Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
Fernando Pessoa
Do lugar onde estou não sei se a maré é alta ou baixa. Percorro esse imenso azul a transbordar a tela do monitor, e a invadir meu corpo e a sala. Além dessas águas tão intensamente azuis, vejo o céu em seu impalpável éter. Mar. Sinônimo de espera, lugar da saudade. Artista e paisagem se confundem agora na imagem difusa. Já não podem escapar à união silenciosamente tramada por alguém que se mantém eternamente distante. Na praia, a água salgada, que preserva e também corrói, lambe-lhe os pés descalços, a descobrirem-se sós entre os rochedos e a longa faixa de areia. Lentamente, notas melancólicas como as de um fado começam a compor um quadro em minha mente. A artista, vestida de negro, aciona a memória de outras mulheres, que assim também vestidas, se puseram solitárias, a esperar por seus maridos viajantes. Mulheres que viviam a vida entre rochedos a espreitar o mar, a sonhar com mares mais belos. Mulheres que aprenderam a ouvir a fala dos ventos que vêm dos abismos, como se ouve os presságios de um oráculo, e a criarem imagens a fim de suprir ausências e perdas.
Da ausência profundamente sentida do pai, Suzana Queiroga colheu fragmentos da trágica história do acidente aéreo que o vitimara, dos dias intermináveis passados pela mãe a esperar, qual Penélope, pelo retorno do marido à beira-mar.
Desde Ulisses, o mítico herói navegante, a viagem assombra aqueles que ficam em terra a esperar, e se faz como busca interminável para os que se vão. Irrequieto, Ulisses aspira por cumprir sua tarefa heroica. Assim mergulha em direção ao desconhecido. O retorno a Ítaca, ainda que profundamente ansiado, é sempre adiado por urgências que lhe são impostas pela própria viagem – enfrentar e vencer tempestades e obstáculos, vivenciar a imensidão, e ouvir o tempo.
À beira-mar somos tristes quando sonhamos… Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado… Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma… Tudo é muito e nós não sabemos nada… Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar? [1]
Suzana Queiroga, Olhos d’água, 2013. Vídeo, 7’26″. Fotografia de Mario Grisolli e Renato Vallone
A imagem da ausência
Segundo Sartre, a imagem é um ato da consciência “que existe para si” [2], estabelecida numa relação entre a consciência imaginante daquele que visa um objeto, e o próprio objeto ausente. A imaginação é um ato de criação; o próprio relato onde se descreve, narra-se um acontecimento. Criamos imagens a todo tempo, ainda presos a um desejo de reconhecimento diante da falta de algo que conhecemos e que não se encontra presente – um ato que se constitui no desejo de estar junto. Essa imagem não pertence ao campo do real, ela é da ordem do inexistente. Isso significa dizer que esse ato de criação se dá num espaço abstrato, no vazio dado pela não presença do visado. Para Sartre, é um ato de negação, pois “Por mais viva, tocante, forte que uma imagem seja, ela dá seu objeto como não sendo.” [3]
Esse duplo do ausente não habita o campo da percepção, visto que a imagem não é um ser em si que ocupa um lugar físico, não é uma coisa; ela é uma consciência de nada ser. “A consciência imaginante não coloca nada, não ensina nada, não é um conhecimento: é uma luz difusa que a consciência desprende por si mesma, (…) uma espontaneidade que produz e conserva o objeto como imagem.” [4] Síntese de afetos e de sentimentos dada pelo ausente, a imagem não passa de uma ficção, mas com um propósito. Síntese de afetos e de sentimentos, tentar suprir uma falta.
A felicidade da imagem é que ela é um limite perto do indefinido. Orla exígua mas que nos tem menos longe das coisas do que nos preserva da pressão cega dessa distância. Pelo que existe de inflexível num reflexo, cremo-nos senhores da ausência convertida em intervalo, e o próprio vazio compacto parece abrir-se para o fulgor de um outro dia. [5]
De certa forma, no campo da representação, posso pensar que essa imagem afirma a identidade do visado, de alguém que se mantém distante.
