1] foi possível remunerar as artistas com cem reais por uma aula mais o custo do seu deslocamento e eventuais materiais necessários. Entendi que assim poderia chamar mais pessoas trans para construir comigo, afinal, era o público cuja remuneração era mais importante para mim. Entendo hoje que para realizar o educativo é preciso algum tipo de retorno, principalmente porque cada vez mais tem me interessado realizá-lo com pessoas trans, racializadas, “fudidas” de grana e que moram longe e me recuso a pensar qualquer prática artística que produza mais vulnerabilidade do que potência para corpos dissidentes.

Todos esses trabalhos operam em algum nível no paradoxo – falar e ser escutada. Procuro entender como construir relações entre corpas que não falam a mesma língua, entendendo que, mesmo falando o mesmo idioma, estamos em um nível de singularidade falando sobre nós mesmas, então: Como me fazer entender? Estes trabalhos, seja por meio de brincadeiras e trocadilhos linguísticos ou por uma análise da composição morfológica da língua, procuram o que foi dito pelo não dito, o que a língua não dá conta e só é possível comunicar através do corpo, ou seja, aquilo que só o corpo fala.

De alguma maneira, acredito que, apesar do fato de que meus trabalhos não possuam um suporte específico para se desenvolver, todos vão ao encontro dessa possibilidade maravilhosa que é não estar sozinha.

 

Agrippina R. Manhattan, A Linha e a Agulha, 2018

 

MARCELA TAVARES: É muito incrível acompanhar de perto seu percurso de jovem artista e como você já conseguiu certo reconhecimento pelo “Mercado da Arte”, sendo por exemplo indicada a um dos prêmios mais importantes de arte contemporânea no Brasil. Você poderia falar um pouco sobre sua perspectiva em relação aos desafios de ser jovem artista no Brasil?

 

AGRIPPINA R. MANHATTAN: Bem, admito que sinto certo reconhecimento, mas acredito que este seja mais um artifício pelo qual o cistema tenta me convencer que está do meu lado. O que é uma grande mentira! Acho que antes de tudo é preciso entender que tipo de jovem artista você é. Boa parte das artistas que conheço são pessoas cisgêneras, em sua maioria pessoas brancas e da classe média/média-alta.

Não posso falar por ninguém, que não por mim mesma. O desafio que sinto pessoalmente é como me manter financeiramente e emocionalmente em um cistema que só deseja me usar. Frequentemente sou convidada a falar sobre pautas de gênero e os desafios de ser uma artista travesti no Brasil, o que não é um problema. Mas frequentemente esses convites vêm sem remuneração e sem um aprofundamento crítico sobre mim ou sobre meu trabalho.

Meu trabalho é lindo, como um trabalho de travesti. Mas o que isso significa? O que significa ser uma travesti no Brasil? O que significa ser uma travesti artista no Brasil? O que significa ser uma travesti branca no Brasil? Como isso se relaciona com meu trabalho? Quais identidades conseguem escapar dessa catalogação de suas poéticas e subjetividades a partir do seu corpo?

Sinto que me vendo muito barato e digo poucos “nãos”. Aprendi com Jota Mombaça a proteger minha recusa e sinto que preciso começar a recusar mais. São muitos os momentos em que tenho que negociar com a cisgeneridade, afinal ela é a presença esmagadora nas Artes Visuais (no Brasil e no mundo também), e por muitas vezes me coloquei em lugares onde me via reproduzindo violências do cistema, inclusive contra outras travestis. Hoje em dia, um dos principais desafios que sinto é não validar meu trabalho a partir do outro e procurar ser cada vez mais consciente dos meus lugares, falas e posições para conseguir viver e trabalhar a partir do que eu acredito e do mundo que quero construir.

 

MARCELA TAVARES: Queria que você falasse um pouco sobre seus projetos atuais, no que você tem pensado tanto no seu trabalho como nos seus planos de vida para o futuro (pós-pandêmico).

 

AGRIPPINA R. MANHATTAN: Tenho tentado sobreviver e preciso de um emprego. Estar sem renda fixa é uma coisa que me deixa muito abalada e puta da vida. Não passo nem metade do perrengue que muitas travestis passam, mas também não estou nem na metade do conforto que muitas cisgêneras se encontram. Tenho me organizado e tentado ficar bem, a saúde mental talvez seja um dos maiores privilégios cis mas me mantendo obstinada a alcançá-lo.

Tenho pensado em alternativas para sobreviver à margem das instituições; trabalhar dentro de uma é reconfortante, mas tremendamente exaustivo. E se tem uma coisa que a pandemia me ensinou é que não posso confiar minha sobrevivência a elas; o estágio onde trabalhava não está com peso na consciência, pois sabe que em sua lógica eu sou descartável e que, se me rebelar, acabo com as possibilidades de ser contratada na pós-pandemia. É o que o cistema faz: nos alimenta com promessas. Isso não enche barriga!

Tenho desenhado bastante, investido em exercícios de design e ilustração para, talvez, encontrar outras formas de me sustentar, mas também porque acho muito divertido. Tenho me permitido ser menos conceitual e gastado “muita onda” em casa; tenho pintado e desenhado muitas coisas, mas principalmente eu e meu gato. Tenho experimentado com cor, luz e outros papéis, que não o branco, para fugir um pouco do que meu olho se acostumou.

Esta pesquisa com cor acabou se desdobrando em experimentos que estou fazendo com painéis de luz led colorida. Estou particularmente obcecada com o novo álbum da Lady Gaga e isso tem reverberado nos leds. Um deles que estou trabalhando consiste em dois painéis, um azul e um vermelho, colocados invertidos um ao outro e ligados na mesma extensão elétrica. Intitulei esse como All I Ever Wanted Was Love, ainda que ele não esteja finalizado, mas às vezes em minha pesquisa o título costuma vir primeiro.

Tenho me permitido e me cobrado, comido mal e fazendo exercício, gritando com as paredes e fazendo ioga. Não sou ingênua, a ponto de achar que está tudo bem, mas sou extremamente grata por estar onde estou, e isso me deixa feliz.

Ter um gatinho também ajuda muito também!

 

Agrippina R. Manhattan, frame de Transfobia, 2018

 

NOTA

[1] Participou no E-DU-CA-TI-VO da Escola de Artes Visuais do Parque Lage: Agrippina R. Manhattan, Andrea Brazil, Bia Kalutor, Camilla Braga, Lais Amaral, Mariana Paraizo e Yhuri Cruz. Já no E-DU-CA-TI-VO: Estranhos Saberes na Despina: Andrea Brazil, Bianca Kalutor, Castiel Vitorino Brasileiro, coletivo Fudida Silk (Yuki Hayashi, Kaete Clemente, Bia Kalutor & Gabrielle Gambine), Hernani Reis, Irmãs Brasil, Makayla Sabino, Pulva Cosmos, Tai Mattos Cazul e Walla Capelobo.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

TAVARES, Marcela. “Entrevista com Agrippina R. Manhattan”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

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