Duas Análises Críticas a Partir da Obra “Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo”

 

Esta publicação única reúne dois textos críticos autônomos sobre a obra Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo, sendo ambos escritos por diferentes autores durante o Ateliê de Crítica em Performance ocorrido no Sesc 24 de Maio na cidade de São Paulo (Brasil), o qual foi ministrado por Tales Frey durante o mês de novembro de 2017.

A ordem estabelecida para a apresentação das escritas está convencionada com a apresentação da que contém o menor número de caracteres para o maior.

 

O Público Performático

Marcos Villas Boas

 

A arte contemporânea, em suas várias manifestações, vem, cada vez mais, ocupando outros espaços além de museus e galerias. A ocupação do espaço público (ruas, estações de trem, praças etc.) e privado (fábricas e terrenos abandonados, residências particulares etc.), vem rompendo espacialmente e conceitualmente com o cubo branco, ampliando, assim, o diálogo com as questões urbanas, sociais, políticas e arquitetônicas. A 14ª Documenta de Kassel (2017) levou esta ampliação espacial a ponto de sediar o evento em duas cidades parcialmente ao mesmo tempo: Atenas e Kassel. Fronteiras geopolíticas são borradas, assim como os limites das linguagens artísticas historicamente construídas, repensando as relações entre artista, obra, contexto e público.

Mas o fato de mudar espacialmente ou geograficamente nem sempre significa romper com o modelo e a concepção do cubo branco, referência para as tradicionais exposições de arte.

É o que parece acontecer com a exposição/instalação Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo (Sesc Consolação, de 06 a 20 de novembro de 2017), uma vez que mesmo ocupando um espaço não usual – um ginásio esportivo – constrói uma mini galeria em que oito artistas ocupam, simultaneamente, espaços hermeticamente isolados, o que impede até mesmo que os artistas possam ver e acompanhar a performance um do outro. Ao público é oferecida a experiência de “tudo ao mesmo tempo agora”.

Ocupar um ginásio, ou outro espaço qualquer, é indiferente, uma vez que a instalação cria um ambiente enclausurado, autônomo e controlado pelos mediadores e toda a estrutura institucional.

 

Fyodor Pavlov-Andreevich, Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo. Instalação realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Marcelo Elidio

 

Numa instalação circular, dividida em oito nichos, cada artista, num período de cinco horas consecutivas, realiza uma proposta performática em que o público é convidado, o tempo todo e incisivamente, pelos mediadores/auxiliares – como vendedores de lojas de departamento –, a participar, seja com a doação de alguns minutos de seu tempo e corpo pedalando para que a estrutura – o carrossel – se mova, seja disponibilizando seu corpo para a experimentação dos artistas em vários níveis de colaboração.

Sem a participação do público, nada ocorre, seja a concepção geral – a ideia do carrossel – sejam as performances particulares.

Busca-se, assim, uma cumplicidade do público – mas não dos artistas entre si – na realização da(s) atividade(s).

A ideia do carrossel, segundo o próprio artista que a concebeu, Fyodor Pavlov-Andreevich, parte da experiência russa na construção de espaços coletivos – Edifício Narkonfim (Moscou/1930) – em que mil pessoas ocupavam um espaço, sendo-lhes negada a individualidade, pois os chuveiros, o dormitório e a cozinha eram espaços coletivos. Essa pretensa socialização das atividades cotidianas demonstrou-se um fracasso, uma vez que as pessoas começaram a criar seus espaços privados, acabando com a utopia coletiva.

A ideia de coletividade está presente na concepção da instalação uma vez que, segundo a ficha técnica, além da concepção de Fyodor, há a curadoria dele dividida com Margarita Osepyan, a concepção do carrossel como estrutura pelo Atelier Marko Brajović – uma coletividade também –, além, é claro, dos artistas participantes que, efetivamente, ocupam o carrossel, sendo que Fyodor está entre eles.

Em que sentido, então, o carrossel é de Fyodor, como indica o título? O genitivo (no caso da língua portuguesa marcado pela preposição “de”) atribui um caráter particular a este carrossel. Não é um carrossel qualquer, mas o do Fyodor. Se entendermos carrossel como um espaço lúdico, como parte de um parque de diversões, seria este carrossel o espaço de experimentação de Fyodor aberto ao público.

Da mesma maneira que os performers precisam do público para que as suas atividades se realizem, Fyodor precisa tanto do público como dos artistas para que seu carrossel funcione, criando uma cadeia produtiva que resulta no evento como um todo.

Em que sentido o carrossel é de Fyodor, uma vez que toda execução está a cargo de terceiros? Essa relação joga com a lógica da troca capitalista em que a produção corporal é apropriada pelo outro e se torna anônima, enquanto o apropriador é nomeado e leva o crédito da autoria e realização.

Essa é uma tendência da arte contemporânea presente em artistas que trabalham com grandes instalações. Parte-se da concepção de um, mas a execução fica a cargo de vários outros que muitas vezes não são identificados no crédito ou ficha técnica da obra. Ainda nessa lógica, algumas performances disponibilizam comandos ou instruções para serem executadas por outro qualquer. Ou seja, a produção/execução muitas vezes está fora das competências do artista.