A palavra imagem não poderia, pois, designar nada mais que a relação da consciência ao objeto; dito de outra forma, é um certo modo que o objeto tem de aparecer à consciência ou, se preferirmos, um certo modo que a consciência tem de se dar um objeto…. lembramos que a imagem não é mais do que uma relação. [6]
Mas essa imagem-relação não dá o ausente, ela é uma condensação de saber e desejo a evocar diante de si uma distância invencível. A imagem como representação é sempre falha – e a artista o sabe. No vídeo Olhos d’Água (2013), diante do imenso espaço da espera, a artista vagueia absorta e nada pretende representar figurativamente. O vento, o mar, a maresia e os azuis se misturam a seus verdes olhos, rasos d´água. Lágrimas, mar, maresia, vento são transbordamentos, que vêm marear outros tantos olhos que perscrutam o imenso salão expositivo, a sentirem e a expiarem suas próprias perdas. Assim como eu, os outros ali presentes também são tomados por imagens da distância, da ausência e da viagem. Somos todos atraídos por uma visão da ordem do sublime, que se ergue como presença, e então, já capturados, percorremos melancolicamente o salão do museu, erguido num promontório sobre a mesma baía onde ocorreu o trágico acidente que interrompeu o fluxo de vidas a serem construídas em conjunto. Mas essa experiência não acontece por que todo o evento já estivesse ali, dado simplesmente, que a obra falasse explicitamente de toda a tragédia. É da medida dos ocos deixados pela obra que se pode penetrá-la mais profundamente, como uma sensação composta com o vazio que também lhe pertence. Há um vazio de saudade e ausência irremediavelmente tramado entre o vídeo Olhos d’Água e nós, que ali estamos a experimentar esse espaço-tempo, esse espaçamento que se ergue na galeria, domínio tramado pela obra, força que transborda o meio e o suporte, aberta a múltiplas experiências sensíveis. Diante dessa distância, adentramos um lugar que se afirma nas relações de troca entre observador e obra, numa “distância desdobrada”, como afirma Didi-Huberman, de onde o próprio objeto nos olha. [7] Sua presença se afirma como uma inquietante visão de perda. Aquela trama mesma que “jamais se detém no que é visível” [8], uma distância que a todos afeta: “Uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anadiômena da ausência.” [9]
Suzana Queiroga, Olhos d’água, 2013. Vídeo, 7’26″. Fotografia de Mario Grisolli e Renato Vallone
Suzana Queiroga, Olhos d’água, 2013. Vídeo, 7’26″. Fotografia de Mario Grisolli e Renato Vallone
Através desse percurso dado pela falta, a consciência imaginante tenta suprir a distância dada pela ausência que a artista faz vazar em obra que entrega ao mundo.
A viagem como imagem
Há sempre uma viagem interna, afetiva, responsável por transformações psíquicas e renúncias sobrevindas de experiências exteriores. Experiências que geram reflexões sobre a vida e sobre a possibilidade de entendimento de si e acolhimento do outro. Viajar, num sentido amplo, como uma exploração constante, vai além dos planos e coordenadas traçadas no espaço físico; é também percorrer distâncias afetivas e imaginárias. A viagem, como deslocamento afetivo, permite-nos ver outras paisagens, ativar memórias, expandindo-nos para o campo do simbólico. Os dois modos, no entanto – efetivo e afetivo – misturam-se e, nesse amálgama, criam uma topologia aberta para novos encontros.
Vazios, ausências.
Se por um lado a viagem pode ser tomada como modus operandi na prática de alguns artistas contemporâneos, por outro ela pode ser construída no espaço-tempo da espera e dos afetos. O vídeo Olhos d’Água fala do desejo de ter para si, de ter perto de si, alguém que só se dá a ver como imagem da distância. Como viajante no tempo, a artista assumiu o caráter de exploradora, que busca, tanto na experiência efetiva da viagem quanto na viagem afetiva, um espaço simbólico que pode ser vivenciado e construído como imagem da arte dentro desse mundo ficcional que pensa o “real” à sua maneira, ética e esteticamente.
Houve uma viagem, um efetivo deslocamento, mas o viajante não era Ulisses. A morte veio, e à mãe e à família de Suzana, o mar só devolveu-lhes. O que lhes sobrou, para toda a vida, foi a imagem do ausente.
