Wagner Schwartz, La Bête. Performance realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil, durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes
O mais engraçado é o seguinte: eu não tenho tanto prazer em brincar com os Bichos; o meu prazer é de ver os outros brincarem com eles. [2]
Lygia Clark afirmou tal frase em 1960, correspondendo justamente ao ano em que a sua série Bichos foi pela primeira vez exposta com os seguintes títulos: Invertebrado, Ponta, Desfolhado, Articulado, Articulado Duplo, Metamorfose I, Prisma, Metamorfose II, Vegetal, Constelação, Contrário I, Cidade, Contrário II, Vazado I, Vazado II e Sobre o Redondo. Na época, talvez ela não tenha previsto que alguém pudesse “brincar” com os seus Bichos como Wagner Schwartz escolheu fazer, criando uma intertextualidade, onde não só “brinca” com um dos seus Bichos, mas “torna-se” um (ou vários) deles durante o tempo estipulado para a sua ação acontecer.
Como uma homenagem ao trabalho de Lygia Clark, o prazer da brincadeira – sugerido pela própria artista em diversas de suas obras – está completamente presente na performance de Schwartz, que coloca pessoas em contato direto, mencionando (ainda que não intencionalmente) a trajetória de Clark, através da qual a bidimensionalidade da pintura foi expandida à tridimensionalidade cinética – algo que vemos nos Bichos e não apenas – até ela chegar, primeiramente, à fase sensorial intermediada pelo objeto – em que o mesmo permaneceu por algum tempo indispensável para possibilitar que corpos experimentassem sensações táteis – até que, posteriormente, Lygia permitisse a incorporação dos próprios objetos, oferecendo ao corpo “o objeto de sua própria sensação” [3]. E Wagner cita indiretamente isso tudo na sua performance.
Doze anos depois de Lygia Clark criar os Bichos e dizer que tem mais prazer em ver as outras pessoas brincarem com eles, nasceu, em 1972, Wagner Schwartz, um profissional das artes do corpo que, em 2005, escolheu fazer da sua própria massa corpórea uma obra manipulável como as muitas de Clark, com foco específico na sua tão renomada série Bichos. La Bête [O Bicho], título em francês dado por Schwartz, não vem como um mero estrangeirismo pelo fato de o artista viver em Paris, além de São Paulo; ele nos direciona para a relação da artista com o contexto da França também, país onde Lygia Clark viveu entre 1950 e 1952 e, depois, entre 1970 e 1975, estudando com Fernand Léger, Árpád Szenes e Isaac Dobrinsky na sua primeira vivência no território francês e lecionando artes na Faculté d’Arts Plastiques St. Charles, na Sorbonne, na sua segunda permanência na capital do mundo francófono.
Wagner Schwartz, La Bête. Performance realizada na Galeria Olido, em São Paulo, Brasil, durante o Festival Contemporâneo de Dança. Novembro de 2015. Frames do registro em vídeo da performance feito por Osmar Zampieri
Os Bichos de Lygia Clark têm possibilidades múltiplas de formas e movimentos (que parecem ilimitados) e são estruturas constituídas por placas metálicas em alumínio com dobradiças que, para a própria artista, trazem a ideia de uma espinha dorsal, algo que possivelmente motivou Wagner a usar uma pequena réplica de um dos Bichos de Clark para moldar formas diversas diante de sua audiência e, em seguida, convocar o público a fazer o mesmo com o seu corpo, como se fosse ele também um bicho que, embora seja de carne e osso, expõe-se desumanizado, pois apresenta-se – ainda que metaforicamente – como uma peça escultórica manejável, exatamente como as peças da série de Clark, as quais adquirem formas diversas apenas se houver participação ativa dos(as) espectadores(as).
Evidentemente um corpo (distinto de um objeto de Clark) carrega em si a sua subjetividade e isso é imprescindível; não é possível vermos um humano sem deduzirmos a sua interioridade, e talvez esse seja o ponto que gerou tantos posicionamentos encoleirados a partir da apresentação da performance de Schwartz no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, durante a 35ª Mostra Panorama de Arte Brasileira, em 2017.
