A Travessia do Grupo Tecelagem pelo Palco do Teatro Amazonas

 

Crítica realizada para a conclusão da disciplina Análise do Espetáculo II, no Curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas. Orientado e revisado por Vanja Poty.

 

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Caminhar de casa para o grandioso templo sagrado do teatro amazonense [1] geralmente me provoca duas sensações distintas: quando vou a trabalho me sinto excitada e com a cabeça a mil; quando vou de espectadora ou aspirante a crítica, vou carregada de expectativas – um misto de ansiedade, curiosidade e boa vontade.

No dia 10 de outubro de 2014, não foi diferente. Saí de casa para assistir ao espetáculo Travessia, do Grupo Tecelagem, de São Paulo, que abriu o 11º Festival de Teatro da Amazônia (FTA). Inspirado nas obras de Guimarães Rosa, um vaqueiro do sertão mineiro conta sua trajetória por meio de lembranças e “causos”, enquanto atravessa sua boiada de uma fazenda a um vilarejo. O personagem faz cinco paradas durante o percurso e, em cada uma delas, narra, poeticamente, aventuras tipicamente sertanejas.

Embora soubesse que se tratava de um monólogo – e talvez tenha alguma resistência em relação a esse tipo de espetáculo por ter assistido a poucos realmente bons –, não tive receio de que a obra fosse ruim, tampouco tinha certeza de que seria interessante. Apesar de se tratar de um autor da primeira geração do Modernismo brasileiro e, ainda, com temática regionalista (que, de antemão, pode parecer um tanto repetitiva), estava pronta para a experiência.

Ao chegar ao teatro, o clima estava borbulhante. Uma carta de repúdio foi lida por um ator local e deixou a plateia em polvorosa. As funcionárias da Secretaria de Cultura do Estado, quase em uma crise de nervos, se debatiam nos bastidores por conta da intervenção e da leitura da tal carta. Seu conteúdo era delicado: a censura sofrida por docentes do Curso de Teatro da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) ao apresentarem a performance Prisão de Ventre na Academia, que criticava as normas científicas impostas à pesquisa em artes na academia (dentre outras interpretações). Na plateia, atores e não atores ovacionaram o manifesto que repudiava a atitude opressora de alguns docentes, discentes e funcionários da Escola Superior de Artes e Turismo da Universidade do Estado do Amazonas, que teriam considerado o ato ofensivo à moralidade do ambiente universitário. Ora, se em uma escola de artes não se pode experimentar a liberdade de expressão, onde se poderá? Esse assunto merece destaque, apesar de não ser este o local mais apropriado à discussão.

Com a atmosfera provocada pela leitura da carta, nos primeiros instantes o espetáculo não conseguiu acompanhar o ritmo e a energia do público. Havia uma distância perceptível entre artistas e espectadores, como efeito do rebuliço anterior. A primeira imagem da obra incluía uma banda em cena e objetos dispostos no palco: o percussionista Thiago Rodrigues e o violonista Celso França, serragem ao chão, um banco de madeira em formato de tronco, uma cabeça de boi em um pedestal, um cartaz ao fundo com os dizeres Travessia e um berrante na lateral direita.

A apresentação se inicia com baixa iluminação. O ator e diretor do espetáculo, Paulo Williams, entra em cena, toca o berrante e começa a falar. Aos poucos vou me acostumando com a tela de tradução em libras, que emanava um brilho angustiante da parte de cima do pano de boca. A forte luminosidade interferiu drasticamente na construção da atmosfera do espetáculo, trazendo prejuízos à sua apreciação. Não me leve a mal, a inclusão e o acesso de pessoas com deficiência auditiva na fruição das artes são importantíssimos, porém não deveria atrapalhar o desempenho do espetáculo.

As primeiras palavras foram ofuscadas pela temperatura que a plateia emanava em razão da carta, pela tela de tradução em libras e pelo vocabulário rebuscado da obra de Guimarães Rosa. Williams, com energia, consegue conquistar o público após alguns minutos. O sotaque gerou dúvidas: paulista/mineiro, com influências nordestinas, sertanejo oriundo dos confins de Minas, ou não interessava? Aos poucos, fica claro o domínio do linguajar e das características tonais mineiras, com exceção de alguns escorregões do “erre” tipicamente paulistano. Dicção, articulação e projeção vocal, de certo, eram boas. O texto, talvez por conta dos oito anos de circulação do espetáculo, por vezes parecia automático na voz do ator. Essa impressão se desfez na atuação de diferentes personagens no decorrer da peça.

Durante cada um dos quadros representados pelas travessias que o personagem percorria, a dramaturgia começava da mesma maneira. Uma espécie de cabeçalho sempre presente a cada início de “causos”, em que a marcação era sempre a mesma. O clima de contação de histórias da obra se faz presente de maneira sutil: o protagonista não deposita todos os seus esforços para trazer características distintas para cada personagem da narrativa. Os músicos em cena ajudam a situar o espectador no espaço, porém podiam ser mais atuantes.

Os sons transportavam o público direto para fazendas e vilarejos do sertão mineiro: cercados de bois, o clima semiárido e a vegetação da caatinga. A iluminação era primorosa, não há como negar. Segundo Paulo Williams — com quem conversei durante o jantar de abertura que aconteceu após o espetáculo —, a peça está planejada para acontecer em um palco muito menor do que a caixa cênica do Teatro Amazonas. Luz e cenário foram adaptados para o Festival, uma vez que não se permite que outros espaços sejam utilizados. Pena.

Nas edições do FTA, espetáculos de rua ou de espaços não convencionais tendem a perder parte de sua potência, pois não estão no ambiente em que deveriam estar. Esse fato gera reflexões acerca das determinações estabelecidas pela comissão organizadora do evento: será que a premiação é justa com grupos cujos processos de criação não foram idealizados para um palco como o do Teatro Amazonas e procuram dialogar de forma diferente com o espectador? No caso de Travessia, percebia-se que a obra possuía um tom intimista e era esmagada pelo gigantesco espaço do Teatro Amazonas. Por um lado, não se pode dizer que o palco foi aproveitado de maneira insatisfatória, porém, por outro, a apresentação poderia ter sido melhor aproveitada em um espaço menor e mais aconchegante.

O comentário mais ouvido entre os espectadores era o de que a obra extrapolava seu tempo. Além disso, durante os cinco quadros nada espetacularmente novo acontecia. A partir de determinado momento, o público já sabia o que viria a seguir – outra história.

Por fim, o grande momento da obra acontece quando Willams abre uma pequena panela de barro que flamejava uma chama laranja e cativante. Fogo no palco do sagrado templo do teatro amazonense? O fato surpreendeu. Depois se descobriu que não foi permitido ao Grupo Tecelagem utilizar fogo em cena. Na verdade, eles só o fizeram porque ninguém da equipe técnica do teatro sabia do procedimento. É proibido, mas, como quase tudo que é proibido é mais excitante, esse foi um momento de júbilo. Tantas regras, tantas normas, tantas tradições que precisamos seguir… quebrá-las de quando em quando faz um bem danado!

 

 

NOTA

[1] O Teatro Amazonas é popularmente compreendido pela classe teatral da cidade de Manaus como o altar onipotente das artes cênicas. Infelizmente, o edifício é tratado como símbolo único do teatro manauara. Dessa forma, a existência de linguagens realizadas em outros espaços menos formais e tradicionais é esquecida. 

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

VASCONCELOS, Thaís; POTY, Vanja. “A Travessia do Grupo Tecelagem pelo Palco do Teatro Amazonas”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 13, jan. 2015. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

© 2015 eRevista Performatus e as autoras

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