Tal relação de troca – ou de exploração do outro – permeia toda a proposta do Carrossel e muitos dos trabalhos apresentados.

Nessa apropriação do trabalho alheio, o público compartilha sua intimidade uma vez que, nas ações, como numa vitrine ou num zoológico, o indivíduo, ao aceitar a proposta de participação, fica exposto ao público que o observa. Não há privacidade do participante, em oposição à privacidade dos artistas que se encontram hermeticamente isolados uns dos outros, proibidos pelo idealizador a estabelecer qualquer contato visual com os trabalhos alheios. Quando um performer, por algum motivo, deixa seu nicho, deve sair com os olhos fechados ou vendados. Esse isolamento resulta numa competição entre os performers para que o público participe de sua atividade, competição esta encabeçada pelos mediadores que insistem compulsivamente na captura de público. Reproduz-se, assim, um sistema em que cada um defende seu nicho, numa competitividade sem qualquer possibilidade de cooperação ou ideia de comunidade.

Enquanto os artistas são impedidos de compartilhar esse momento de simultaneidade e estão enclausurados num espaço pretensamente privado, o público tem a sua privacidade exposta e o seu acesso às performances que acontecem simultaneamente.

A proposta de participação do público é, de certa forma, o que une as oito performances e a própria concepção da instalação. Sem público participativo, nada ocorre.

Sendo assim, que tipo de compromissos e acordos estão sendo estabelecidos ali entre artista, obra e público?

O primeiro acordo vem na forma de um documento que é assinado pelo público, assumindo o compromisso de permanecer, no mínimo, 1h30 no espaço e optando ou não por pedalar para que a instalação funcione. Há certa pressão para que no mínimo três pessoas se disponham a essa tarefa, quase como uma ameaça de que não aconteça a performance por falta de voluntários. Por que a insistência em se permanecer 1h30? Seria uma jornada de trabalho com horário de início e término? Seria o tempo necessário para acessar as oito performances, onze minutos para cada trabalho? Como garantir que o público participará de todas as propostas? E se o público quiser ficar só num nicho durante 1h30? Que tipo de controle é esse, proposto por acordos contratuais?

 

Ilya Pusenkoff, Capela de Check-in (como parte introdutória do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Instalação realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Marcelo Elidio

 

O segundo contrato é estabelecido pela Capela de Check-in, assinada pelo artista russo radicado em Colônia na Alemanha, Ilya Pusenkoff, sendo uma pré-imersão em que o público é convidado a deixar as questões cotidianas para adentrar num novo espaço/tempo. Com sugestões terapêuticas (relaxamento, respiração etc.), é solicitada ao público uma doação de seu tempo para a imersão em algo que foge à dinâmica do cotidiano. Ou seja, o que experimentará está em outro lugar/tempo.

Esse caráter extra temporal e extra espacial é reforçado pelas propostas terapêuticas de algumas performances apresentadas, numa tradição que retoma Lygia Clark e Marina Abramović, pensando a performance como cura, como sensibilização. (De qual mal padecemos para que a arte surja como cura? Seria uma tentativa de justificar a função da arte? Charlatanismo?).

Prepara-se, assim, o público para novas experiências, o que parece não ocorrer, pois a lógica do tempo otimizado, do trabalho apropriado pelo outro e do consumo desenfreado mantém-se ali – concentrado – durante todo o período.

Passando por esse portal, adentra-se o espaço da instalação: o Carrossel. O público é recepcionado por trabalhadores/instrutores/mediadores/facilitadores/educadores que o orienta e o convida, insistentemente, à participação. Como legendas ou bulas, o discurso dos mediadores apresenta a proposta de cada artista e se coloca à disposição para eventuais explicações. Por questões linguísticas ou pelo fato de os artistas estarem ocupados em suas performances, não são eles que recepcionam, interagem, conversam com o público. Muitas vezes o artista nem tem contato com o público, não há nenhum tipo de vínculo pré ou pós performance. Há um distanciamento no acordo entre artista e público.

Podemos perceber alguns dispositivos utilizados em alguns trabalhos, se pensarmos em possíveis acordos entre público e artistas.

 

Guta Galli, Sobre Lágrimas e Melancias (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Ilya Pusenkoff

 

Na performance Sobre Lágrimas e Melancias, da artista brasileira Guta Galli, residente nos Estados Unidos, o público torna-se refém da artista uma vez que é convidado a sentar-se numa cadeira, ter as mãos amarradas às costas e ser alimentado pela perfomer com pedaços de melancia. Numa relação maternal, a performer, com os seios à mostra, sem falar nada, chorando após descascar cebolas, apenas com o olhar aprova ou repreende a aceitação ou recusa do alimento, propondo um questionamento sobre o limite entre cuidado e violência. Refém da artista, cabe ao público participante aceitar esse poder, uma vez que aceitou a situação por livre e espontânea vontade. Ao público que observa, cabe o riso ou o nojo, uma vez que ninguém interfere ou tenta libertar os participantes, pois aqueles que assistem também aceitaram a proposta. Há nessa cumplicidade um caráter sádico por parte da artista, que exige uma posição masoquista do público.