Ver o vídeo Olhos d’Água, e ver Suzana a se deslocar na paisagem marítima, me faz pensar na impossibilidade de preenchimento desses vazios aos quais estamos irremediavelmente fadados. A artista cresceu no vácuo de palavras mudas, sem que pudesse compor todo o sentimento dessa perda. Somos, afinal, incapazes de abarcar por completo todos os sentidos, de ler todas as imagens, de rechear todas as faltas, de compreender todas as falas do mundo. Estabelecendo a viagem como parte de um processo singular para a materialização de uma obra em vídeo, e como símbolo do desejo de resgatar percursos realizados no passado, Suzana Queiroga expande a possibilidade de mergulhos em experiências em que se misturam tempos e espaços. Para Suzana, o pai mergulhou em seu devir (m)ar. Seu corpo carnal virou mar, e nos processos físicos, naturais e do tempo, deveio nuvem, que, no processo eterno das precipitações, deveio chuva; que deveio mar, que deveio, nuvem; que deveio… Do ensejo de poder encontrá-lo, tocá-lo no imenso, surge o projeto “Balão Voo-Velofluxo”. Monumento em movimento. Suzana, agora também paisagem e passageira, vagueia no azul e desértico da grande altitude. Como uma viajante sem esteio e sem amarras, ergue solenemente um espaço-homenagem e sublimação. Como se a viagem contivesse um princípio e um poder de restituição do ausente.
Outras imagens e viagens
Se a viagem da saudade pressupõe a ausência de uma existência, ao confrontar os mapas das cidades pelas quais havia se deslocado – Londres, Paris, Rio de Janeiro, São Paulo –, ao desenhar as linhas de seus percursos nessas cidades e sobrepô-las umas às outras, aconteceu à artista “a mágica de alguma continuidade de linhas” (Queiroga, 2013), para dali compor infinitamente novas configurações espaciais. Se a espera do ausente não pode ser sentida com leveza porque fala de morte, a artista pôde, em seus processos e obra, transmutar esse peso em fluidez, e ansiar por outras viagens. Ao fixar esses novos mapas nas paredes do ateliê, ao sobrevoar mentalmente essas rotas e lugares, surgiu à artista, como dobra de seu processo, o projeto do balão Velofluxo (2008).
Logo comecei a recortar mapas em forma de balão, balões cidades e em menos de uma semana eu tinha a certeza absoluta de que queria construir um balão de ar quente e voar, para ter a experiência de ver o mundo e as cidades “de fora”. (…) Na ocasião que o balão foi inflado pela primeira vez, agosto de 2008, e eu subi em sua cesta, tive a confirmação de que aquele momento e aquela obra eram também uma grande homenagem ao meu pai, à vida e à minha sobrevivência. [10] (ibidem).
Segundo Queiroga, todo balão tem seu tempo de vida. E antes que Velofluxo morra (morte prevista para esse mesmo ano de 2014), e a viagem se transforme novamente em imagem, cumpre-lhe um voo nos céus portugueses, país de origem de seu pai, como também na Capadócia, terra de seus ancestrais.
Talvez então, ao fechar esse círculo, Suzana possa afinal fazer o luto há tantos anos adiado.
Notas
[1] PESSOA, Fernando. “O Marinheiro”. In: Poemas Dramáticos. Poemas Ingleses. Poemas Franceses. Poemas Traduzidos. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1976, p. 38.
[2] SARTRE, Jean-Paul. Psicologia Fenomenológica da Imaginação. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.19. Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/122055237/SARTRE-Jean-Paul-O-Imaginario>. Acessado em: 07.05.2014.
[3] Ibidem, p. 28.
[4] Ibidem.
[5] BLANCHOT, Maurice. “As Duas Versões do Imaginário”. In: O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 277.
[6] Ibidem.
[7] Georges Didi-Huberman parte da reflexão sobre o conceito de aura em Walter Benjamin, não no campo da ordem política propriamente, de emancipação do sujeito, mas no da experiência estética como potência reflexiva e crítica. Didi-Huberman propõe o conceito de imagem crítica a partir do conceito benjaminiano de imagem dialética, junto à fenomenologia, à recepção das imagens e sua potência de provocar pensamento.
[8] DIDI-HUBERMAN, George. “A Dupla Distância”. In: O que Vemos, o que Nos Olha. São Paulo, Ed. 34, 2010, p. 76.
[9] Ibidem, p. 148.
[10] Excerto da conversa entre a autora e a artista no seu ateliê, no Rio de Janeiro, em 11 de dezembro de 2013.
Revisão de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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