A Porosidade da Ruminação

 

Gal Oppido, Sobre o Capital, 2008

 

Priscilla Davanzo é visceral. Esta assertiva não é tão tola quanto parece, provavelmente já foi utilizada e será retomada infindáveis vezes quando se tratar dessa artista. Essa impressão marcante de Priscilla me veio não no dia da performance propriamente, mas quando tive a oportunidade de assistir a uma palestra em que ela exibiu o seu percurso performático, que está a completar vinte anos. Senti que a artista pensava e atuava de modo tão próximo ao que sugere Nietzsche no prefácio d’A Genealogia da Moral [1], ou seja, a partir de uma rara exigência de ruminação. A ruminação é uma força imprescindível ao artista, ao filósofo, ao cientista e aos seres humanos que andam sobre o planeta. O ruminar é tão necessário quanto as faculdades da imaginação e da memória, e pode nos guiar pelas veredas da vida do pensamento.

Na ruminação, o animal regurgita o bolo alimentar à boca. A vaca, por exemplo, antes que seu estômago peculiar comece o lento processo digestivo, mastiga e remastiga o alimento. Essa faculdade de ruminar dos bovinos é, na filosofia de Nietzsche, a imagem da própria atividade do pensamento. Na concepção de Nietzsche, o espírito é um estômago! Lá está tudo aquilo que é instintivo: a natureza, a criação, a ousadia, o improviso, as paixões: “Um estômago estragado, com efeito, é seu espírito: esse lhes aconselha a morte! Porque, na verdade, meus irmãos, o espírito é um estômago! A vida é uma nascente de prazer; mas, para aqueles em quem fala o estômago estragado, o pai das aflições, todas as fontes estão envenenadas.” [2]

Para a antiga medicina grega, o estômago pode coletar a raiva, a ira, a frustração, e aí também podem se alinhar a passividade, a preocupação e a ansiedade. Na medicina chinesa, o estômago é o centro do corpo, centro da atividade mental, das ideias, da opinião e da capacidade de reflexão. Priscilla Davanzo, nos atenta para a ruminação da cultura do entretenimento, do descarte, que pouco pensa e reflete no que faz, e que muito se ressente. Essa é a cultura da dor de estômago. Dor de estômago que é fruto da angústia advinda dos conflitos internos ou até mesmo dos ressentimentos.

Por que não pensar com o espírito-estômago? Como as vacas quebram a cadeia de proteínas, quebramos os modelos de comportamento, de dominação e servidão. O caráter filosófico do estômago é avesso à cultura de rebanho, que massifica e controla. Este caráter está inserido na perspectiva do novo, do devir. Priscilla afirma os afetos, as paixões, as pulsões, o desconhecido, a pluralidade e a mudança especialmente na performance em que costura objetos diversos em seu corpo, em sua pele.

 

Priscilla Davanzo, pour être une seductrice. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Novembro de 2018. Fotografias de José Caldeira

 

O vocábulo grego poros pode ser traduzido como “meios, caminhos, passagens”. Os poros da pele de Priscilla são caminhos para os fluxos de trocas e afetos. Ela sai à rua e ao acaso encontra pessoas com as quais se dispõe a conversar; pede-lhes um objeto para que ela guarde, algo daquele encontro, qualquer coisa. De bitucas de cigarro até um motor de moto, a artista sutura tudo que lhe entregam em seu corpo. A pele é o meio de comunicação por excelência para Davanzo, não se trata de um mero invólucro ou embalagem. A sua pele, de fato, é uma superfície de afetos, de trocas, é através dos objetos que ela costura os encontros, afirma a singularidade de cada um, e amplia a duração dos mesmos. Ela age diretamente contra a rapidez de conexões e desconexões, a descartabilidade generalizada das relações. É justamente por meio desse gesto de costurar, de ligar-se fisicamente a esses encontros que ela causa um curto-circuito no movimento acelerado, no incessante conectar-se e desconectar-se, que distrai, que desvia a atenção. Davanzo exibe de chofre o sentido oposto da imediatez, daquilo que desliza sobre superfícies lisas e bloqueia os poros da inscrição efetiva do acontecimento-encontro. A prova cabal disso pude constatar na face dos que estavam presentes na exposição Adorno Político, realizada na cidade do Porto, em Portugal, no dia dezoito de novembro de dois mil e dezoito, na qual Priscilla participou costurando a meia-calça na pele de sua coxa. Priscilla lança a todos um abalo no organismo [3], nesse organismo que tende a escorregar constantemente, detentor de um estômago empanturrado de ansiedade e angústia, isso que tende a lacrar os nossos corpos afetivamente. O ato de ruminar que Davanzo convoca é o que nos permite refletir sobre os sujeitos que nascem desse modo de vida deslizante e acelerado. Estamos a nos tornar zumbis eficientes, proativos, hiper e interconectados, que vão de uma tarefa a outra, de um empreendimento a outro, de um afeto a outro, de um pensamento a outro, porém, sem qualquer relevo, achatados e nivelados de possíveis intensidades e sem investimento afetivo e existencial. A porosidade da ruminação de Priscilla é uma das forças de combate às carapaças fechadas, que estão em trânsito para lugar nenhum, é como um convite à abertura dos corpos.

 

NOTAS

[1] NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 15.

[2] Idem. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 246.

[3] ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.86.

 

 

PARA CITAR ESTA PUBLICAÇÃO

MELLO, Andrea Maria. “A Porosidade da Ruminação”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 7, n. 20, abr. 2019. ISSN: 2316-8102.

 

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy

Edição de Mãe Paulo

© 2019 eRevista Performatus e autora

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