Consumo Obsessivo ou Regurgitação Necessária dos Arquétipos já Petrificados

 

Lizi Menezes, Panquecas Civilizadas. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Outubro de 2015. Fotografia de Ana Rita Santos

 

Antes da civilização, o ser humano quase não se diferenciava através de seus trajes; antes do pudor, a exterioridade constituída por indumentos consistia na busca pela proteção e pelo enfeite, até que, nas sociedades organizadas, os sexos biológicos passam a ser gradativamente distinguidos e enquadrados numa norma. O instintivo é substituído pelo “exemplar” e, após o cristianismo, isso é ainda mais intensificado no ocidente, onde nem as condutas gestuais podem mais ser espontâneas em sua singela animalidade e, assim, há uma maior assimilação do que condiz, como uma regra rígida, ao comportamento feminino e ao masculino, sob uma forma de repressão da liberdade de manifestação dos instintos mais profundos, mas, ao mesmo tempo, com a tão intransigente diferenciação, o desejo é intensificado. Há uma enorme contradição quando pensamos que a moral cristã dita um preceito tão inflexível que marca cada corpo, mas, através desse princípio, intensifica o desejo através do binarismo.

No dia 14 de outubro de 2015, durante o Primeiro Festival Feminista do Porto, em uma cozinha branca, na Casa do Pinheiro, preenchida em sua totalidade por cores exageradíssimas através de uma enorme projeção de vídeo, Lizi Menezes, com a performance Panquecas Civilizadas, apresenta corpos nus (vestidos de uma cultura que precisa ser vomitada). O vídeo é uma animação feita de colagens de imagens estáticas e nunca em movimento, através da qual vemos figuras religiosas misturadas com modelos corpóreos típicos de uma sociedade heterocentrada, em que a masculinidade é caracterizada pela figura viril de um homem forte e cheio de coragem em suas luvas de boxe vermelhas, enquanto à mulher é atribuída uma condição frágil como uma boneca de louça, ainda sem cabelos, sem indumento, branca como o gesso, estando pronta para atender ao desejo do outro, seja para consumação, seja para nela inserir a composição desejada. O vídeo projetado expõe repetições em série de todos esses corpos, diluídos em elementos naturais como flores, misturados aos vários pedaços de carne, ao imaculado coração de Maria, que é repetido de forma insana etc.

Ao som constante de um batimento cardíaco, por debaixo da confusão de imagens projetadas sobre a cozinha branca, há três performers: a própria artista (que prepara panquecas todo o tempo), um homem a segurar um grande espelho (que reflete a imagem da projeção de vídeo sobre a audiência e, ao mesmo tempo, expõe a própria imagem da plateia sobre a sua superfície) e uma mulher toda pintada de cor branca a servir panquecas, sendo esse o corpo que mais absorve o conteúdo da projeção. Os códigos dos vestuários marcados pelo processo civilizacional são renegados, mas toda nudez ali presente é exposta completamente vestida de cultura, em que a vernaculidade humana está longe de ser exibida. Assim, de forma sagaz, a artista expõe os performers nus, mas não despidos dos padrões culturais; suas exterioridades são projeções de interioridades já contaminadas.

A ação dura em torno de duas a três horas sob uma maquinal comilança que ironiza os encontros sociais moldados em comportamentos que disfarçam, inclusive, a motivação mais instintiva da tal reunião: a fome. Lizi tenta resgatar assim uma noção primitiva que antecede a nossa cultura, numa busca pela espontaneidade, mas, ao mesmo tempo, para provar o quanto a civilização é regida por regras e pela falta de naturalidade, mesmo em uma reunião feita em torno da produção e consumação exagerada daquilo que satisfaz o apetite e que poderia dialogar com instintos mais primitivos, mais animalescos.

Apesar da descomedida refeição que é servida o tempo todo de forma extrapolada, mesmo em completa orexia, a audiência mantém a compostura, sendo essa uma ideia que dialoga diretamente com os corpos nus apresentados, que mesmo em suas condições aparentemente naturais, estão impregnados de toda a artificialidade cultural indiscutivelmente presente e atuante naquele espaço.

Através desse farto banquete proposto pela artista Lizi Menezes, parece que a demasia é justamente para suscitar o contrário, o esvaziamento. Da ingestão em excesso, Lizi aciona o enjoo, o ato de regurgitar, ativando o esvaziamento do que absorvemos de forma descuidada e que (de)forma a nossa interioridade num constructo social que merece ser expelido e não mais socado goela abaixo para se explicitar em uma casca satisfatória ao que a civilização construiu como norma.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

PELISON, Julia. “Consumo Obsessivo ou Regurgitação Necessária dos Arquétipos já Petrificados”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortógrafica de Marcio Honorio de Godoy

© 2016 eRevista Performatus e a autora

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