Embora praticamente todas as pessoas que criticaram negativamente o trabalho só tenham acessado pequenos trechos do mesmo através da internet, ou seja, onde o corpo é apenas uma criatura eletrônica vista de maneira bidimensional, ao testemunharem, a partir de suas telas (celulares, computadores etc.), a ação do artista “desumanizado” como uma escultura interativa, tomados pelo ódio, discursavam em recusa a essa não-humanidade do corpo exposto para ser manuseado como tal e, assim, evidenciavam muitas vezes opiniões completamente desumanas para, contraditoriamente, defenderem humanos vistos como criaturas indefesas e vítimas de alguma barbaridade.
O nome do artista Wagner Schwartz tornou-se midiático e passou a ser conhecido para além do circuito das artes por conta dessa recente apresentação de La Bête e de toda a polêmica criada no meio desse obscurantismo notório que o Brasil vem atravessando. O fato de estar nu e ter esse mesmo corpo tocado por uma criança no MAM/SP e por três crianças na apresentação feita em agosto/2017 no Goethe-Institut durante o festival IC Encontro de Artes (ainda que fosse nos seus pés e mãos e da maneira mais lúdica possível, com consentimento de adultos responsáveis por elas), a ocorrência foi o estopim para que uma massa exaltada se manifestasse on-line e distorcesse a ação, reinterpretando-a a partir de pontos de vista pessoais. Foram, então, viralizadas as convicções mais radicais, com exacerbado sentimento de orgulho e presunção, que consideraram tal episódio como um atentado “à moral e aos bons costumes”, ignorando que um corpo nu não necessariamente é um corpo sexualizado e que a veste não é um manto sagrado que blinda um corpo tido meramente como um objeto de desejo (ou desejante) do prazer carnal. Um corpo nu pode ser simplesmente um corpo nu e não categoricamente um corpo erotizado.
La Bête ultrapassa as análises simplórias em sua mais absoluta singeleza, onde um corpo, sem adornos ou indumentos, apenas acompanhado da pequena réplica de um dos Bichos, funciona como âmago da obra, revelando muito mais o(a) participante que o próprio performer sujeitado à manipulação, pois além das ingênuas e/ou afáveis participações, o corpo de Wagner, apresentado de forma passiva, pode acabar por experimentar mediações sádicas (agressivas de forma física e/ou psicológica), e as reações públicas pautadas na sua apresentação sob intermédio de pequenos fragmentos de vídeos são também reflexos dessa ideia, porque revelam mais quem examina e analisa do que quem é avaliado. Qualquer forma de intervenção erigida na ação (ao vivo ou não) nos faz refletir sobre quem está no poder e sobre como cada participante faz uso dessa condição. Mas quem de fato está no poder quando o que se sente em posse do domínio é justamente o verdadeiro alvo de análise? As relações são mútuas e aniquilam as posições bem definidas. Nesse sentido, todos estão igualmente ocupando o lugar da ponderação e o do objeto de análise, havendo um nível alargado do desfazimento das barreiras entre obra e audiência (seja ela presencial ou não), e todo o ambiente é acionado, pois todo o ambiente passa a ser a obra ou eco da mesma.
Talvez como uma referência ao Bicho de Bolso (1966) de Lygia Clark, mas sobretudo como uma autorreferência ao La Bête, Wagner elaborou o trabalho em vídeo intitulado Bicho (2005), através do qual vemos as suas mãos manipularem um pequeno boneco de pano similar a um vodu, correspondendo a uma versão reduzida de si. Esse vídeo – em que vemos a meditativa ação acontecer em tempo real – pertence à instalação Placebo (2005), que além do Bicho, conta com outros vídeos: Filtro, Chá de Freud, Carnaval e Uberlândia, sendo todos realizados no mesmo ano.
Wagner Schwartz, frames do vídeo Bicho, 2005
A instalação direciona o nosso olhar para aquilo que Rosalind Krauss denomina “condição pós-mídia”, em que as especificidades dos dispositivos encontram-se contaminadas, não sendo mais possível avaliarmos os segmentos correspondentes a cada uma das mídias de forma purista ao considerarmos os contextos de cada uma delas de maneira autônoma, pois “elas vão agora se misturar livremente” [4]. Trata-se de pensarmos a conjuntura derivada da condição agregadora da mídia proposta, desde o suporte para os vídeos, da câmera que os filmou, do projetor que lhes atribui o movimento, incluindo a posição do público apanhada entre a fonte da luz atrás dela e a imagem projetada diante de seus olhos [5].
