A Cidade não é Inocente

 

Fábio Lopes, À Procura do Lugar Feliz. Performance realizada no Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre, Porto, Portugal. Março de 2017. Fotografias de José Caldeira

 

A cidade é o espaço que simultaneamente oferece possibilidades e produz tensões entre diferentes perspectivas e valores que habitam em proximidade. Fábio Lopes explora, em À Procura do Lugar Feliz, o anonimato que a cidade permite ao indivíduo e a torna espaço de práticas, por vezes tidas ilícitas, de sexualidades e de gêneros não conformistas.

O público entra e encontra já o desenrolar da ação com o videoclipe Outside, de George Michael, sobre um imenso palco de azulejo. A ausência sonora é proposital, pois as imagens são mais que suficientemente carregadas de simbolismo sobre apropriação espacial com fim de subverter uma utilização heteronormativa do espaço público.

A obra que Fábio Lopes criou é performática, mas apresenta-se marcadamente como curadoria de um espaço que obrigatoriamente nos remonta aos códigos de comportamento em sociedade. A recriação de um banheiro público é conseguida sobre uma imensa e brilhante plataforma de azulejos brancos onde se reflete o frio da luz de cor azul normal destes espaços. O projeto político, econômico e social que é a sociedade tem a seu serviço todos os espaços da cidade como moldura condicionante da coexistência social. Porém, alguns espaços como este não se apresentam tão factuais quanto ao propósito que servem e aos significados que lhes são atribuídos. São aqui exploradas as subjetividades ocultas da utilização deste local com fins outros além do original.

Entre escritos latrinais, contatos telefônicos, linguagem corporal codificada e troca de olhares sugestivos com o público, Fábio apresenta estratégias para uma leitura subversiva do sentido e relevância dos espaços condicionados por discursos dominantes que ignoram subjetividades e têm interesses hegemônicos subjacentes. É-nos revelado como a cidade não é neutra como mero cenário onde a vida se desenrola. Se numa sociedade pan-óptica a infraestrutura obedece a convenções culturais do olhar heteronormativo que controla e impõe a ordem, é na transgressão que está o lugar de representação e afirmação de identidades sem voz própria. A transgressão funciona aliando o uso subversivo do espaço com uma reivindicação política que questiona a relação entre moralidade, natureza humana e normas sociais.

Sendo o cruising uma prática central ao corpo, torna-se visível a imaterialidade e construção social da identidade humana – ao invés de preexistência ou ocorrência natural. Aqui, o corpo liberta-se do discurso performativo imposto por práticas reguladoras da coerência de gêneros e sexualidades. Quebrada essa rigidez comportamental, advêm novas possibilidades do domínio do “fazer” exteriores à estrutura constrangida pelo guião preestabelecido. O usuário do espaço de cruising torna-se apenas corpo que obedece à sua natureza pulsional, impelindo-o a cumprir o ritual de transgressão de forma a resolver a tensão oriunda do seu próprio interior. A identidade é despida, subsistindo apenas o corpo como receptáculo onde se reúnem os próprios desejos e impulsos, então projetados noutros corpos.

O espaço é anárquico e atravessado por corpos não sujeitos a critérios de hierarquização ou marginalização. Estão em pé de igualdade traços identitários tão diferenciadores como idade, estado civil, orientação sexual, gênero e aspecto físico. É nesse espaço escuro e de sigilo recriado por Fábio onde o indivíduo se permite livremente explorar a si mesmo e ao outro. O anonimato é construído pela fugacidade do encontro e pela irrelevância da construção identitária necessária no mundo exterior. A felicidade na transgressão é uma possibilidade – por vezes a única –, pelo que o lugar de suporte da convivência social “pervertida” e sem compromisso emocional torna-se um refúgio que completa o transgressor e responde às suas necessidades subjetivas.

 

Fábio Lopes, À Procura do Lugar Feliz. Performance realizada no Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre, Porto, Portugal. Março de 2017. Fotografia de José Caldeira

 

Fábio criou, no fundo, uma heterotopia, sendo possível apontar certas características enumeradas por Michel Foucault sobre espaços onde habitam entidades desviantes à norma compulsória. Simultaneamente penetrável e isolado – o acesso ao espaço heterotópico é condicionado pelo conhecimento da sua existência camuflada num ângulo oculto da cidade, sem que a torre de vigilância do pan-óptico se aperceba. Para além de ser apenas perceptível para quem participa na sua criação, a heterotopia é tão efêmera quanto as relações sociais aí produzidas. À luz da sociedade líquida, o contato entre corpos responde igualmente ao paradigma de tudo o que rejeita a solidez, a durabilidade e o que não é possível ser utilizado imediata e fugazmente.

A heteronormatividade, quando alerta das práticas transgressivas no espaço que reclama ser seu, procede de forma repressora através da vigilância e punição. Para restabelecer a ordem social, o espaço sofre alterações menos atrativas ao seu uso subversivo. Tais tentativas de erradicação, porém, não passam sem contra-ataque por parte do transgressor – que cria estratégias crescentemente codificadas para a invisibilidade das suas práticas e performatividades.

A procura através do reflexo do espelho, a marca da passagem pelo espaço com mensagens explícitas e a desconstrução do espaço alterando as suas configurações originais fazem parte da adaptação do meio para que responda a necessidades e desejos subjetivos. É contrariada a representação comum, mas redutora, desta prática e entidades. Em vez de uma narrativa pornográfica, sobre promiscuidade e luta contra doenças infecciosas, somos confrontados por uma exploração com valor etnográfico e antropológico sobre cruising, onde interessa, sobretudo, confrontar o comportamento básico humano com a legislação do desejo. O que aparenta ser uma procura incessante pelo prazer corpóreo é mais uma questão de reclamar território para expressão pessoal na sua plenitude. Fábio habita o espaço como intérprete informado pelo comportamento infantil face às regras impostas – relacionando-o com a natureza básica, ainda em bruto, do ser humano que o guia apenas segundo a sua vontade pessoal.

Entre um jogo de poder, submissão, censura e liberdade, Fábio veste a pele do transgressor na sua procura pela satisfação. A sua aversão à cultura dominante e o desejo de fuga ao controle exercido sobre si pelo guião dos gêneros e sexualidades conduz ao apogeu da obra artística. O espaço acaba sendo destruído – uma transformação necessária para a consumação da transgressão que simultaneamente se apresenta visível e invisível, consoante o olhar. O privado penetra no domínio público, as normas sociais de comportamento e utilização do espaço perdem validade e a estrutura de poder dominante é questionada. A resistência afirmativa traz o elemento de risco da punição – tornando a clandestinidade da prática espacial ainda mais atrativa. As portas da sala abrem-se, o transgressor abandona o espaço que criou. Cumprido o ritual da transgressão, a heterotopia desvanece até à próxima ocorrência.

 

 

PARA CITAR ESTE TEXTO

AUSTIN, Jonathon. “A Cidade não é Inocente”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 18, jul. 2017. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Da Mata

© 2017 eRevista Performatus e o autor

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