O(s) “Mito(s)” da(s) Masculinidade(s) que Perpassa(m) a Obra “Passagem”, de Tales Frey

 

Tales Frey, Passagem. Performance realizada em Guimarães, Portugal. Junho de 2016. Fotografia de Paulo da Mata

 

Historicamente, o homem se interpretou – e passou a ser experienciado – como representante da humanidade. Linhas do tempo anunciam os reflexos das projeções comportamentais do sexo masculino como sendo modelos apropriados e reapropriados em categorias que estruturam todo o conhecimento até então assentado apenas na relação desse homem com a dominação do espaço. Adrienne Rich nos conduz a pensar o corpo como a geografia mais próxima. Seguindo por esse roteiro, percebemos que o mapeamento do corpo do sexo masculino, equivocadamente naturalizado [1] como dominador, foi reduzido à masculinidade hegemônica. Ainda hoje, embora existam narrativas sob a óptica dos estudos de gênero de diversas masculinidades [2], o atrevimento do devir [3] do corpo (des)conhecido de ordem heteronormativa é situado como periférico [4] e não masculino [5].

 

Tales Frey, Passagem. Performance realizada em Guimarães, Portugal. Junho de 2016. Fotografia de Paulo da Mata

 

Coordenado ao ritmo lacaniano, no que diz respeito ao reconhecimento do sujeito por etapas, e revisitando a metáfora do espelho, o artista Tales Frey cria uma série de narrativas imagéticas de ritos de passagem no dia em que é celebrado o seu aniversário. Contudo, nesta crítica, eu me detenho no último rito intitulado Passagem, apresentado no dia 20 de junho de 2016 no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura (CAAA), em Guimarães (Portugal). O artista executa, no tempo de uma hora, uma passagem cronometrada num momento performativo. Essa passagem – que é circunscrita em um espaço-tempo em que circundam convidados-espectadores da ação narrada na formalidade de seu “aniversário” – projeta, sob caráter simbólico e imagético, o conceito de efêmero. Indiferente a esse momento transitório, é também a memória. Contrastes de percepções são destaques na performance Passagem; evidenciado o corpo isolado do artista, podemos refletir sobre a individualização que permanece interativa ao acontecimento que é social e, não sendo descartado enquanto coletivo, segue reafirmando propriedades exclusivas de corpo-tempo-espaço-memória.

Compreender o mundo é nos compreendermos no mundo sob a óptica patriarcal, mas também sob a óptica periférica à masculinidade hegemônica, se pensarmos a dualidade humana categorizada, primordialmente, pelo binômio sexual homem e mulher. O que perpassa o tempo-espaço delimitado de começos e fins narrados em cronologias e genealogias que não extravasam pelas bordas do corpo e do sexo? A sexualidade humana, reconfigurada em acordos de poderes como narrativas legitimadoras da superioridade masculina, naturaliza os valores simbólicos de inferioridade que são, desde o nascimento, socialmente inscritos no corpo. O que a cultura patriarcal classifica como mulher é confrontado por Simone de Beauvoir no locus classicus “não se nasce mulher, torna-se mulher”, o que nos lança num primeiro momento de desnaturalização do feminino – e do masculino –, que a filósofa Judith Butler leva mais longe na sua teoria da performatividade.

No planeamento em que o artista se instala no espaço, o seu corpo não está dispensado de sua experiência(ção); sua presença física nos é entregue e incorporada como reflexo de nossa imagem. Compomos, todas e todos, a materialização que sexualiza o rito de passagem. O artista nos promove a localização como observadoras e observadores – novamente, contrastando-nos na dualidade do corpo – entre o passivo e o ativo. Somos cúmplices virtuais em duelos de ego numa gangorra sexualizada, de inícios e fins, de fins e inícios.

 

NOTAS

[1] Utilizo o conceito de naturalizar da mesma forma que o sexo feminino é naturalizado como dócil, materno, dominado.

[2] É importante pensar a masculinidade hegemônica como produto histórico que tenta disciplinar todas as demais masculinidades subordinadas ao patriarca heterossexual não negro e não deficiente.

[3] Precisamos levar em conta as transgressões em que o corpo é inserido a todo momento na efemeridade do mundo pelos conflitos globais. Ver em: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002.

[4] A ordem social categoriza, primordialmente, os corpos através da diferença sexual, e, em seguida, por etapas, definem as classificações de outras minorias através, por exemplo, das etnicidades. Assim negligência e desvaloriza a ocupação física dos corpos e os próprios corpos que fogem à heteronormatividade. 

[5] Penso, na perspectiva ocidental, que na relação entre o dominador e o dominado não existam modos de inclusão, apenas de exclusão. Sendo que o centro do poder considera o sexo masculino branco heteronormativo e não deficiente como seu maior representante e todas as outras identidades não hegemônicas são consideradas não masculinas.

 

BIBLIOGRAFIA

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida, Vol. II. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

______________________. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos, Vol. I. Trad. de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

BUTLER Judith. “Actos performativos e constituição de género. Um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista”. In: MACEDO, Ana Gabriela; RAYNER, Francesca (orgs.). Género, cultura visual e performance: antologia crítica. Lisboa: Livros Cotovia, 2011.

RAMALHO, Maria Irene. Difference and Hierarchy Revisited by Feminism. Anglo Saxonica, Ser. III, n. 6., 2013, p. 23-45.

RICH, Adrienne. “Notas para uma Política da Localização”. In: MACEDO, Ana Gabriela; RAYNER, Francesca (orgs.). Gênero, Identidade e Desejo, Antologia Critica do Feminismo Contemporâneo. Lisboa: Livros Cotovia, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

MENEZES, Lizi. “O(s) “Mito(s)” da(s) Masculinidade(s) que Perpassa(m) a Obra ‘Passagem’, de Tales Frey”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e a autora

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