Com indubitável ironia, na descrição da sua instalação Placebo, Schwartz usa uma frase que possivelmente escutou de alguém que assistiu ao seu trabalho: “se soubesse que viríamos aqui para ver TV, eu teria ficado em casa” [6]. Tal pensamento denota a não compreensão da coparticipação de diferentes linguagens artísticas em uma mesma expressão, onde não deve haver hierarquias, e a performance ou a dança ou qualquer outra forma de expressão que, por convenção aconteceria ao vivo, pode sim miscigenar-se com o vídeo e apresentar-se sob intermédios, convergindo-se em arranjos distintos também passíveis de questionamentos sobre suas novas configurações, seja como videodança ou como videoperformance. Esse último gênero quiçá seja a melhor definição do que Wagner expõe, já que “na medida em que não existe a interatividade com o público, com a audiência, ou com o outro, a interatividade do corpo do artista é produzida no enfrentamento com a própria câmera de vídeo” [7], o que poderia conformar-se na videoperformance, mesmo em casos como o do vídeo Uberlândia, o qual trata-se de um registro de uma performance realizada na cidade mineira que dá título à criação.
Wagner Schwartz, frames do vídeo Cleópatra, 2007
O recurso do vídeo como meio da comunicação artística foi alvo de especulação em outros trabalhos do artista, como vemos em Cleópatra (2007), obra em que uma performer convidada, Ligia Manuela Lewis, dubla a canção “The First Time Ever I Saw Your Face” (1969), de Roberta Flack, durante mais de cinco minutos sem piscar seus olhos. Logo nos primeiros segundos do vídeo, ela levanta as pálpebras antes cerradas para nos encarar, olhando fixamente para nós observadores(as) que assistimos à sua imagem virtualizada, mediada pela tela do ecrã ou da projeção. Somos fatalmente seduzidos para entrarmos no jogo de também mantermos os nossos olhos abertos todo o tempo para tentarmos flagrar algum momento de deslize em que ela pudesse rapidamente fechar os seus olhos, mas isso não acontece e ela os mantém tranquilamente abertos do começo ao fim da sua atuação. Segundo a descrição do trabalho, “Cleópatra é a versão humana de um avatar. Nesse vídeo, ela é programada para simular emoções virtuais” [8], o que confirma o aspecto robótico – e nem por isso não-humano – da imagem que nos atrai.
Wagner Schwartz, Piranha. Performance realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil, durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes
Na sua obra Piranha (2009/2012), olhando quase que constantemente para o alto e sacudindo o seu corpo por um tempo dilatado, sob um único foco de luz sem que haja um filtro de cor evidente, em pé sobre o palco, Wagner inicia uma movimentação vibrátil com os seus pés quase inabaláveis no mesmo lugar do início ao fim do espetáculo, sofrendo pequenas oscilações quando há algum desequilíbrio gerado pelos seus espasmos, mesclando a agitação corporal voluntária com a involuntária.
A imagem ultrapassa a trivial noção de dança, que pressupõe uma sucessão de movimentos coreografados, e poderia roçar até mesmo com a escultura cinética em sua componente visual, desde os mobiles dançantes de Alexander Calder, em suas movimentações em torno de um mesmo eixo, até a irrepetibilidade de Ascension (2005), de Anish Kapoor. Mas é principalmente o corpo, com as suas micropolíticas, que direciona o espetáculo de Wagner à expressão artística da performance. É o corpo como suporte do argumento, mas também veículo. E, se quisermos categorizar a qual gênero artístico a obra pertence (o que não tem nenhuma necessidade), a performance talvez seja o mais apropriado no sentido em que é uma expressão que rejeita rótulos e o caráter híbrido toa recursivo, podendo então uma dança (sem uma coreografia convencional), combinada com a literatura e com o vídeo, não ser nem dança nem teatro nem vídeo e, talvez, nem mesmo performance, sendo simplesmente algo que desmantela categorias fixas.
Esse trabalho evoca o solipsismo filosófico e, provavelmente, está pautado em experiências pessoais do próprio artista que não estão completamente explícitas, mas podem ser deduzidas a partir de signos expostos de forma poética e não como provas circunstanciais, sendo todas interpretadas de maneiras múltiplas e tangenciadas aos dilemas humanos como a morte, a crença (ou não) na transcendência da alma e, também, o amor e as frustrações decorrentes de tal sentimento.
