O que está à Luz do Nosso Tempo, Discernimos no Escuro

 

Indiferente ninguém fica. Não há possibilidade de sair impassível e aplaudir, de forma apática, o que Marcelo Evelin mostrou no Teatro Municipal Rivoli na cidade do Porto, em Portugal, nos dias 26 e 27 de setembro de 2014, e essa talvez seja a maior prova de que seu trabalho é uma obra de arte viva construída com a finalidade de gerar pensamento crítico e não meramente de exibir uma determinada aptidão artística edificada sob firulas capazes de dopar um espectador confortável no seu lugar inerte.

Um aglomerado de corpos nus, completamente tingidos por uma pasta negra, transitava de um lado para o outro de uma área delimitada por luzes fluorescentes tubulares com intensidades baixíssimas. Por vezes (raramente), as luzes tinham suas intensidades aumentadas, mas sem que iluminassem por completo o recinto; a penumbra era definitivamente um elemento fulcral para que as experiências pudessem verdadeiramente ocorrer. Era uma espécie de ringue construído sobre o palco italiano, porém com as cortinas fechadas, onde as cadeiras da plateia foram completamente aniquiladas para dar lugar a um único espaço comum: o próprio palco negro, onde todas(os) pudessem partilhar de uma vivência coletiva dentro da demarcação estipulada ou do lado de fora dessa área mais agitada para quem preferisse apenas contemplar tudo sem o compromisso de se misturar à volumosa massa de gente.

O grupo unido dos performers pintados de cor preta marchava de uma direção a outra em ritmos variados e persistentes, sendo agressivos em certos momentos e brandos em outros. Assim, víamos nichos que gradativamente eram alterados: nem sempre era possível permanecer ao lado de uma mesma pessoa, pois tudo estava em pleno movimento, havendo, dessa forma, uma noção artaudiana em que todos eram espectadores e performers ao mesmo tempo, todos eram responsáveis pelo contorno que ali era instaurado. A movimentação dos performers era afetada diretamente pelos estímulos recebidos do público presente e vice-versa. Dentro do “ringue” constituído de luzes, os corpos faziam pulsar um único organismo, que ora se movimentava de forma harmônica ora de forma abrupta, transitando entre a brandura e a violência de acordo com os impulsos auferidos e oferecidos.

A partir do livro Massa e Poder, de Elias Canetti, o título do trabalho, De Repente Fica Tudo Preto de Gente, refere-se, de forma literal, à sujeira dos corpos dos performers que é espalhada em todos os espectadores-participantes, mas também, metaforicamente, ao corpo que é estipulado como sujo e que “mancha” os outros corpos “brancos imaculados”, ao corpo que é posto como abjeto e é renegado numa sociedade que, por exemplo, mesmo depois da não exemplar atrocidade do holocausto que pregava a permanência exclusiva de uma massa branca de gente, excluindo tudo que não fosse de uma etnia eleita como “superior”, mantém-se firme num racismo hoje disfarçado, numa xenofobia atualmente discreta, em que o preconceito é mostrado quando as ascendências de origem afro ou indígena são recusadas, quando há a fantasia de que não há “manchas pretas” em suas composições tão unicamente “brancas”. Nesse sentido, a opção do ambiente escuro alude e enfatiza, ao mesmo tempo que camufla, o comportamento preconceituoso daquele(a) que fica incomodado(a) de aderir e assumir uma cor que não lhe agrada, mas, por outro lado, é na escuridão também que outras(os) se misturam, com irreprimível prazer, aos corpos nus tingidos de preto para aderir toda a beleza existente naquela intensa cor escura.

Vemos, assim, uma potente reflexão crítica que se dá por meio de um discurso diferenciado que é o da arte e, então, sob uma conjuntura de signos, podemos compreender bem o que é denotado/conotado da própria vivência do autor desse trabalho tanto dentro do seu país de origem como fora dele, demonstrando que a miscigenação é sempre controversa quando não envolve unicamente as procedências que nunca foram alvo de rejeição. No próprio Brasil, onde há uma população predominantemente negra inegavelmente com base na cultura indígena, há quem apresente somente as descendências genealógicas europeias e nem procure conhecer as indígenas ou qualquer outra que não tenha o fenótipo/genótipo de pele clara. E contra uma visão eurocêntrica de civilização, ironicamente, Marcelo Evelin acaba por demonstrar “que foi o negro que civilizou o Brasil” [1], pois num território que acolhia índios, franceses, portugueses e, também, negros, como explica o antropólogo Darcy Ribeiro, foram estes últimos, vindos de diversos países africanos e não possuindo uma língua comum, que aprenderam o português e difundiram-no [2].

A performance de Marcelo Evelin ultrapassa o gênero da dança, do teatro ou de qualquer outra expressão com uma nomenclatura referente a uma arte cênica, inclusive ultrapassa a própria ideia de espetáculo cênico, pois convoca um ritual que acontece de forma estrita, em que há a transformação de novas consolidações físicas (através da nova tonalidade que é espalhada) e psíquicas (através das reflexões suscitadas a partir da aderência de um novo tom manifestado sobre todos ou quase todos os corpos presentes) entre todos(as) os(as) participantes, agentes ou observadores do evento. 

A massa final, em que todas(os) estão manchadas(os) de preto, enfatiza as similaridades entre sujeitos de uma mesma sociedade quando uma unidade é criada, mas, ao mesmo tempo, sublinha as diferenças por gerar, necessariamente, uns menos manchados pela cor preta que outros, funcionando, assim, como uma analogia da nossa realidade social marcada por algumas situações conflituosas de negação referente a um determinado grupo de pessoas e por outras harmônicas em que todos os grupos convivem pacificamente.

Por mais bruscas ou até violentas que sejam as movimentações dos performers dirigidas ao público-participante, e por mais inconformadas que fiquem as pessoas manchadas pelos artistas, em De Repente Fica Tudo Preto de Gente há uma realidade artística construída na escuridão, a qual propõe um ritual que gera uma perspicaz denúncia sobre o convívio hostil existente justamente quando as luzes estão todas acesas, quando, ao invés da inofensiva maquiagem preta que se dissemina dentro de um ritual cênico, uma determinada massa de gente é cruelmente manchada de vermelho em horrendas repetições diárias. Nesse sentido, a obra de Marcelo Evelin se faz redondamente indispensável como uma fonte de reflexão acerca da nossa atualidade, tecendo relações com os mais diversos âmbitos sociais, funcionando como uma alegoria de qualquer cultura e, assim sendo, Marcelo Evelin é indiscutivelmente contemporâneo, pois “contemporâneo é alguém que fixa o olhar no seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas o seu escuro” [3].

 

 

NOTAS

[1] RIBEIRO, Darcy. “No meio da luta”. In: RIBEIRO, Darcy. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007, p. 187.

[2] Cf. Ibidem.

[3] AGAMBEN, Giorgio. “O que é contemporâneo?” In: AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2009, p. 22.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales. “O que está à Luz do Nosso Tempo, Discernimos no Escuro”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2014 eRevista Performatus e o autor

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