A polaridade entre cuidado e cerceamento tem sua materialização na melancia. Com uma casca dura, é exigida certa violência para penetrá-la. Há o uso de uma faca em tal tarefa, a mesma faca que funcionará como instrumento para servir ao público/refém. Trata-se da mesma faca que descasca cebolas e provoca as lágrimas da mãe protetora. Algoz e vítima, a performer usa a mesma faca que a fere para alimentar sua prole.

Passada a dureza da casca da melancia, chega-se à polpa suculenta, doce, vermelha, sedutora. A ambiguidade entre dureza e docilidade da melancia modela as relações estabelecidas entre a performer/mãe e o público/filho.

Em relação à ocupação do espaço – aqui no caso coberto com muitas melancias –, ao resultado visual e à realização, essa performance mostrou-se coerente e consistente em sua proposta e execução, uma vez que as relações de poder estão bem explícitas – há quem manda e quem obedece – e não há como rompê-las.

Os materiais gastronômicos (cebola, faca, melancia, babador, cadeirão) ratificam o ambiente da casa/cozinha como o lugar das relações de conflito entre mãe e filho.

 

Evamaria Schaller, Instituição de Segurança (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Ilya Pusenkoff

 

Anguezomo Mba Bikoro, Memória da Casa dos Budas Ditosos (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Ilya Pusenkoff

 

Outra performer, Evamaria Schaller, austríaca residente também em Colônia, em sua performance Instituição de Segurança, igualmente convida o público a se disponibilizar para que ela faça alguns experimentos como se fosse uma consulta médica. Num ambiente hospitalar decadente, após vestir um avental, o público deita numa maca e a performer passa a medi-lo, pesá-lo e massageá-lo, usando o próprio corpo numa intimidade física, como numa terapia para algum mal. Nesse acordo, o público também fica refém, mas sem a perversão da performance de Galli, uma vez que o cuidado em excesso não transborda em violência.

Na mesma linha de performance terapêutica, podemos colocar Memória da Casa dos Budas Ditosos, de Anguezomo Mba Bikoro, nascida no Gabão e residente em Berlim. Resgatando sua origem africana e retomando práticas ancestrais, propõe uma consulta em que lava dinheiro com ouro e quase que mediunicamente fala sobre a vida do paciente, sobre seu passado e seus sonhos. Numa espécie de troca econômica, estabelece-se uma relação mediada pela narrativa de cada um e o poder de revelação da performer. Quase como uma quiromante, ela verbalmente cria um vínculo, promovendo uma cura, fazendo com que os clientes saiam modificados. Muitos saem chorando ou profundamente tocados e emocionados. O título vem de uma pesquisa da obra do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro.

Essas duas performances, além da instalação Capela de Check-in, desenvolvem uma proposta de cura ou transe. Em Shaller, há certa ironia ao se apropriar dos signos da consulta médica: o uso da prancheta com as medidas dos participantes, o toque e o contato físico, o uso de avental tanto por parte da performer quanto do mediador, a utilização do piso de azulejo danificado. Cria-se assim um cenário pretensamente realista, assumindo um charlatanismo cênico para criar outros tipos de análises e relações de poder.

Já em Bikoro, o ritual é encenado como uma consulta real, sem qualquer tipo de crítica ou apropriação das práticas mediúnicas, tendo o conceito de ancestralidade associado à sua origem africana como um selo de qualidade e validade da cura proposta. É como se o fato de ser africana a autorizasse e a tornasse competente, atribuindo-lhe um poder que vem de sua ancestralidade, numa visão eurocêntrica sobre os bons selvagens puros e mágicos. É a/o única/o artista negra/o do Carrossel.

 

Jamie Lewis Hadley, Manobra: O Vazio (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Ilya Pusenkoff

 

Clarissa Sacchelli, As Coisas Como São (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Ilya Pusenkoff

 

Outra forma de cumplicidade entre público e performer organiza Manobra: O Vazio, do jovem artista britânico Jamie Lewis Hadley, a partir da fotoperformance Le Saut dans le Vide (1960), de Yves Klein. Para que sua performance aconteça é necessário montar e empilhar caixas de papelão. O artista, sua ajudante e o público têm essa função. Nesse trabalho, conversas são travadas entre os participantes, mas o artista não participa, pois está ajeitando e finalizando a pilha de caixas. “Para que tudo isso?”, perguntam-se os participantes. Cria-se, assim, uma grande expectativa para o final espetacular da performance. Completada a pilha de caixas, ajeitadas para garantir a segurança do performer e após um alongamento e aquecimento, o artista – praticante de luta greco-romana – sobe numa estrutura montada ao centro do carrossel e, com um salto mortal, joga-se sobre as caixas que amortizam sua queda. Após isso, desmontam-se as pilhas e recomeça-se novamente a montagem para um novo salto futuro. Aqui, assim como pedalar para que o carrossel gire, a troca se dá entre o trabalho físico do público e o risco do artista ao saltar sobre as caixas. Você paga com seu trabalho e leva a experiência performática, numa reprodução das relações econômicas capitalistas. Relações estas discutidas e subvertidas na performance de Bikoro. Com Hadley, as relações parecem harmoniosas, uma vez que o público aceita esse tipo de acordo e aguarda ansiosamente o grande final, como recompensa de sua participação.

