Ação Psicoativa Ou Sob A Eficácia De Um Mesmo Efeito Acionado

 

Antes do espectador embarcar em um onírico ambiente proposto por Fernando Belfiore com a performance/coreografia .whatdowefinallyshare., um funcionário do Festival Contemporâneo de Dança checou se havia alguém que sofresse de epilepsia e dissuadiu a entrada de qualquer um que fosse atormentado por esse conjunto de desordens neurológicas. O tom apreensivo foi, desta forma, lançado logo na entrada, pois o espetáculo poderia ser justamente uma válvula de escape para o espectador descobrir uma grave enfermidade que pudesse levá-lo a uma convulsão, um ataque epilético.

Talvez, a relação espetáculo-espectador pudesse estar justamente calcada numa ideia de surto, de um arrebatamento coletivo, originado a partir de um dos elementos do palco, passando pelos performers e incorporando a plateia num mesmo delírio.

Sentia um estado de torpor como se estivesse no sedutor cenário do filme Laranja Mecânica (1971), porém imune da violência proposta por Stanley Kubrick, diretor do filme, mas hipnotizado por uma espécie de psy trance interminável, capaz de me fazer emergir para um plano surreal como o que vemos em Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma Romã um Segundo Antes de Acordar, de Salvador Dalí. Aliás, toda a loucura que aceitei vivenciar naquele espaço foi anunciada na imagem de um elefante branco de louça, o qual aludia para essa célebre pintura surrealista.

 

Fernando Belfiore, .whatdowefinallyshare. Festival Contemporâneo de Dança, Complexo Cultural Funarte São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Fotografia de Thomas Lenden

 

Sob um recinto branco, claro como um ambiente hospitalar, com três bailarinos vestidos com cores límpidas, testemunhávamos, em tom igualmente cândido, alterações repentinas de luzes de um strobo que emitia combinações instáveis de claridade, desnorteando até os observadores mais resistentes nas suas condutas de meros cúmplices. Aos poucos, eu ficava desatinado e deduzia que não estava sozinho nessa gradativa alteração de sentidos que substituía o meu estado habitual. Imagino que muitos ali partilhavam do mesmo estado de entorpecimento.

Das movimentações lentas até a quase total ausência de movimento, os performers especulavam alguma conexão com a plateia quando permaneceram quase estáticos e bem próximos do público, mas, em seguida, dançavam sós (com movimentações perto de serem consideradas bizarras) e alucinadamente ao som de uma mixagem da trilha de Un Chien Andalou, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, com algo parecido (se não for da própria) Rihanna, mesclando, assim, a música clássica com a pop.

Então, como dementes, os performers libertavam nossos desejos mais primitivos, que são diariamente recalcados pela moral vigente, quando dançavam com dentes travados e babavam como cães raivosos com suas bocas a expulsarem salivas espumosas e coloridas, agregando todos numa mesma deliciosa insensatez grupal, para que nos percebêssemos mergulhados em impressões de pura volição sensorial, como se estivéssemos dopados de uma mesma droga.

Sentia como se todos (a plateia em sua posição contemplativa e os performers na vivência) se entregassem sem medo ao mais denso deleite, sem buscarem razão em detrimento da emoção, sem preocuparem-se com uma estrita revelação de um enigma. Bastava vivenciar aquele ardente momento de inconsciência. Quiçá essas impressões sejam totalmente minhas, mas acreditei redondamente na partilha de um escoamento coletivo rumo a uma esfera mais fantasiosa.

 

Fernando Belfiore, .whatdowefinallyshare. Festival Contemporâneo de Dança, Complexo Cultural Funarte São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Fotografia de Thomas Lenden

 

Fernando Belfiore, .whatdowefinallyshare. Festival Contemporâneo de Dança, Complexo Cultural Funarte São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Fotografia de Thomas Lenden

 

Em cena, de um kitsch elefante branco cintilante de louça com a perna direita quebrada, uma série de elementos eram extraídos para serem compartilhados visualmente com a plateia, que, aparentemente, imergia profundamente numa alucinação conjunta. O devaneador efeito começava de forma sutil – em atmosfera de uma tonalidade branca e límpida – para alcançar a deleitosa sujeira que se esvaecia na escuridão sob luzes negras, as quais enfatizavam o líquido roxo usado como maquiagem néon para pintar os corpos dos performers e pontuais partes do espaço. Tudo isso sublinhava em cores vibrantes os nossos pensamentos ocultos e, assim, partilhávamos do mesmo estado de um aprazível delírio.

O desvario todo sobrevinha à medida que faziam emergir os elementos que, antes, estavam adormecidos no interior do elefante. De lá é que vinham o moldes que seguravam as bocas dos performers travadas em sorrisos mecânicos, os pigmentos que coloriam salivas espumantes, o líquido luminoso sob luz negra, enfim, todos artifícios empregados em cena e que asseguravam uma sedutora estranheza.

Desse insano delírio que sublimava o prazer despertado nos ambientes de raves, onde a própria música nos transporta para o total entusiasmo frenético, mesmo sem o auxílio de psicotrópicos como pastilhas de ecstasy ou, ainda, ácido lisérgico, partilhávamos de uma experiência estonteantemente única, algo que a arte contemporânea, com tanto racionalismo e conceito, está longe de conseguir.

Dessa obra, subterfúgios nos conduziam para algo que se aproximava do ritual, que nos transportava para uma segunda realidade juntamente com os performers e não de forma discernida, apesar de termos nos conservado diante de uma apresentação feita em cena totalmente frontal, à italiana, com determinação do lugar reservado ao público e ao artista.

 

Fernando Belfiore, .whatdowefinallyshare. Festival Contemporâneo de Dança, Complexo Cultural Funarte São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Fotografia de Thomas Lenden

 

Fernando Belfiore, .whatdowefinallyshare. Festival Contemporâneo de Dança, Complexo Cultural Funarte São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Fotografia de Thomas Lenden

 

Sob signos que rejeitavam uma lógica embrutecedora, Belfiore nos fez adentrar um espaço de devaneio onírico, aludindo desde o movimento surrealista até a estética flúor do filme Liquid Sky (1982), de Slava Tsukerman, arrastando-nos para um plano estonteador, longe dos maçantes discursos fundamentados, muitas vezes, em supostos preceitos intelectuais. Apresenta-se em .whatdowefinallyshare. um limbo de diferentes disciplinas que caracterizavam algo mais livre e que abdicava de um rótulo sintético, limitador; afinal, a obra não se bastava em exibição de uma metodologia, pois era uma troca de excitação acima de tudo, a qual convida-nos a um ritual que provoca alteração dos nossos estados mentais.

 

 

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