Lia Rodrigues, Para que o Céu não Caia, 2017. Fotografia de Sammi Landweer
Gosto de explicar essas coisas para os brancos,
para eles poderem saber [1]
Sobre o palco italiano do Teatro Municipal do Campo Alegre da cidade do Porto, estavam os artistas e também o público, onde o território cênico era muitas vezes comum a todas e todos, não havendo, portanto, uma distinção muito rígida entre o lugar do espetáculo e o da audiência todo o tempo, ocasionando, em certas situações, um resgate de conceitos basilares semeados na primeira metade do século XX e que fazem extremo sentido ainda neste final da segunda década do XXI. Antonin Artaud e o Teatro da Crueldade [2], bem como a dita “pré-história” da performance – a qual borrava as delimitações embrutecidas entre lugar da arte e lugar da contemplação – são referenciais óbvios que nos vêm à mente quando imergimos na coreografia Para que o Céu não Caia, de Lia Rodrigues, apresentada em dezembro de 2017 em Portugal, a qual surgiu a partir do acesso às palavras do xamã yanomami Davi Kopenawa através do livro A Queda do Céu.
Em princípio, a iluminação delimitava um certo (porém não austero) posicionamento de plateia, que permanecia reunida no centro do palco, enquanto os performers alinhavam-se em um dos cantos bem debaixo de uma sequência de refletores a pino, o que provocava sombras nos olhos, narizes e lábios dos artistas, os quais iniciavam as suas ações sobre um amontoado de pó de café, espalhando o mesmo pelos seus corpos e, depois, segurando um punhado desse mesmo pó nas mãos, sopravam-no, gerando enormes nuvens de poeira que tingiam ainda mais os seus corpos, mas também os da plateia mais próxima. Aos poucos, acompanhados de luzes que acendiam à medida que avançavam, como objetivo seguinte, atravessavam e incorporavam um pouco mais do público à obra e, vagarosamente, parando para realizarem extensas e profundas trocas de olhar com algumas das pessoas presentes, integravam-se à massa de gente, mas sempre seguindo em frente, até encontrarem um aglomerado de farinha branca do lado oposto, onde repetiam a mesma ação do início, mas desta vez, com elemento de nova tonalidade, desfazendo a paleta monocromática inicial composta em suas peles, miscigenando cores, cheiros e texturas.
A imagem icônica de Ana Mendieta é fatalmente assimilada não apenas pela apresentação dos corpos nus cobertos por elementos orgânicos, o que nos direcionaria não somente para as suas obras criadas no parque Old Man’s Creek (Iowa, EUA) entre 1977 e 1979, como, por exemplo, The Tree of Life [A Árvore da Vida], mas também a toda a sua série de silhuetas geradas a partir de seu corpo, correspondendo a um conjunto de obras que expõe sua matéria recombinada com a natureza [3]. Na obra de Lia Rodrigues, gradativamente, assistimos às efêmeras sujeiras que são aplicadas no linóleo do espaço por poeiras de cores distintas, sendo o café e a farinha espalhados logo no início e, depois, o açafrão, o que, para além das pegadas e rastros de movimentos marcados que carimbam temporariamente reminiscências de vivências tão recentes, entendemos essa representação como uma analogia da própria miscigenação livre das ilusões de purismos, afinal somos essa grande mistura independentemente da imagem que trazemos em nós.
Se há uma grande parte do tempo dedicada ao silêncio, aos corpos completamente despidos e aos movimentos sutis, isso é completamente transformado do meio para o fim do espetáculo. Sons animalescos passam a ser reproduzidos pelos próprios performers, que emitem tais ruídos e executam torções corpóreas com suas cabeças cobertas por camisetas. Ao velarem as suas faces com auxílio dos tais tecidos, juntos aludem às máscaras sensoriais de Lygia Clark, confirmando a brasilidade presente no trabalho, ao sugerirem códigos e referenciais tão inegavelmente tropicais, mais especificamente, tão inquestionavelmente brasileiros.
Lia Rodrigues, Para que o Céu não Caia, 2017. Fotografia de Sammi Landweer
Parcialmente vestido, o grupo passa a marchar, a dançar em movimentações espasmódicas, e quase sempre os corpos estão acoplados uns aos outros formando uma massa única. Espontaneamente, um ou outro sujeito destaca-se dos demais, mas sem perder a fluidez. A marcha não para e o efeito gerado é um transe coletivo do qual a audiência não está imune. Já sujos pelas poeiras coloridas, entorpecidos pelas movimentações insistentes que retomam rituais indígenas, como a dança da chuva por exemplo, o público está inevitavelmente coligado num ritual envolvente, onde as sensações geradas ultrapassam interpretações lacônicas acerca do tempo turbulento que estamos atravessando por conta das violentas transformações climáticas.
Sob o sistema sensorial todo acionado – desde os sabores que colam nos lábios devido à poeira levantada, dos cheiros embaralhados, do visual colorido, das trocas de toques inevitáveis por transitarmos pelo espaço até o som firme e hipnótico –, as razões de espectadores que assistem à obra em busca de uma resposta intransigente de características ortodoxas são desmanteladas e substituídas pela beleza da multiplicidade de interpretações, confirmando uma obra de arte aberta à diversidade e jamais enclausurada numa visão de mundo que não conta com a imensidão do céu que está sobre cada uma de nossas cabeças.
NOTAS
[1] KOPENAWA, Davi em: ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 63.
[2] Ver em: ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
[3] Ver em: RUÍDO, Maria. Ana Mendieta. Madri: Nerea, 2002, p. 76.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales. “Vivência Conjunta para Sensações Dessemelhantes”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2018 eRevista Performatus e o autor
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