O mesmo dispositivo participativo aparece no trabalho da brasileira Clarissa Sacchelli, intitulado As Coisas Como São. Num espaço todo branco, a artista propõe que o público a ajude a desaparecer, mimetizando-a à parede com fitas adesivas brancas. Desaparecer é seu objetivo e para isso utiliza-se do trabalho do público, mas sem oferecer-lhe um grande final, como no caso de Hadley. Parte-se de uma ação colaborativa que resulta às vezes numa certa violência contra a artista, embora ela oriente o participante a tornar mais confortável sua permanência ali. Como eram poucas pessoas, em função até do espaço destinado a ela (idêntico ao destinado aos outros artistas), não houve um estágio de sadismo por parte do público. Em outro contexto, com outro público – como já foi presenciado –, passa-se da ajuda à fase de desafiar e de testar até quando ela aguenta e, em alguns casos, à percepção por parte do público do sadismo e a tentativa de auxiliá-la. Nesse caso, em oposição a Galli, é o artista que fica refém do público, embora haja uma relação mais horizontal em que o diálogo se faz presente.

 

Pashias, Côncavo (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Ilya Pusenkoff

 

A mesma parceria entre público e artista está presente na performance Côncavo, do artista grego Pashias. Partindo do mito de Narciso, o performer posiciona-se de costas para um espelho e de frente para um receptáculo circular com água e colheres. O artista obriga-se a olhar para si mesmo, seja pelo espelho, pela água ou pelas colheres com as quais o público oferece-lhe água. Tentando ajudar, o público torna-se algoz do artista, assim como em Sacchelli, mas sem nenhum tipo de contato verbal.

Numa época de selfies, em que todos estão obcecados pela própria imagem, o artista, com a ajuda do público, alimenta-se de si mesmo e, ao inverso de Galli, o artista é servido até a exaustão, com uma overdose de sua imagem. Ele é único que se retira do espaço performativo, creio que para aliviar-se da dose excessiva de água que acaba ingerindo.

 

Fyodor Pavlov-Andreevich, Prove-me, Eu Sou Você (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Marcelo Elidio

 

Rafael Menôva, É Vento (como parte do Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo). Performance realizada na cidade de São Paulo, Brasil. Novembro de 2017. Fotografia de Ilya Pusenkoff

 

Ficar refém do público ao disponibilizar seu corpo é o que faz o artista e idealizador do Carrossel Performático Fyodor Pavlov-Andreevich, russo residente no Brasil, com a performance Prove-me, Eu Sou Você. Nu e deitado em uma bancada, o performer está conectado a um sistema de sensores que disparam sons – trilha desenvolvida por Arto Lindsay, compositor norte-americano radicado no Brasil – quando o público toca seu corpo. Após uma explicação sobre como funciona a ação e qual o objetivo dela, o público é convidado a lavar as mãos e a tocar em diferentes partes do corpo do artista que está ali disponível e objetificável. A impassibilidade do artista permite vários tipos de relação por parte do público, inclusive a sexual. Aquele corpo branco, masculino, belo e disponível desperta ações que vão de cuidado no toque até certas perversões. Isso porque um corpo nunca é só um corpo. Um corpo é uma miríade de significados. E se fosse um corpo feminino? Se fosse um corpo negro? Se fosse um corpo trans? Um corpo gordo? Que novas relações poderiam ser estabelecidas? Um corpo neutro é uma impossibilidade semiótica.

Com a performance É Vento, o caráter sexual do corpo é o mote do artista brasileiro Rafael Menôva. Assumindo o corpo como objeto de sedução e mercadoria de consumo, o artista, usando uma sunga preta e de olhos vendados, convida o público a brincar numa mini piscina de bolinhas, destas de festa infantil, ao som de músicas festivas, criando um clima clubber e de balada. Quando o público entra na piscina, o performer também entra, propondo um jogo corporal e um contato físico que ou intimida o público ou desperta o desejo. Após alguns minutos, um sinal é tocado, finalizando a brincadeira e convidando o público a se retirar para que outra sessão possa ser iniciada. Diferentemente de Andreevich, aqui o corpo é assumidamente sexualizado e se apresenta pronto para o consumo. Mas as questões levantadas sobre a tipologia de corpos na performance Prove-me, Eu Sou Você não cabem aqui, pois o corpo construído por Rafael Menôva é justamente o corpo fetichizado da pornografia, da sexualidade.

As oito performances parecem apontar para a necessidade de o público participar para que haja uma sensibilização. Não há nenhum momento contemplativo, mas uma busca frenética para consumir aquelas ações, pois não se pode perder nenhuma. É como se somente o agir possibilitasse a sensibilização. Dever tocar e experimentar aponta para um corpo consumidor de experiências sensoriais e convidado a correr riscos.

Se entendermos o conceito de performance fora do âmbito artístico, seja no uso na área empresarial ou esportiva, como sinônimo de “desempenho”, podemos pensar: performance de quem? Provavelmente do público que é o tempo todo convocado a desempenhar certas funções e a tentar dar conta, como numa gincana, de passar por todos os nichos. Teríamos, assim, uma ação performática do público.