Apreendemos, a partir das sensações partilhadas, dessemelhantes conclusões sobre o que nos é mostrado. Apesar de não experienciarmos o mesmo estado físico e mental e um possível transe que Wagner testa em si ao sacudir seu corpo até o seu limite, permanecemos entorpecidos, quase hipnotizados, vendo um ser que se agita ao som de ruídos que retomam estrondos de aparatos tecnológicos inconstantes desde quando o artista passa a ser visto no palco até o fim da obra. Intuímos, no vai e vem da sua fisicalidade, uma relação sexual ardente ou somente um espectro que contextualiza as relações “líquido-modernas” da era digital, inseridas “numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea” [9]. Talvez, possamos ainda perceber uma ascendência espiritual ou apenas uma ansiedade exagerada que toma conta de um indivíduo, como simplesmente podemos, também, imaginar um peixe fora d’água tanto no sentido literal como conotativo da expressão.
Antes de o corpo de Wagner ser revelado já no palco, há uma narrativa poética (uma espécie de videopoema) que surge em forma de legenda, sendo a argumentação por vezes cética, por vezes melancólica além de descrente, por vezes também sem nenhuma confiança no amor. Nenhuma? “Estamos tão tristes quanto todos.” [10] Não há nenhum texto falado, nenhuma voz pronunciada; tudo que acessamos desse texto é por meio da própria palavra escrita. As palavras são postas como imagens. Antes de vermos o corpo do artista a vibrar incessantemente, permanecemos no escuro, onde a palavra vinda da luz da projeção nos retira, por vezes, do ambiente sombrio, mas a dureza de cada expressão, ainda que sob a camuflagem da poesia, revela-nos o breu. E Wagner nos relembra em seu texto que “a palavra não é inteligível”, nós a compreendemos quando “ela se encontra com um objeto” [11]. O clima é tão niilista quanto o que vemos no filme O Cavalo de Turim (2012), de Béla Tarr, onde a insistência na repetição reforça o confinamento solitário dos indivíduos e dá imagem ao que entendemos pelo “eterno retorno” nietzschiano. Com o apagar do único feixe de luz, com o qual intuímos o fim, também percebemos a escuridão inicial já experienciada, ou seja, um imaginável recomeço.
Wagner Schwartz, Transobjeto. Espetáculo realizado no programa Rumos Dança Itaú Cultural, em São Paulo, Brasil. Março de 2004. Fotografia de Gil Grossi
Transobjeto, espetáculo de 2004, que foi remontado dez anos depois, em 2014, tem início com a entrada abrupta de Schwartz pela esquerda alta do palco até parar na esquerda baixa, onde há três arcos amarelos semelhantes a bambolês. Ele se posiciona exatamente dentro de um deles, vestido com um traje feito de esteira de praia. Podemos conjeturar que não há nenhum indumento além da palha a ocultar o seu corpo. Com movimentos sutis de sua cabeça, ele olha cada pessoa da plateia até que, repentinamente, levanta o seu braço esquerdo a segurar uma pedra, o que, como uma agulha de diamante que toca o vinil, funciona como o apertar da tecla play e dá início à música “If You Hold a Stone” (1971), de Caetano Veloso, composta durante o seu exílio na Inglaterra. Wagner permanece parado com seu braço esquerdo suspenso a segurar a tal pedra até que o primeiro refrão da música se encerra. Ele, então, se posiciona no interior de um segundo arco, onde executa a ação de pegar um bobe de cabelo com o auxílio de um par de hashi – aqueles pauzinhos usados como talheres em países do extremo oriente – e faz disso um binóculo, com o qual olha para a mão que segura a pedra e pronuncia: “objeto relacional de Lygia Clark”. Posicionado no terceiro arco amarelo, a ação da pedra é refeita e o traje, ao ser por ele suspenso, revela um tecido vermelho almofadado com a legenda “Incorporo a Revolta”, fazendo alusão aos parangolés de Hélio Oiticica, bem como o Seja Marginal, Seja Herói (1968), em que Oiticica propunha transgressão aos costumes e valores conservadores e burgueses.
Entre as movimentações subsequentes e as demonstrações das variadas relações entre o seu corpo e os demais objetos que estão sobre o palco, sob o som de um metrônomo que indica um andamento musical regular, no caso um andamento de samba, Wagner dá sentidos múltiplos a um tecido vermelho, que funciona como uma gigantesca fita para amarrar o seu corpo apresentado em formas contorcidas e, posteriormente, como um delicado vestido de gala. De forma agressiva, estraçalha, em sequência e com as suas próprias mãos, algumas frutas (manga, maracujá, melancia, abacaxi e laranja) para diluir o sumo de cada uma delas em um vinho branco francês ali disposto para composição de drinks tropicais. Wagner os bebe suavemente em suas respectivas taças ao som de “London, London” (1971), de Caetano Veloso, concluindo essa sequência de bebidas com uma água de coco. O desfecho do espetáculo se dá debaixo de um guarda-sol aberto, onde o performer fuma glamourosamente um cigarro ao som de “Tropicália” (1968).
