“Hygiene” como um Ritual: O Limiar entre a Veracidade da Imitação e a Própria Verdade

 

Hygiene do Grupo XIX de Teatro. Foto: João Tuna/TNSJ

 

Aos desavisados, Hygiene – espetáculo do Grupo XIX de Teatro – pode ter repercutido como um alarido ocorrido no centro histórico da cidade do Porto em Portugal, como um possível rebu-organizado, com consentimento do Ano do Brasil em Portugal, sob realização da Funarte, do Ministério das Relações Exteriores e do Governo Federal do Brasil, com todo aval da Câmara do Porto, do Teatro Nacional São João (TNSJ) e do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI) e da própria comunidade onde o evento se desenrolava, na velha freguesia da Vitória, em meio às ruas estreitas de paralelepípedos, às calçadas de pedras, ao conjunto de luminárias antigas que avivavam o tom âmbar, intensificando a monocromática matiz pastel que prevalecia nos adereços de cena, figurinos e demais apetrechos que se fundiam numa paisagem exageradamente conveniente para a paleta da peça. O que aconteceu foi uma baderna arrebatadora, capaz de despertar a catarse já adormecida em muitos adoradores das artes cênicas; tratava-se de um espetáculo vivo, único, não repetível de forma alguma, pois incorporava ativamente a participação do público, da arquitetura local, do acaso, do imprevisto e do risco.

Estávamos todos participando de uma mesma festa de casamento em que os personagens da trama dividiam um espaço que rejeitava, impreterivelmente, a separação entre espetáculo-espectador, entre espaço cênico e espaço da audiência; partilhávamos tudo e compúnhamos o que Artaud pregava no seu teatro da crueldade. Partilhávamos bebidas (cachaça brasileira), ambiente (com atmosfera transoceânica), emoções (de forma alguma encenadas) e falas (pelos atores: eram falas improvisadas segundo um roteiro; pelo público: as falas surgiam incertas, mas, certamente, despontavam a favor de um mesmo positivo reforço para a cena).

A peça – que retrata o final do século XIX para o início do XX no Brasil, reunindo personagens que elucidavam a nossa intensa miscigenação –, quando foi exibida naquela ocasião, pôde transportar a ideia da reunião multiterritorial com extrema clareza. Personagens de imigrantes portugueses, italianos, poloneses, entre outros, interagiam com o público português que, também não era unicamente da mesma nacionalidade. Havia um grupo de italianos no meio do público local, um grupo de franceses, de brasileiros, uma norte-americana solitária, etc. E a comunicação não se deteriorava, ainda que o dialeto falado fosse um “portunhol”, um português de Portugal em sua forma estereotipada e em tom de piada, um português “italianado”, pois o objetivo era tratar justamente da alegoria desses povos que delineiam nossa origem, que, em comunhão, formaram uma língua portuguesa diferente da que é falada em território europeu. O espetáculo provava, in loco, que a língua é um organismo vivo, pois, ali mesmo, no velho centro da cidade do Porto, a comunicação, por vezes, precisava ser transformada para dar lugar a outra linguagem, diferente da estabelecida pela norma vigente, com a finalidade de estabelecer um vocabulário comunicável a todos.

A fusão de personagens com cidadãos comuns, de religiões distintas (catolicismo com umbanda), de realidades sociais e econômicas variadas (rico com pobre, intelectual com fanfarrão) garantiam a “liberação das pressões da vida ordinária” [1], direcionavam o coletivo para aquilo que Victor Turner nomeou por “antiestrutura”, como se todas as nossas diferenças fossem apagadas e dessem lugar a um grupo harmônico; a estrutura-padrão era alterada, onde um ritual de “communitas” [2], espontaneamente, era instaurado.

 

Hygiene do Grupo XIX de Teatro. Foto: João Tuna/TNSJ

 

Hygiene do Grupo XIX de Teatro. Foto: João Tuna/TNSJ

 

Percorremos, em grupo, uma estreita rua. Ali, ao fim da tarde, quando o calor ameaçava ir embora, o samba aquecia o fresco anoitecer portuense. Cruzávamos de forma extremamente intimista a entrada das moradas legítimas dos habitantes daquele local, que estavam curiosos à porta, que gritavam pelo ente desatento ao fundo da residência. Víamos famílias de sangue (e, também, famílias de união) em seus cortiços similares ao que éramos conduzidos para presenciar o desfecho do espetáculo, onde supostamente viviam as personagens que ali vigoravam para todos nós. O samba acalorava, o samba era incorporado com entusiasmo na terra do fado, ritmo tipicamente português, o qual só fez sentido no comovente final do enredo, que não deve ser contado nem mesmo em tom imparcial de linguagem crítica, pois merece ser vivenciado (e não simplesmente contemplado) por muitas plateias ainda.

Contar o fim de uma obra ou descreve-la de forma tão esmiuçada, pode terminar no aniquilamento da surpresa. Contento-me em narrar minhas impressões, porque Hygiene faz jus à necessidade do aqui-agora e do parecer de cada um.

 

Notas

[1] SCHECHNER, Richard. apud. LIGIÉRO, Zeca (Org). Performance e Antropologia de Richard Shechner, pág. 68

[2] Communitas é um termo usado pelo antropólogo Victor Turner para descrever rituais em que um grupo de pessoas passa a se tratar igualmente. Isso pode ocorrer em um ritual liminar ou liminóide. Ex: torcedores em uma partida de futebol.

 

 

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