Paisagem/pele

 

Suzana Queiroga representada na ilustração da artista Veridiana Scarpelli para a sétima edição da eRevista Performatus

 

“Olhos d’Água”, projeto desenvolvido por Suzana Queiroga para o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, constitui-se em um inflável que dá nome à mostra, três séries de desenhos, três vídeos e uma pintura. O local é ponto focal de sua concepção e envolve o entorno do museu mediante várias camadas de significação. A Baía de Guanabara foi o lugar do acidente aéreo que matou o pai da artista, em momento anterior ao seu nascimento. A condição da artista nesse período – no útero materno – é de extrema relevância para o trabalho, pois implica intrincada temporalidade: a presença de vitrine com fotos, arquivos e documentos da época assinala referência cronológica precisa. O mar que separa o museu do aeroporto onde o avião não pousou significa simultaneamente dissolução e acolhimento do corpo paterno. A operação da artista gira em torno desse fato, agora transmutado em questão artística: constituir uma memória mediante a reverberação dessa vivência, tal qual a tessitura de uma paisagem-pele.

 

Suzana Queiroga, Olhos d’Água, 2013. Escultura inflável em PVC transparente, 12 x 2,20 m. Fotografia de Mario Grisolli

 

Vitrine: arquivo de família de Suzana Queiroga. Fotografia de Mario Grisolli

 

Vitrine: arquivo de família de Suzana Queiroga. Fotografia de Mario Grisolli

 

 “Olhos d’Água” estabelece relação significativa com a paisagem, tratada não mais como visão neutra, externa e distanciada. Ao invés da tradicional vocação panorâmica da Baía de Guanabara, o trabalho apresenta formato, cor, escala e espacialidade que questiona a noção que comumente é estabelecida pela vista do museu. De dimensão gigantesca e instalado no teto do espaço central, o inflável azul remete e subverte as relações entre céu e mar, dentro e fora do que afinal era hierarquizado pela paisagem clássica ou por um crivo científico. Seu formato orgânico evoca nuvens ou membrana que qualifica e incorpora o ambiente. Os fatos passados, identificados pelos arquivos na vitrine, são ressignificados por uma atmosfera que abriga afetivamente a construção dessa memória. A paisagem aí não é um a priori, supõe compreensão contemporânea caracterizada pela mescla dos territórios e pela ausência de fronteiras entre espaços e tempos tradicionais [1]. Não é uma visada de um momento a partir de um ponto de vista, mas constituição em ato, uma paisagem-pele vivenciada pela artista e reconfigurada pelo espectador. O sentido de “Olhos d’Água” não supõe apenas raciocínio, mas sentimento, que assegura o entrecruzamento entre obras, espaços e temporalidades. Nada é fixo ou dado de antemão; como fluxos de vivência, os trabalhos reúnem diferentes extratos de tempo. O espectador tem percepção complexa, carregada de potencial simbólico, mas também muito real, pois todas as camadas de significação convergem no presente imediato. Essa é a questão norteadora dos vídeos que estendem o sentido do projeto. Cais repete ininterruptamente o virar de folhas de papel, suspendendo e revelando o tempo como passagem, e Olhos d’Água é uma videoperformance na qual a artista vivencia o horizonte trágico por intermédio de ações delicadas de uma espera.

A iluminação é parte importante do projeto, pois confere uma atmosfera intimista a uma sala que normalmente desagrega pela monumentalidade. A luz rebaixada com o grande inflável no teto acentua o caráter espiritual a que a vivência da mostra nos convida. A cor do inflável e dos desenhos é fundamental para essa experiência; funciona inicialmente como isca que captura e inverte a lógica dos elementos. No entanto, o azul oferece densidade que requisita percepção mais alargada, uma vez que incorpora uma dimensão simbólica não racional. A artista relata ter descoberto nos arquivos do pai desenhos e capas de diários com o mesmo azul. A relação da cor com a natureza, “a cor que passa pelo que é céu, densidade atmosférica, ar, nuvem, e também mar, oceano e profundidade (….) como se essa fosse algo que pairasse acima de tudo” [2] evidencia entendimento mais amplo do que o raciocínio cromático do início de sua trajetória. A impregnação afetivo-simbólica não contraria a lógica natural, mas antes supõe concepção de natureza diversa daquela da racionalidade ocidental: a relação com o entorno constitui um continuum no qual a cor não adjetiva ou qualifica as coisas, mas revela, sobretudo, concentração espiritual. O senso cromático estabelece fluxo que impossibilita limites ou classificações postuladas pelas dicotomias do Ocidente. [3] É por intermédio da vivência dessa vibração que dualidades são suspensas em uma ambiência: uma paisagem-pele que dá corpo à memória paterna.