Wagner Schwartz, Transobjeto. Espetáculo realizado no programa Rumos Dança Itaú Cultural, em São Paulo, Brasil. Março de 2004. Fotografia de Gil Grossi
Trans é um elemento linguístico que exprime muitos significados, dentre eles: “além de”, “para além de”, “em troca de”, “ao través”, “para trás”, “através” etc. E Wagner especula as inúmeras possibilidades que a partícula “trans” pode gerar em combinação com diferentes objetos, sugerindo a transformação, a transexualidade, a transgressão, a transmídia, a transdisciplinaridade, o transbordamento, a transposição, o transpassar e etc., ao fazer uso de referências tão claras e tão inteligentemente combinadas entre si.
Embora haja humor em um trabalho que retoma um movimento de ruptura como foi o Tropicalismo, o contexto tenebroso de repressão vinculado ao Golpe Militar de 1964 da história do Brasil está inevitavelmente atrelado ao enredo e, nesse sentido, Transobjeto, de Schwartz, consolida-se como uma obra completamente atual, pois assistimos hoje a um enorme retrocesso no cenário político brasileiro que acaba por nos direcionar a essa época em que a metáfora era estratégia quase obrigatória para as(os) artistas driblarem a censura.
Infelizmente, ainda que tratando-se de supostos “casos isolados”, esse retrocesso está sendo repetido e com bastante amplitude. Basta atentarmo-nos aos exemplos todos ocorridos em 2017, como o cancelamento da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Santander Cultural em Porto Alegre; a injusta prisão temporária de Maikon Kempinski em Brasília, ao apresentar a sua performance DNA do Dan, na praça do Museu da República em Brasília; a apreensão do quadro de Alessandra Cunha no MARCO – Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul; a interrupção, por policiais militares, da peça teatral Blitz – O Império que Nunca Dorme, do grupo Trupe Olho da Rua em Santos-SP; a presença de menores de dezoito anos vetada na exposição “Histórias da Sexualidade” no MASP, em São Paulo (algo que felizmente foi revisto); a proibição do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu – da encenadora Natália Mallo, com a atriz Renata Carvalho – de ser apresentado no SESC de Jundiaí (mas que obteve, depois, uma decisão favorável pelo Tribunal de Justiça de São Paulo); e o próprio caso de Wagner Schwartz ao apresentar La Bête no Museu de Arte Moderna em São Paulo. Certamente, esses são os casos que ganharam algum holofote midiático, mas outras censuras aconteceram e, talvez, não viraram manchete.
Mal Secreto, obra iniciada em 2015, embora tenha sido já apresentada em algumas circunstâncias, é um projeto em construção e que tem a memória como abordagem poética. Sobre uma cadeira, com um álbum fotográfico nas mãos, ao virar cada uma das páginas, Wagner Schwartz divide as suas sensações e notas acerca de cada imagem. Vemos cada uma delas projetadas ao fundo do palco por trás dele enquanto acompanhamos a sua descrição. Mais uma vez, o tempo, o corpo e a sua relação com o mundo são alvos de análise na sua criação.
Wagner Schwartz, Mal Secreto. Leitura realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil, durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes
TALES FREY: Ao observar a sua poética visual através da sua trajetória, tenho imensa curiosidade de saber como funciona o seu processo criativo. Alguns e algumas artistas partem do que eu gosto de nomear como “raciocínio visual”, ou seja, reflexões sobre vários conceitos (históricos, filosóficos etc.) que acontecem através de uma compreensão súbita (insight) em forma de imagem e que não deve ser confundida com uma “inspiração intuitiva”. Outros(as) artistas colocam conceitos em prática até que o resultado estético emerja como consequência disso. Claro que existem muitos procedimentos e todas as metodologias são válidas e, muitas vezes, são completamente pessoais e intransferíveis. Como funciona a sua metodologia? Caso não tenha um processo específico de criação, queria que explicitasse um caso (ou mais de um) que julgue o processo coerente com o resultado alcançado.
