Contaminar e Ser Contaminado: Grupo EmpreZa e a Performance em Tempos de Pandemia

 

O abandono dos suportes tradicionais da arte no século XX pelos artistas, possibilitou novas maneiras de colocar em prática suas diversas linguagens artísticas – as quais não se encaixavam e se postulavam às limitações da forma –, e o que foi e é compreendido como arte se transformou significativamente. O constante deslocamento da arte fez com que artistas utilizassem novos materiais, se inserissem em novos espaços e buscassem a criação de uma relação afetiva e mais participativa do espectador com a obra de arte.

Dentre as diversas linguagens da arte, a performance tornou-se uma das possibilidades de dar continuidade às vontades artísticas dos artistas, ao mesmo tempo que viabilizou um contato cada vez mais direto, íntimo e participativo do público com a arte. A performance como uma linguagem do campo da arte completamente diferente do que se via até então, é percebida como um evento, evento esse que ocorre em determinado tempo e espaço repleto de potencialidades. É pertencente a um único contexto e momento, àquelas pessoas, àqueles materiais, àqueles diálogos, àqueles contatos e situações. Há a necessidade de vivenciar a experiência diretamente em contato vivo com o outro a partir da presença, seja a presença do corpo, do artista, da matéria, do público. O ato da performance torna-se meio para vivenciar uma nova experiência, espaço-tempo criado a fim de ativar e recuperar relações entre pessoas.

Em meio a uma grave questão de saúde pública, como a ocorrência de uma pandemia, as relações humanas se enfraquecem e a presença é ressignificada. Cria-se uma grande distância entre as pessoas e o vazio social é cotidianamente evidenciado. Se antes o contato entre as pessoas era uma prática comum, hoje ele é extremamente afetado. O encontro entre pessoas continua existindo, mas foi completamente modificado e deslocado em parte para um espaço virtual. A arte e as suas linguagens seguem existindo e coexistindo nesses espaços, e a relação com o público é constantemente reformulada. Principalmente no campo da performance, o estar, a presença, o contato importam e são valorizados para o fazer artístico. Portanto, diante da nova situação mundial, cabe a pergunta: como a performance existe em tempos de pandemia?

Visto o momento de grande vulnerabilidade da pandemia do novo coronavírus, principalmente na área da cultura e produção das artes visuais no Brasil, o Instituto Moreira Salles criou um programa de incentivo à criação artística durante o período de isolamento social. Cerca de cinquenta artistas atuantes em diversas áreas da cultura foram convidados a desenvolver projetos em seus campos de ação, dentre eles o coletivo de artes visuais e ações performáticas Grupo EmpreZa [1]. O corpo-coletivo criou Vitral, uma videoperformance que busca fomentar reflexões acerca do estado cotidiano do afastamento social.

O vitral serve como elemento que protege o espaço arquitetônico contra ações e condições externas, como o vento, a chuva e a luz. Ao mesmo tempo que protege, é capaz de filtrar a luz que recebemos, criar nuances e composições de cores, luzes, sombras e formas, que são refletidas em nós e no espaço. Novas imagens e projeções surgem e nos deparamos imersos em uma realidade paradoxal que ao mesmo tempo nos é familiar e completamente desconhecida. O vitral transforma e filtra as condições externas para que o espaço seja preenchido pelo visível e o invisível. Daí, a fim de especular sobre o material colocado no título da obra do grupo EmpreZa, em tempos de pandemia vivemos como um vitral ou o utilizamos como uma proteção do afetar exterior, a fim de filtrar e criar uma realidade paralela?

Em Vitral [2], o som nos é comum. Trata-se do som cotidiano da vida de pleno isolamento social. O som é desagradável, perturbador e invasivo. Sons que antes não nos incomodariam tanto e passariam despercebidos, tornam-se desconfortáveis e substância de uma condição na qual não gostaríamos de estar e com a qual não pretendíamos lidar. Esses sons são os dos noticiários na televisão, da rua vazia, da água que sai da torneira enquanto lavamos as mãos, da nossa respiração mais ofegante, da máquina de barbear que utilizamos.

Os sons são acompanhados de imagens e atos que fazem parte do nosso cotidiano, ações repetitivas e exaustivas. O ato de lavar as mãos torna-se compulsivo, ao significar a constante e incansável tentativa de nos livrarmos de algo que não podemos enxergar. A limpeza como proteção chega ao exagero, ao serem utilizados diariamente muitos litros de água e rolos de papel higiênico. Os lugares de privilégio são evidenciados.