 

Suzana Queiroga, Devolva-me ao Mar (detalhe), da série Livro do MAR, 2013. Guache sobre papel tinturado, 64 × 46,10 cm. Fotografia de Mario Grisolli. Coleção de Paulo Aureliano da Mata/ Acervo Performatus

 

Suzana Queiroga, Olhos d’Água, 2013. Vídeo, 7’26”. Fotografia de Mario Grisolli e Renato Vallone

 

A tessitura é evidenciada pela relação entre os meios e, sobretudo, pelas séries de desenhos. Eles incorporam outras experiências da artista como Livro do AR, relacionado à experiência com o balão Velofluxo, que por sua vez remete ao último voo do pai. Já Livro do MAR fala da dissolução dos fragmentos de seu corpo no mar, da morte e do desaparecimento, enquanto Livro da DOR fala das perdas e da relação morte e vida. Os desenhos são realizados sobre papel vegetal tinturado com diversos pigmentos e guache e, por isso, apresentam superfície crespa e com relevo, onde se destaca um sinal como uma tatuagem. A marca que durante a concepção do projeto foi tatuada no próprio corpo da artista é uma linha contínua com referência à ideia de fluxo e de topologia.

 

Suzana Queiroga, Me apequeno, voo, me separo vento, da série Livro do AR, 2013. Guache sobre papel tinturado, 64 × 46,10 cm. Fotografia de Mario Grisolli

 

A utilização de palavras e da mesma marca em todos os desenhos confere uma unidade visual ao conjunto. Dispostos em sequência em três paredes, formam uma trama que permite que a cor respire e transite no ambiente. Os desenhos evidenciam a pele como limite singular, identificada à superfície, como um sudário. Ela recobre nosso corpo, mas não o fecha totalmente, porém significa um limite como fluxo entre interior e exterior, uma vez que sente, respira, eriça-se e ruboriza-se. Michel Serres [4] afirma que, como uma paisagem, nossa pele poderia ser chamada de variedade. No sentido preciso da topologia, ela “esquece a geometria pela topologia, esquece a geometria pela geografia, esquece o ponto de vista, a representação, pelos montes, estreitos, bordas que vêm ao contato, à contingência (…) fina folha de pregas e planos, salpicada de acontecimentos e de singularidades, sensível às vizinhanças, como o invisível de topologia povoa e ilumina o visível da experiência, do interior”. “Olhos d’Água”, como o título aponta, é fluxo que restaura a unidade da vida, dá corpo ao sentimento, como uma pele que cobre com um véu o que o olho não pode ver. Mais do que dilaceramento explosivo, invoca atmosfera afetiva de sofrimento – pele que respira e permite a existência da memória.

 

Suzana Queiroga, Olhos d’água, 2013. Vídeo, 7’26”. Fotografia de Mario Grisolli e Renato Vallone

 

Notas

[1] A respeito de uma concepção contemporânea de paisagem contrapondo-se àquela tradicional, ver CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

[2] QUEIROGA, Suzana. Entrevista em texto do release da exposição “Olhos d’Água”. Niterói: Museu de Arte Contemporânea, 2013.

[3] A coincidência de o projeto “Olhos d’Água” ser apresentado ao mesmo tempo que uma mostra de Joseph Beuys no Museu de Arte Contemporânea acrescenta outra camada de significação à sua experiência. Beuys foi piloto de ataque da Luftwaffe na Segunda Guerra Mundial e sofre um acidente aéreo que marca profundamente sua obra, pela escolha e simbologia dos materiais como, por exemplo, gordura e feltro. Esses materiais, empregados no seu salvamento, também incorporam outros estratos de significados, como qualidades físicas de isolamento e condução de energia, que também invocam irradiações espirituais. Tal qual um xamã, Beuys procura, em sua vida e em seu trabalho, a restauração da unidade perdida entre natureza e espírito, um modo de pensar que inclui associações míticas e mágico-religiosas. 

[4] SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.20. 

 

 

Revisão de Marcio Honorio de Godoy

© 2013 eRevista Performatus e o autor

Texto completo: PDF