WAGNER SCHWARTZ: É interessante o conceito que você criou e nomeou como “raciocínio visual”. Poderia dizer que é a partir dele que encontro os primeiros traços de minhas performances, vídeos e textos; no entanto, gostaria de chamar esse procedimento de conexão. Mas uma conexão acontece através de uma metodologia ou de uma relação entre os objetos e eu? Quando você fala que um projeto criativo pode vir a ser pessoal e intransferível, acredito que esta seja a chance de se aproximar do trabalho de alguns artistas. Daqui onde estou, imagino que uma metodologia se pareça com algo como acordar às sete e meia da manhã, ler as notícias do dia, responder e-mails, fazer exercícios, ir para o atelier/estúdio e estudar alguns conceitos para ver o que deles extrairíamos, (pausa), durante toda a vida. A palavra “metodologia” me assusta porque ela tem esse sentido para mim. Eu vivo fazendo, os objetos também. Não consigo reduzir a consciência estética de minhas performances, vídeos e textos a um “processo criativo”. Eu tento acordar cedo. No verão é possível. No inverno, se houver necessidade. Escrever, por exemplo, é uma necessidade. Emily Dickinson, minha poetisa favorita, escreveu:
This is my letter to the World
That never wrote to Me—
The simple News that Nature told—
With tender Majesty
Her Message is committed
To Hands I cannot see—
For love of Her—Sweet—countrymen—
Judge tenderly—of Me [12]
Em um momento específico, alguma coisa torna-se urgente para ser coreografada, visualizada, escrita. Aguardo que essa urgência desapareça. Quando ela não está mais à vista, começo a elaborar o que deixou para trás. As imagens do pensamento tomam forma, conectando-se a outros eventos, a novos objetos – já não mais àqueles de onde surgiram. A raiva está latente, agora ela pode ser escrita, performada, estruturada. O tempo libera. O tempo libera o “eu”. Conexões vão sendo feitas, até que a forma do pensamento apareça na dança, na performance, no vídeo, na escrita. A edição vem mais tarde. Não existe um gesto neutro em que tudo pode ser incorporado. Não há uma câmera obediente que permite que tudo possa ser fotografado. Não há uma folha branca em que tudo pode ser escrito. A criação é feita em conjunto com os objetos. As coisas já estão em movimento, vistas, escritas. Basta dar tempo para que umas se conectem às outras. E sempre no corpo, esta casa aberta para leituras onde ilimitados temas de importância estão disponíveis, ora sendo criados, revisitados; evoluem. É verdade que os objetos que ganham vida a partir das conexões têm uma relação muito forte com a escrita: a oração, o corte, a musicalidade. E, talvez, a musicalidade seja a prática mais atuante – ela me aproxima das coisas do mundo, encobrindo uma certa timidez. Nesses encontros, Caetano Veloso me apresentou Lygia Clark. Cocteau Twins me apresentou Miriam Cahn. Erik Satie me apresentou Henri Michaux. Cartola me apresentou Hélio Oiticica. Morton Feldman me apresentou Paul Pagk. The Velvet Underground me apresentou Andy Warhol. Gil Scott-Heron me apresentou Malick Sidibé. Arvo Pärt me apresentou Anselm Kiefer. Philip Glass me apresentou Louise Bourgeois. Tom Zé me apresentou Flávio de Carvalho. Wendy Carlos me apresentou Pierre Huyghe. Brian Eno me apresentou Philippe Parreno. Terry Riley me apresentou Néle Azevedo. Os Mutantes me apresentaram Lenora de Barros. Laurie Anderson me apresentou Laurie Anderson.
Talvez a introdução de Mal Secreto – uma peça, performance e/ou ensaio fotográfico, ainda em construção – possa fazer ressoar a sua pergunta.
Nolwenn convida Stéphane e eu para fazermos uma viagem com seu filho, Saul, e seu companheiro, Julien. Ela está interessada na compra de uma casa, no meio de uma floresta, e nos pede alguns conselhos. Nos encontramos pela manhã do dia seguinte. Dentro do carro, escutamos Nolwenn falar sobre seus projetos enquanto o rádio, sintonizado em uma estação de música contemporânea, preenche os espaços vazios entre um pensamento e outro. Pouco a pouco, nos desconectamos da paisagem caótica e dissonante do centro de Paris. Chegamos. Registro aquilo que não vejo todos os dias. Falamos sobre a beleza e os perigos do exílio voluntário. Segundo Nolwenn, essa casa pode sempre ser útil nos feriados. Ao fim da visita, pegamos a estrada. O rádio é quem fala. À noite, em minha casa, descarrego as imagens. Elas se revelam habitadas pelos caprichos de um tempo em suspensão. Entre os objetos e as pessoas capturadas, um movimento contemplativo começa a se esboçar. Durmo tarde e, às cinco horas da manhã, abro os olhos e o computador. As aparições me perturbam: elas desejam encontrar o seu lugar no mesmo mundo do qual faço parte. Esse processo persiste durante todos os dias de uma semana. Os nomes nas imagens tornam-se dispensáveis. A casa e a floresta já não existem no passado. Mal Secreto acontece assim, do nada.