 

Grupo EmpreZa, frame da videoperformance Vitral, 2020

 

Em certo momento no vídeo, um homem aparece no banheiro tirando a barba com um barbeador enquanto fuma um cigarro. O cuidar de si torna-se o cuidado da própria imagem, e a tentativa de se manter saudável resulta em mera aparência. Logo em seguida, o ato de lavar folhas de uma árvore em um tanque de lavar roupas apresenta-se como um processo desinfetante, uma vontade de “limpar a natureza” para que logo em seguida possamos queimá-la junto ao cigarro. Ao mesmo tempo que pretendemos sobreviver diante de uma pandemia, nos matamos cotidianamente em distintos contextos, seja na falsa sensação de proteção, do cuidado com nós mesmos, ou no cuidado com o outro e com a natureza.

A videoperformance põe em questão uma reflexão diante do nosso cotidiano e de como lidamos com ele inseridos em um contexto de grande vulnerabilidade humana. O ser humano se vê preso e impotente em sua própria vontade de sobrevivência, convivendo simultaneamente com os obstáculos da ansiedade e depressão. O vitral como corpo humano ou como escudo de proteção pode projetar uma nova realidade, mas uma realidade transformada que, infelizmente, não nos preserva e nos desconecta da afetação do mundo exterior.

Serão Performático é um trabalho políptico do Grupo EmpreZa, que consiste em um conjunto de performances que podem ser apresentadas de maneira simultânea ou sequencialmente em um mesmo espaço-tempo, podendo ser parte ou não de um mesmo eixo poético. Colocado dentro do contexto de pandemia como Serão Tele Performático, essa proposta ocorre no âmbito mental, astral e espiritual, com aproximadamente uma hora de duração. O público é convidado a se concentrar de olhos fechados em um local silencioso escolhido por ele, que lhe proporcione um estado quase que meditativo para que, telepaticamente, o local da realização do evento possa ser encontrado.

O conjunto de performances apresentadas no Serão Tele Performático [3] pode ser assistido, imaginado, experienciado e construído de maneira íntima e distinta pelo público. Ao término da ocasião, o público é convidado a desenvolver uma descrição em formato de texto sobre a experiência e enviá-la para o e-mail dos artistas. Os relatos posteriormente são apresentados na exposição virtual Pipa em Casa [4], um projeto de apoio emergencial a artistas realizado pelo Prêmio Pipa.

 

Relatos do Serão Tele Performático apresentado na exposição virtual Pipa em Casa (2020)

 

Percebe-se que diante do contexto caótico de pandemia, a performance segue existindo no ambiente virtual. Os desdobramentos e a falta de definição da linguagem da performance permitem uma maior reflexão a respeito de sua natureza presencial. A performance pode acontecer por qualquer meio, seja por uma transmissão ao vivo, vídeos, fotografias, relatos escritos, entre outros.

Nesse momento, tudo é possível. Dentro de suas casas, os artistas se utilizam das ferramentas disponíveis para contornar os obstáculos e alcançar um público imensurável. Apesar de as performances pensadas a partir de uma interação direta com o público serem inviáveis, a experimentação e o campo aberto da arte contemporânea possibilitam o uso de novas plataformas para o trabalho artístico ocorrer, demonstra a criação de trabalhos cada vez mais experimentais e inovadores que buscam conectar pessoas. O contaminar e ser contaminado pela arte é um estado constante, mesmo em tempos de ausência de convívio social.

 

NOTAS

[1] Grupo EmpreZa Performance art, 2020. Página inicial. Ver em: <https://www.grupoempreza.com/>.

[2] IMS Convida, Vitral. Ver em: <https://ims.com.br/convida/grupo-empreza/>.

[3] Ver os esclarecimentos acerca do Serão Tele Performático em: <https://tinyurl.com/yajz6yll>.

[4] Ver o programa de apoio emergencial aos artistas Pipa em Casa em: <https://tinyurl.com/yc3cpeux>.

 

BIBLIOGRAFIA

BISHOP, Claire. Antagonism and Relational Aesthetics. City University Of New York (CUNY), Academic Works. October, n. 110, fall 2014.

BISHOP, Claire (ed.). Participation: Documents of Contemporary Art Series. London/Cambridge: Whitechapel/MIT Press, 2006.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. (Coleção Todas as Artes.)

COHEN, Renato. Performance como Linguagem: Criação de um Tempo-Espaço de Experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 2013.

FIRMEZA, Yuri. Performance e Tecnologia: O Lugar do Corpo. Dissertação de Mestrado em Poéticas Visuais. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

GOLDBERG, RoseLee. Performance Art: From Futurism to the Present. London: Thames & Hudson, 2001.

MERLIN, Regina. Performance nas Artes Visuais. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

NAPOLITANO, Thatiana A. “Contaminar e Ser Contaminado: Grupo EmpreZa e a Performance em Tempos de Pandemia”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2020 eRevista Performatus e a autora

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