Ao público não é dada a oportunidade da contemplação, muito pelo contrário, ele é convocado/convidado sempre a participar como se só dessa maneira pudesse vivenciar, experimentar, perceber e entender as propostas ali apresentadas. É como se só pela ação, aqui no sentido de competência e desempenho, fossemos capazes de construir conhecimento.

Os atuais estudos das ciências cognitivas e da filosofia da mente vêm discutindo as falsas dicotomias entre percepção, ação e cognição, uma vez que entendem que vivenciar experiências, seja pela ação, seja pela contemplação, são variações de um mesmo processo cognitivo já que “perceber já é um modo de agir. A percepção não é algo que acontece para nós ou em nós, mas é algo que fazemos […].” (Greiner, 2014).

Observar, contemplar e perceber as performances também seriam maneiras possíveis de acioná-las, acessá-las e de participar, como foi o caso deste depoente.

Assim, observador ou agente: somos todos performers.

 

BIBLIOGRAFIA

GREINER, Christine. “A Performance e o Risco da Inoperância do Comum”. In: A Cozinha Performática. São Paulo: Terra Editora, 2014.

 

 

A Performance como Experiência: A Relação entre Público e Artistas no Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo

Julia P. S. D’Arienzo

 

Fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo. (HEIDEGGER, 1987, p. 143.)

 

A promessa de Fyodor Pavlov-Andreevich e Margarita Osepyan é de que o Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça Para Baixo permaneça na mente do visitante por vinte e cinco anos. É só fazer as contas: o carrossel rodou por doze dias, cinco horas em cada dia, comportando performances de oito artistas. Nas palavras do artista e da curadora encontramos, portanto, um compromisso com um dos componentes fundamentais de uma experiência: a sua capacidade de transformação.

Numa mesma estrutura circular de madeira, diferentes ações se desenrolam. Separados por paredes, oito corpos exploram relações espaço-temporais com o corpo-coletivo. Quatro destes corpos são brasileiros – incluindo o próprio Fyodor, que aqui se naturalizou – entre os outros quatro temos um grego, um inglês, uma gabonesa e uma alemã. A estrutura segue girando e quem permanece do lado de fora não acompanha apenas uma ação, não existe espaço para contemplação a não ser que a audiência se disponha a caminhar em círculos. Dessa forma, observar o carrossel é como zapear canais de televisão.

Para fazer parte da experiência, o visitante deve passar por alguns processos formais, começando pela entrada, onde deverá assinar um termo em que concorda não fotografar nos primeiros trinta minutos, permanecer na sala durante pelo menos uma hora e meia e, em algum momento, deverá pedalar em bicicletas ergométricas. Assinado o termo, a entrada é liberada e nos vemos diante da Capela de Check-in, nosso primeiro contato com os artistas, ainda que indireto.

O objetivo da Capela, idealizada pelo único artista não presente no Carrossel, Ilya Pusenkoff, é preparar o corpo e a mente do visitante para presenciar as performances. São entregues fones de ouvido e nos sentamos diante de oito projeções com cada um dos artistas. Eles dirigem algumas frases ao público. Em seguida, os visitantes são instruídos a entrar numa espécie de estado meditativo, através de respiração e relaxamento.

A ideia é que todos estejam presentes, atingíveis e sujeitáveis. Algo como “Agora você está pronto para participar de uma performance” é comunicado no final dessa etapa: uma afirmação no mínimo perigosa. A Capela de Check-in subentende uma necessidade prévia de preparação para a experiência, afinal somente o sujeito da experiência está aberto à sua própria transformação. (BONDÍA, p. 26)

O carrossel estava localizado no centro do ginásio esportivo do Sesc Consolação (São Paulo, Brasil), os visitantes deixam os pertences na arquibancada e se dirigem para a estrutura até então sem movimento. Um grupo de pessoas logo se posiciona nas bicicletas, e a estrutura começa a rodar, de forma que, quem pedala, fica confortavelmente distante do que se passa em cada uma das repartições, e assiste às ações passarem diante de si como passante que observa diferentes vitrines ao caminhar pela rua.

Surgem as figuras dos mediadores, que informam que cada pessoa tem um tempo limitado de minutos para pedalar. Percebo que existe uma certa pressão para seguir em frente e não se concentrar em apenas uma ação. As expectativas que a Capela de Check-in havia criado não são cumpridas e acabamos perdendo o estado de relaxamento para dar lugar a uma crescente ansiedade.

Numa lógica de consumo compulsivo, procuramos fazer parte de todas as ações, ao mesmo tempo. Ainda que não seja proibido escolhermos nos concentrar em apenas uma performance durante toda uma hora, a presença dos mediadores e seus convites insistentes para que entremos no carrossel reforça essa lógica.

Além de incentivar a participação do público nas ações, os mediadores buscam conversar sobre a obra, não chegando, contudo, a instigar o público ou aprofundar o debate, apenas resumindo, dessa forma, a ideia geral da ação e contando um pouco sobre cada artista. Além disso, alguns artistas não falam português, então também se inclui a função de reduzir o problema da barreira linguística.

A relação de dependência estabelecida entre artista e público está presente em todas as performances do Carrossel. Em Côncavo, o artista grego Pashias está obcecado pela própria imagem, por isso não vê o público, mas dele depende inteiramente sob a ameaça de a performance não existir ou ser interrompida na ausência dessa participação.