TALES FREY: Julgo o seu trabalho “brando” no que entendemos por oposto ao que muitos avaliam como “polêmico” e o considero como possível de ser partilhado para diferentes públicos e idades sem nenhum problema. Vejo um exagero na forma como muitas pessoas assimilaram a participação de crianças na sua obra La Bête e, inclusive, noto muitas reações que denotam uma forma de agir pautada na mais pura má-fé quando tentam afirmar que a peça pode ser nociva para menores de idade. Como você pondera a sua intenção artística e a recepção da mesma por parte do público no contexto do Brasil e em outros contextos onde mostrou seu trabalho?
WAGNER SCHWARTZ: Em cada uma de minhas criações, o efeito da migração, da figura do estrangeiro, do corpo como matéria, da tradução é palpável. Meu trabalho é direcionado àqueles que frequentam galerias, museus, teatros e pode, também, encontrar um diálogo com os curiosos, como muitas vezes já aconteceu. Nunca fui afrontado pelo público presente em qualquer uma de minhas performances, peças ou instalações. A máxima reação foi o abandono de algumas pessoas em uma apresentação ou outra, antes que essas chegassem ao fim – fato que é absolutamente compreensível.
É preciso ressaltar, no entanto, que as pessoas que você cita em sua pergunta, aquelas que atacaram La Bête, não são as mesmas que conhecem a performance, seu contexto ou a mim. Deste modo, prefiro não problematizar a atitude de cada uma nesse momento, assim como não entendi quando, de um dia para o outro, elas se tornaram especialistas em história da arte.
As pessoas que se aproximam de meus trabalhos geralmente estão interessadas sobre o que em cada um deles é complexificado. A minha intenção artística é criar contextos para que as questões que perseguem ou expandem a condição humana sejam observadas, discutidas. E, dentro ou fora do Brasil, a recepção tende sempre a ser motivadora.
NOTAS
[1] Citação extraída do texto Piranha (2011), de Wagner Schwartz.
[2] CLARK, Lygia. “Do Ritual”. In: FUNDACIÓ ANTONI TÀPIES DE BARCELONE [et al.]. Lygia Clark: Catálogo. Curadores: Manuel J. Borba-Villel [et al.]. Paris: Reúnion des Musées Nationaux, 1998, p. 123.
[3] Ibidem, p. 247
[4] Ibidem.
[5] KRAUSS, Rosalind. A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-medium Condition. Londres: Thames & Hudson, 1999, p. 12. Tradução livre a partir do inglês de Tales Frey.
[6] Ibidem, p. 24.
[7] SCHWARTZ, Wagner. Sinopse de Placebo. Ver o texto em: <https://www.wagnerschwartz.com/placebo>. Acessado em 22 de dezembro de 2017.
[8] MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora Senac de São Paulo, 2008, p. 144.
[9] BAUMAM, Zigmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 21.
[10] SCHWARTZ, Wagner. Piranha. Ver o texto em: <https://www.wagnerschwartz.com/piranha-portugues>. Acessado em 22 de dezembro de 2017.
[11] Ibidem.
[12] “Esta é minha carta para o mundo / Que nunca escreveu para mim / Simples novas que a Natureza / Contou com terna nobreza // Sua mensagem, eu a confio / A mãos que nunca vou ver / Por causa dela — gente minha — / Julgai-me com bem querer”. Tradução a partir do inglês de Aíla de Oliveira Gomes em Emily Dickinson – Uma Centena de Poemas. São Paulo: Editora T. A. Queiroz, 1985.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales. “Wagner Schwartz: ‘Falar do Que Eu Vejo. Falar do Que o Outro Me Fala. Falar do Que Pode Ser Falado’”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2018 eRevista Performatus e o autor
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