As roupas amarelas e vivas de Pashias contrastam com o ambiente escuro e frio ao seu redor. O artista está imóvel, a observar o próprio reflexo diante de si em uma espécie de recipiente no chão. Às suas costas, temos um espelho côncavo. Oferecendo uma colher de metal, o mediador convida os participantes a ajudar o artista a consumir a própria imagem como for mais conveniente, o que parece dispor espaço para soluções criativas que vão além daquelas já disponíveis.

Existem três superfícies na sala que podemos direcionar o artista: o espelho, o reflexo da água e o reflexo da colher. E, ainda assim, existe uma quarta possibilidade mais literal, uma vez que podemos usar a colher de metal para oferecer a água de seu reflexo para ser consumida. Esta última alternativa foi tentada por um outro participante, como pude observar mais tarde – Pashias bebia da colher obedientemente sem retirar os olhos da própria imagem.

Percebo que o artista começa a se agachar lentamente, aproximando seu rosto do reflexo da água. Pergunto-me se, como Narciso, ele será tomado por uma alucinação e acabará se afogando na água. Essa possibilidade me desperta a curiosidade de saber o que aconteceria se eu desobedecesse a instrução do mediador. Assim, bato com a colher na água do recipiente, dissolvendo a retorcida imagem de Pashias, que dá um pulo para trás instantaneamente e fecha os olhos. O artista está num lugar de submissão, mas não percebe sua condição por estar voltado apenas para si mesmo.

Já no caso de Manobra: O Vazio, a relação de dependência se torna mais frágil, e a performance não parece depender inteiramente da ação do público. James Lewis Hadley se propõe a manipular o espaço vazio através de um salto espetacular, no sentido mais literal da palavra. A mediadora, descontraída, está sentada no chão, dobrando caixas de papelão e entregando para o artista, que agilmente monta uma fileira com elas no fundo da sala. Ela explica que o artista precisa de ajuda para montar uma torre com todas as caixas de papelão, e em seguida subirá no topo do carrossel para saltar em cima da torre de caixas vazias.

Mesmo consciente que o trabalho estava indo muito bem sem minha ajuda, já que Hadley estava dobrando e montando as caixas com a ajuda da mediadora quando chego, disponho-me a dobrar algumas caixas e encaixar nas fileiras que James organizava, perguntando-me por que eu estava realizando um trabalho tão enfadonho que tinha como objetivo final uma ação que muito possivelmente machucaria fisicamente outra pessoa. Por fim, rapidamente, canso de dobrar caixas e deixo James para participar da próxima performance.

Mais tarde, quando percebo que Hadley está fazendo os ajustes finais em sua torre de caixas, caminho lentamente ao lado do carrossel para acompanhar sua ação. Não sou a única, foi criada muita expectativa para o salto final. O artista havia decidido passar uma fita adesiva em volta das caixas, pois nos primeiros saltos, segundo a mediadora, as caixas se espalharam por todo espaço sem oferecer nenhuma espécie de amortecimento.

Hadley começa a se aquecer e a se alongar, concentra-se por algum tempo, e, em seguida, sobe por uma escada lateral até o topo do carrossel e dá um pulo mortal, caindo sentado no monte de caixas. O amortecedor funciona com sucesso. Findo o espetáculo, Hadley levanta satisfeito e, sem a necessidade de tirar alguns minutos para se recuperar do salto, já começa a desdobrar as caixas para começar tudo novamente.

Manobra: O Vazio acontece em turnos, se repete sempre em busca de um mesmo resultado, diferente de As Coisas Como São, de Clarissa Sacchelli, que mantém uma continuidade até o fim do dia. Manobra: O Vazio não dispõe de espaço para que os participantes possam fugir do roteiro ou para que se alcance uma maneira diferente de atingir o objetivo final. Depois de descoberto o amortecedor perfeito para o salto do artista, não existe abertura para inconstância ou para uma situação inusitada.

Em As Coisas Como São, Clarissa Sacchelli deseja sumir no espaço. Para isso temos fitas adesivas brancas espalhadas pela sala também branca e, no canto mais distante da entrada, temos Clarissa de pé, encolhida, cercada pelos pedaços de fita já dispostos por visitantes anteriores. Passo algum tempo colando pedaços de fita em volta da artista, não trocamos nenhuma palavra, apesar de saber que ela agia naturalmente e conversava com os outros visitantes.

Tudo é feito com muito cuidado, nenhum visitante se exalta ou tenta dificultar a situação de Clarissa, que passivamente se mantém de pé em uma relação de submissão e de dependência com o público. As Coisas Como São possibilita uma resposta agressiva, em que apagar a artista sugere uma ação em que voltamo-nos contra a performer, dominando e silenciando a artista, ainda que tal resposta não tenha sido verificada na minha experiência pessoal (talvez a Capela de Check-in tenha cumprido parte de sua função nesse sentido, ao menos ninguém se exaltou e feriu os artistas).

Contudo, a performance também pode sugerir uma ação coletiva em que se propõe prezar pelo conforto da artista naquela situação, criando, com as fitas adesivas, uma cadeira para que ela se sente, por exemplo. Essa vulnerabilidade do corpo do artista diante do público também está presente, de maneiras diferentes, em É Vento e Prove-me, Eu Sou Você, como veremos adiante.

Completamente nu, Fyodor Pavlov-Andreevich está deitado numa mesa no centro de sua sala. O mediador pede para que lavemos as mãos numa pia simples e pequena, com sabão em pedra. Explica que Fyodor está ligado a uma rede de energia e seu corpo funciona como uma espécie de instrumento musical. Prove-me, Eu Sou Você foi feito em parceria com o compositor Arto Lindsay, e, ao tocarmos no corpo do artista, dependendo do local e intensidade, diferentes efeitos sonoros são reproduzidos. Em outros lugares pelos quais a performance passou, diferentes músicos foram convidados para o projeto.

Muitas mãos tocam Fyodor e não consigo identificar qual som equivale ao meu toque. Sua expressão é neutra na medida do possível; quando uma visitante tenta fazer cócegas em seus pés, seu rosto se contrai, expressando desconforto, mas seu corpo permanece imóvel.

O corpo vulnerável e nu está ali disponível para qualquer ação sobre ele, e isso não é nenhuma novidade para a poética da performance. Podemos mencionar casos parecidos e marcantes como a performance Rhythm 0, de Marina Abramović, realizada no Studio Morra em Nápoles na Itália em 1974, ou Cut Piece, de Yoko Ono, apresentada pela primeira vez em 1964 na cidade de Tóquio. O que os brasileiros muito provavelmente terão como lembrança mais recente será a remontagem de La Bête, de Wagner Schwartz, que abriu o 35º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo e dialogou com os Bichos de Lygia Clark.

No caso de Fyodor, temos um corpo imóvel, firme e passivo. Ele é vulnerável, dependente das intenções e intensidades. Seu corpo nu é branco, masculino e segue padrões de beleza, atraindo um grande número de curiosos que objetificam esse corpo, fazendo com que perca seu caráter neutro para se tornar sexual. Diferente do corpo de Rafael Mênova, que, reconhecido como sexual, acaba afastando o público.

Era possível ouvir a música que vinha de É Vento em todo ginásio do Sesc, as músicas pop invadiam e interferiam nas outras performances. Sua sala era tomada por uma piscina de bolinhas, dessas que são comuns em festas infantis. Dentro da piscina, havia uma boia gigante em forma de unicórnio e Rafael Mênova, apenas de sunga, com os olhos vendados, tateando pelas paredes e pelas bolinhas como se procurasse por alguém. Observo o mediador fazer o convite para o público: “Você quer participar de uma festa na piscina?”

O artista admite seu corpo como objeto sexual, mas não chega a oferecê-lo para o toque. Ele é um homem muito bonito, segundo os padrões de beleza masculina, forte e alto. A ideia parece ser uma brincadeira de “pega-pega” com os participantes. Percebo que Mênova evita, na medida do possível, tocar nos visitantes ou deixar-se ser tocado. Existe um conflito entre sexualização e infantilização ali, que coloca o corpo do artista como intimidador, mesmo que vulnerável. Isso não impede que o público decline do convite do mediador, mas torna esse público mais cauteloso.

A mediadora me pergunta se quero melancia e eu aceito. A sala de Sobre Lágrimas e Melancias tinha o fundo azul, como o céu do dia, e o chão coberto por melancias de diferentes tamanhos. No fundo, a artista Guta Galli estava sentada em uma cadeira de pernas altas com o suporte para refeição, parecida com cadeiras para alimentação de bebês, vestindo calças largas e nada mais na parte de cima. À sua frente, duas cadeiras comuns. Sento ao lado de uma outra mulher. Guta desce, amarra nossos braços de modo que fiquemos imobilizadas nas cadeiras e prende em nossos pescoços babadores infantis. Em seguida ela nos deixa para sentar na cadeira mais alta, de forma que a perdemos de vista.

Ouço o som de faca batendo numa tábua, mas não consigo ver a artista. Alguns minutos se passam e Guta desce para oferecer melancia. Ela se senta ao meu lado, me encarando com olhar alucinado, a maquiagem borrada por lágrimas. Segura uma faca, e me pergunto se ela me oferecerá pedaços de melancia direto dessa faca. Assusto-me com a possibilidade de me machucar, mas fico logo aliviada ao perceber que ela usa a faca para tirar uma lasca da casca da melancia que servirá como suporte para levar os pedaços até minha boca.

Por que me submeti a tal situação estranha, constrangedora e assustadora? Os pedaços da fruta são grandes demais, sujam meu rosto e o babador. Toda vez que a mão da artista se aproxima do meu rosto sinto o cheiro da cebola que fora cortada alguns minutos antes e provocaram suas lágrimas. Percebo que, se não fizer algum tipo de sinal, ela não irá parar de me oferecer melancia. Recuso o último pedaço e ela sorri, e se dirige para a mulher ao meu lado.

A participante ao meu lado reclama, em tom de brincadeira, que como demais: acho graça. Talvez ela estivesse apenas com pressa, mas se comportava como a irmã ciumenta, que também queria se sentir cuidada por aquela mãe arquetípica, que tinha uma estranha maneira de demonstrar afeto, tocando nos limites do abuso e violência.

As discussões sobre as relações de afeto e violência também estão presentes em Instituição de Segurança, mas são tratadas de um outro modo. A artista Evamaria Schaller recria um ambiente hospitalar, onde presta consultas aos visitantes. O tempo todo ela se mantém no papel de médica, e o mediador, vestido de enfermeiro, para questão de ordem inscreve os pacientes em uma folha de papel.

A médica (que se comunica com os pacientes apenas por gestos), faz medições aparentemente sem nenhum propósito, como, por exemplo, a distância de um braço para o outro. Pede para que o participante copie alguns movimentos seus, como bater no peito com força com as mãos, como se estivesse testando a capacidade do corpo de realizar movimentos expressivos. Em determinado momento, pede para que o visitante deite na maca e ela se posiciona em cima dele, com rosto muito próximo.

Não participo dessa performance, apenas observo. Schaller explora os limites da intimidade entre estranhos, provocando diferentes reações nas pessoas. Quais são os parâmetros e critérios que tem como objetivo avaliar seres humanos? Nós, como brasileiros, colonizados, já não fomos todos avaliados e categorizados de alguma forma? O que aconteceria se Schaller realizasse essa ação fora do Sesc Consolação? Num centro cultural de um bairro periférico, por exemplo?

Instituição de Segurança sugere um debate sobre o positivismo e o cientificismo. Por meio de uma consulta médica irracional, seguindo métodos absurdos de avaliação de seus pacientes, questiona a ideia de ciência como o único meio de construção do conhecimento verdadeiro.

Enquanto isso, em Memória da Casa dos Budas Ditosos, temos uma situação oposta. Em visita a uma quiromante, o público não se preocupa com os métodos de avaliação e acaba legitimando a consulta, iludido pela aura construída pela artista. Intitulada dessa forma, fazendo uma referência à obra do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, a performance de Anguezomo Mba Bikoro se realiza num ambiente precário, com paredes brancas, almofadas e uma panela aquecida no chão. No teto, varais com notas de dinheiro. Ao terminar sua consulta com uma participante, diz palavras que parecem significativas e as duas se abraçam. Ela observa a mulher emocionada se retirar e, logo em seguida, mantendo uma expressão calma no rosto, faz um convite para que eu me aproxime.

Segura as minhas mãos por algum tempo, encarando-me sem desviar o olhar. Por fim, pergunta se eu gostaria que ela lavasse meu dinheiro. Respondo que sim, mas logo caio em mim e explico que não tenho nenhum dinheiro comigo. Ela sorri e pede para que eu me sente na almofada do chão. Sentada na minha frente, retira de um bolo de dinheiro uma nota de dois reais e me oferece, sugerindo, com um gesto, que eu use a panela para lavar o dinheiro. Mergulho a nota na água quente misturada com pó de ouro. Bikoro retira a nota da água quente e a coloca entre a palma de sua mão e a minha. Volta a encarar-me por algum tempo, inexpressiva.

Não saberia dizer por quanto tempo nos encaramos daquela forma, mas, por fim, declara: “Quando escolher um caminho, não mude de direção.” Ela me abraça e retribuo com o mesmo carinho. Despedimo-nos e sigo adiante.

A situação é mística, ainda que o espaço físico seja limpo de elementos místicos. Os “clientes” saem satisfeitos com as palavras genéricas que a artista lhes transmite. Sentimos que somos próximos a Bikoro, e sua ação tem poder transformador. Até que ponto levo a sério sua consulta? Seu objetivo é iludir os participantes? Somos expostos às nossas necessidades como seres humanos, pelo afeto e contato, assim como no trabalho de Evamaria Schaller. Em Memória da Casa dos Budas Ditosos, a artista nos recebe, nos ampara, olha em nossos olhos, e nos doa dinheiro para que possamos lavá-lo – ou nos livrarmos dele.

Segundo Fyodor, é estabelecido que os artistas não podem entrar em contato uns com os outros no Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo. Inclusive, eles se comprometem em manter os olhos fechados ou vendados para não se contaminarem com os outros trabalhos. Esse acordo parece não interferir no resultado ou objetivo das ações, mas, por outro lado, é interessante observar que é possível relacionar as performances entre si quando algumas das temáticas, formas ou poéticas se tocam despropositadamente, como apresentei acima.

No geral, o Carrossel apresenta uma estrutura inusitada para se apresentar performance. O que une as performances é a participação do público, e é através dela que se constroem relações e significados. O que se passa conosco? O que nos toca? Como é possível criar uma experiência, ou seja, criar algo que nos possibilite a transformação? Os rumos que as performances tomam podem ser diferentes das propostas originais, mas isso não é um problema, e é a partir dessa ideia que o Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo se mostrou um dispositivo para experimentação da construção coletiva de memórias, rico em suas possibilidades e potenciais.

 

BIBLIOGRAFIA

HEIDEGGER, Martin. La Esencia del Habla: De Camino al Había. Barcelona: Edicionaes del Serbal, 1987.

BONDIÁ, Jorge Larrosa. Notas sobre a Experiência e o Saber da Experiência. Campinas, SP: Revista Brasileira de Educação, 2002.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

FREY, Tales (Org.). “Duas Análises Críticas a Partir da Obra ‘Carrossel Performático de Fyodor – De Cabeça para Baixo’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

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